Quinta, 08 Julho 2021 16:19

 

 

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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José Domingues de Godoi Filho*

"Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor

do nosso jardim.
E não dizemos nada [...]
Até que um dia,
o mais frágil deles[...]
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada."(1)

 


 

O atual Ministro da Defesa, general da reserva (cargo civil, que, de preferência, não deveria ser ocupado por militar, ainda que da reserva), e seus comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, repetindo a atitude do então comandante do Exército, em 04 de abril de 2018, general Villas Boas, que ameaçou o país com uma intervenção militar na hipótese de que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidisse favoravelmente a um recurso do ex-presidente Lula, voltaram a ameaçar o país.

O motivo para a ameaça (ou ensaio do golpe que parece em andamento) foi uma declaração do presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, senador Omar Aziz (PSD-AM), sobre irregularidades nas negociações de compra de vacinas, que afirmou que “membros do lado podre das Forças Armadas estão envolvidos com falcatrua dentro do governo”. Acrescentou, ainda: - “Olha, eu vou dizer uma coisa: os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.

Consideraram, esses senhores, potenciais golpistas, em nota distribuída pelo Ministério da Defesa que “essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável”.

E, concluíram a nota ameaçando com a grave e preocupante afirmação de que - “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. O que farão? Repetirão 1964, como tem ensaiado o seu chefe? Será que foi isso que aprenderam nas academias militares?

Para qualquer leitor com um mínimo de discernimento e criticidade, está claro que as declarações do senador não se referem pejorativamente às Forças Armadas, mas sim a uma parte dos mais de cerca de seis mil militares, ativos ou da reserva, que ocupam cargos civis e militarizam o atual governo; particularmente, o Ministério da Saúde, cujo cargo principal era ocupado por um general da ativa e onde se deram os fatos que sustentaram os  argumentos que justificaram a instalação da CPI da Covid-19.

Os fatos estão se acumulando. Por exemplo, no dia 01 de julho, dois dias antes das manifestações que ocorreram em dezenas de cidades brasileiras contra o governo Bolsonaro, com o país enfrentando uma pandemia que já matou mais de 500 mil brasileiros, o diretor da CIA (agência de inteligência dos Estados Unidos, na sigla em inglês), William J. Burns, acompanhado do embaixador dos EUA, Todd Chapman, cumpriu agenda oficial em Brasília e participou de jantar com os ministros General Ramos (Casa Civil) e General Augusto Heleno (Segurança Institucional). É bom não esquecermos o papel que a CIA teve no golpe militar de 1964 e, em 2016, no que depôs a presidenta Dilma Roussef.

No momento, certamente, a CIA deve estar incomodada com o retorno, no cenário eleitoral de 2022, do ex-presidente Lula. São fatos que não podem ser deixados de lado tendo em vista os interesses “imperiais” dos EUA na América do Sul e no Brasil.

Ao mesmo tempo, o atual presidente insiste em repetir que “pode não entregar o poderem 2022”, especialmente, se não retrocedermos pelo menos 30 anos, ressuscitando o voto de papel. Nessa hipótese, tem afirmado, reiteradamente, “que não aceitará o resultado, caso perca as eleições em 2022”, possivelmente, contando com a anestesia política da sociedade, com a cumplicidade da classe política e apoio no aparelhamento das instituições.
 
O exemplo do Chile e da Bolívia é a resposta que precisa ser dada com a continuidade dos protestos das ruas, em defesa da democracia e contra os entreguistas e genocidas que invadiram a Esplanada dos Ministérios, antes que “não possamos dizer nada”.
 
A despeito das polêmicas que ainda envolvem, especialmente no Brasil, a discussão sobre as relações civil-militar, como sugerido por Huntington (2), a “democracia só tem a ganhar com o afastamento dos militares da política. Homens armados não devem ter a mesma participação que homens desarmados na vida política da Nação”.
 
A criação do Ministério da Defesa, chefiado por um civil, o que não é o caso brasileiro no momento, auxiliou garantir a subordinação das forças armadas e seu respeito ao previsto constitucionalmente.
 
Num Estado democrático de direito, o argumento democrático supera o tecnocrático, isto é, os especialistas podem propor alternativas, mas a decisão será sempre política. O direito de errar, mesmo em questão de segurança nacional, é da autoridade civil. No limite, a separação das instâncias decisórias é uma decisão política, portanto, civil.
 
O controle civil dos militares, como lembrado por vários estudiosos do tema, representa parte de como manter um governo forte o suficiente para resistir todas as pressões sociais, sem tiranizar e violentar a população que protege. A questão não é nova e, no Brasil, depois da ditadura civil-militar, já passou da hora de enfrentarmos a discussão sobre como superar as dificuldades, para manter meios de repressão efetivos, confiáveis, financeiramente viáveis e que saibam respeitar os direitos humanos.
 
Os métodos utilizados pela ditadura civil-militar de 1964 e a herança de posturas autoritárias, como as demonstradas pelo atual Ministro da Defesa e seus Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica devem ser repudiadas energicamente pela sociedade.
 
Uma das principais tarefas urgentes que a sociedade brasileira, ainda tem que cumprir, é resolver as relações entre militares e a militância política, para a consolidação, de fato, de um Estado democrático de direito. Caso contrário, “arrancarão a voz de nossas gargantas e não poderemos dizer nada”.

 

  1. No caminho com Maiakovski, poema de Eduardo Alves da Costa.
  2. Huntington, S.P. O soldado e o Estado – Teoria e política entre civis e militares. Rio de Janeiro :Biblioteca do Exército,1996.

 

*José Domingues de Godoi Filho – UFMT/Faculdade de Geociências
 
 

Terça, 25 Maio 2021 10:39

 

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“O tempo só

anda de ida”

(Manoel de Barros)

José Domingues de Godoi Filho* 

 

“Toda sociedade humana precisa justificar suas desigualdades: tem de encontrar motivos para a sua existência ou o edifício político e social como um todo corre o risco de desabar. Desse modo, toda época produz um conjunto de discursos e ideologias contraditórios que visam legitimar a desigualdade tal como ela existe ou deveria existir e descrever as regras econômicas, sociais, políticas que permitem estruturar o todo. Desse confronto, a um só tempo intelectual, institucional e político, costumam emergir uma ou várias narrativas dominantes nas quais os regimes desigualitários vigentes se apoiam”. (1)

 

Com a explicitação da guerra energética mundial, da disputa selvagem por recursos naturais e do controle avassalador sobre a disponibilidade dos resultados dos avanços em ciência, tecnologia e desenvolvimento, no início dos anos 1970, levou a direita chegar ao poder, na década seguinte, com Ronald Reagan (EUA) e Margareth Thatcher (Reino Unido). Com eles teve início a globalização (prefiro a definição de Chesnais (2) - mundialização do capital) e a imposição do neoliberalismo privilegiando, dentre outras, políticas monetárias e fiscais, que com “a desregulamentação e os cortes tributários liberariam e incentivariam a economia ao aumentar a oferta de mercadorias e serviços, e, consequentemente, a renda dos indivíduos”. (3)

 

Em meio a uma das maiores pandemias enfrentadas pela espécie humana e, quarenta anos depois, do modelo não ter funcionado, nem para Reagan -Thatcher, nem para qualquer outro país que o tenha adotado; por aqui, a tropa de choque, saída de Chicago e espalhada por diferentes países (especialmente os situados abaixo do Equador), com o apoio e conivência do Banco Mundial -FMI(Fundo Monetário Internacional – OMC(Organização Mundial do Comércio) e da OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), como crupies do cassino global, insistem na manutenção do modelo, não aceitam qualquer discussão e o impõe como “pensamento único”, combinando com o discurso do “livre mercado”.

 

Mesmo em nossas universidades, nos cursos ditos de “economia”, é flagrante a disseminação de tal pensamento, não havendo espaços para as discussões e formulações que indiquem outros caminhos e opções. Predominam as narrativas proprietarista, empreendedorista e meritocrática. Como apontado por Piketty (1), “a desigualdade moderna é justa, uma vez que decorre de um processo livremente escolhido, em que todos têm as mesmas oportunidades de acender ao mercado e à propriedade e em que todos se beneficiam naturalmente da acumulação dos mais ricos, os quais são também os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais úteis. Estaríamos, assim, nos antípodas da desigualdade das sociedades antigas, fundamentadas em disparidades estatutárias e muitas vezes despóticas”. Nada mais hipócrita, avesso à verdade, à ciência, ao conhecimento e ao fortalecimento da democracia. Qualquer tentativa de discussão e alteração do modelo é desqualificada, recusada e censurada. Nesse sentido é exemplar o ocorrido, em 2011, com o livro “Hay alternativas. Propuestas para crear empleo y bienestar social em España”, de V. Navarro, J. Torres e A. Garzón, prefaciado por Noam Chomsky. A Editorial Aguilar depois de mostrar seu interesse por publicá-lo e de ter iniciado a divulgação e promoção do lançamento, informou aos autores que haveria atraso na publicação, tendo em vista o período pré-eleitoral espanhol.  Os autores procuraram outra editora, que com a colaboração do ATTAC (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos), publicaram rapidamente o livro, além de liberarem uma versão gratuita, em formato pdf, via redes sociais, para divulgar ideias alternativas ao pensamento único.

 

Como “todo ordenamento das questões humanas também se materializa em um ordenamento de espaço” e, onde,  “cada nova era e cada nova época na coexistência dos povos e nas formações de poder de todos os tipos são fundadas em novas divisões espaciais, novos cerceamentos e novas ordens espaciais da Terra”(4),essa narrativa “proprietarista e meritocrática” tem se mostrado frágil e, “conduzido a contradições, que decerto assumem formas muito diferentes na Europa e nos Estados Unidos, na Índia e no Brasil, na China e na África do Sul, na Venezuela e no Oriente Médio. Todavia, ocorre que essas trajetórias distintas, nascidas de histórias específicas e, em parte, conectadas entre si, estão ligadas de forma cada vez mais estreita neste início de século XXI. Somente uma perspectiva transnacional permite compreender melhor tais fragilidades e considerar a reconstrução de narrativas alternativas”. (1)

 

O PLANO BIDEN 100 DIAS DEPOIS DA POSSE.

 

Uma semana depois da realização da Cúpula dos Líderes do Clima, cujas conclusões iniciais apontam para um aumento brutal na distância tecnológica que separa os países desenvolvidos dos demais, no que se refere a adoção de políticas de baixo carbono, o presidente Biden, anunciou, em seu discurso para a Nação: - aumento de US$ 2,3 bilhões nos gastos públicos com infraestrutura; aumento de US$ 1,8 bilhão de  gastos públicos com programas sociais; aumento de impostos para grandes empresas; aumento de impostos para o 1% mais rico dos Estados Unidos; imposto internacional sobre os lucros de empresas multinacionais; lei para proteger o direito de organização; aumento do salário mínimo para US$ 15/hora; lei sobre igualdade salarial entre mulheres e homens; impedir que volte  ocorrer o que aconteceu na pandemia, isto é, quando 600 bilionários aumentaram sua riqueza em  US$ 1 trilhão, enquanto 20 milhões de trabalhadores perderam seus empregos; preços mais baixos dos medicamentos; lei de saúde de baixo custo para expandir a cobertura do Medicare ( programa de Previdência Social para maiores de 65 anos e jovens e outras pessoas com deficiência); ajuda para evitar que os imigrantes tenham que deixar seus países fugindo da pobreza e os nascidos nos Estados Unidos como imigrantes sem documentos.

 

Mesmo com todo ceticismo que o momento impõe, a proposta do presidente Biden, que também está sendo reproduzida por organizações como FMI e OECD, caso se materialize, guardam semelhanças importantes com muitos dos argumentos dos contrários ao pensamento único que tem sido imposto. O FMI, em seus relatórios de abril 2021(5,6), deixa claro que a pandemia explicitou e catalisou uma crise profunda, cuja recuperação levará tempo e exigirá novas alternativas.

 

Plinio Jr. (7), em seu artigo “Biden não é Roosevelt”, registra com precisão que “o capitalismo do século XXI não é o do século XX. Sem colocar em xeque a causa do problema – a livre circulação do capital em escala transnacional – é impossível evitar seus efeitos deletérios. Globalização dos negócios, instabilidade econômica, rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores, desigualdade social, crise da democracia liberal, recrudescimento das rivalidades nacionais, acirramento da luta de classes e depredação do meio ambiente são processos inerentes ao capitalismo de nosso tempo”.

 

Antonio Guterres (8), Secretário Geral da ONU, tem demonstrado sua preocupação com o panorama sombrio produzido pela crise sanitária mundial, o que o levou afirmar que “é necessário uma mudança de paradigma que permita alinhar o setor privado com metas globais para enfrentar os desafios futuros da humanidade, incluindo os causados pela COVID-19”.

 

Guterrez alertou, ainda que, devido a evolução rápida e agressiva da pandemia, a recuperação será lenta e num futuro distante. Para o futuro propôs duas questões para o debate: - 1) aplicação de um imposto solidário, ou sobre o patrimônio daqueles que foram beneficiados excessivamente durante a pandemia, com o objetivo de reduzir as desigualdades extremas; 2) Com relação à dívida, incentiva a sua suspensão e alívio, bem como a concessão de liquidez aos países que necessitem. Ressaltou, que é necessário reforçar a “arquitetura da dívida para acabar com os ciclos mortais de ondas de dívida, crises de dívida global e décadas perdidas”

 

Dada a real ameaça que a atual crise impõe ao multilateralismo, propõe novos andaimes internacionais e um novo contrato social baseado na solidariedade e no investimento na educação, empregos decentes e verdes, proteção social e sistemas de saúde, todos os quais juntos, formariam a base para o desenvolvimento sustentável e inclusivo.

 

O BRASIL NA CONTRAMÃO SENDO DESMANCHADO.

 

O negacionismo oficial no país atingiu níveis impensáveis, a ponto de até se esquecer que sempre existiram e continuarão existindo alternativas para qualquer modelo desenvolvimento. Não há motivos para se sujeitar ao pensamento único que tem sido imposto. O avanço do conhecimento humano, especialmente do saber científico-tecnológico, ampliou as opções e as possibilidades de escolhas de caminhos sócio-políticos e de estilos de desenvolvimento que melhor atendam as demandas da população brasileira. Contudo, para melhor entender e desfrutar das benesses do conhecimento é fundamental deixar para trás o negacionismo, porque a opção escolhida, qualquer que seja, não se restringirá ao aspecto exclusivamente técnico, mas também representará uma opção por uma série de itens relacionados a padrão de consumo, força de trabalho, níveis de investimento e sobretudo sobre a exploração dos recursos naturais e energéticos, a estruturação do sistema educacional e da pesquisa, com reflexos inevitáveis na identidade cultural.

 

As nações evoluem ao atingirem níveis de vida elevados, sendo necessário para tanto que se tenha claro que o aumento da produtividade humana se dá pela ampliação de sua capacidade de conhecimento. Os avanços na capacidade de conhecimento exigem investimentos constantes em educação pública e nas fundações de pesquisa de direito público que devem ser responsáveis pela pesquisa básica financiada pelo Estado. Como discutido por Stiglitz (3), “as nações se tornam mais ricas como resultado da sua organização, que permita que as pessoas interajam, negociem e façam suas escolhas. O projeto de uma boa organização social é fruto de décadas de raciocínio e deliberação, além de observações empíricas sobre o que funciona ou não. Elas levaram a visões sobre a importância das democracias com estado de direito, devido processo legal, freios e contrapesos e uma miríade de instituições envolvidas na descoberta, avaliação e divulgação da verdade.”

 

Como vem sendo questionado desde o início, há necessidade de se enfrentar a imposição e adoção de um pensamento único vigente desde os anos 1970 – o capitalismo de estilo americano – “que está modelando nossas identidades individuais e nacionais de maneira desagradável. O que emerge está em conflito com os nossos valores mais elevados; a ganância, o egoísmo, a torpeza moral, a disposição de explorar os outros e a desonestidade que a Grande Recessão expôs no setor financeiro estão evidentes em outros lugares e não somente nos Estados Unidos. As normas, aquilo que vemos como comportamento aceitável ou não, estão mudando de maneiras que minam a coesão social, a confiança e até mesmo o desempenho econômico”. (3)

A pandemia teve, pelo menos, a virtude de mostrar que as mudanças que eram necessárias, tornaram-se urgentes e inevitáveis. Pequenos ajustes no sistema político e econômico não são serão suficientes para as transformações à frente. “Precisamos de mudanças drásticas[...], Mas nenhuma dessas mudanças econômicas será possível sem uma forte democracia para compensar o poder político da riqueza concentrada. Antes da reforma econômica, será necessária uma reforma política”. (3)

 

(1)    Piketty, T. Capital e ideologia; Tradução Dorothée de Bruchard, Rio de Janeiro: Intrínseca,2020.

 

(2)    Chesnais, F. A mundialização do capital; Tradução Silvana Finzi Foá, São Paulo: Xamã, 1996.

 

(3)    Stiglitz, J.E. Povo, poder e lucro: capitalismo progressista para uma era de descontentamento; Tradução Alessandra Bonrruquer, Rio de Janeiro: Record, 2020

 

       4)  Smoke, A. The social question in a transnational context. LEQS Paper nº 39/2011 – Disponível em :  https://www.lse.ac.uk/european-institute/Assets/Documents/LEQS-Discussion-

        Papers/LEQSPaper39.pdf Acesso em 14/05/2021

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International Monetary Fund. 2021. World Economic Outlook: Managing Divergent Recoveries. Washington, DC, April

 

      (6) International Monetary Fund. 2021.Finance & Development: The Post-Covid World, Washington, DC, March

 

     (7) Sampaio Jr, P.A. Biden não é Roosevelt. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/biden-nao-e-roosevelt/ - Acesso em 18/05/2021.

 

    (8) Guterres, A. Contra la desigualdade, Guterres propone “un impuesto solidário” a quienes se han beneficiado de la pandemia. Disponível em: https://news.un.org/es/story/2021/04/1490732 - Acesso em     18/05/2021.

 

    *José Domingues de Godoi Filho – Professor da UFMT/Faculdade de Geociências.

 

Quinta, 22 Abril 2021 14:41

 

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José Domingues de Godoi Filho*

“Faz algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
se ouviu a voz de um poeta gritar
Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar” …

(Antonio Machado, em Cantares)

 
 

Desde 1972, após a realização da Conferência de Estocolmo/0NU, se engalfinham os interessados num mundo mais igualitário, habitável pelas atuais e futuras gerações e os interesses dos impérios preocupados em garantir acumulação crescente e ilimitada de riquezas, num planeta finito.


A mesma ONU realizou, na cidade do Rio de Janeiro, outras duas conferências mundiais para tratar das questões socioambientais, em 1992 (ECO-92) E 2012 (Rio +20). Os resultados e recomendações pouco acrescentaram à disposição dos impérios, no sentido de alterar os rumos das mudanças climáticas e dos acordos envolvendo a biodiversidade e a propriedade intelectual; inclusive, o representante de um império, durante a ECO-92, defendeu que “a biodiversidade é patrimônio da humanidade e as patentes patrimônio das empresas”–daí, oatual mercantilismopelas vacinas e demais suprimentos contra o Covid-19.


Durante esse tempo, no que se refere às mudanças climáticas, foi praticamente atropelado o Protocolo de Quioto e realizadas 25 Conferências das Partes (COP). A primeira ocorreu em Berlim (março-abril de 1995), com a presença de 117 países, que estabeleceu o “Mandato de Berlim”, cujo ponto central consensuado foi que todos os países deveriam adotar medidas enérgicas, para mitigação do efeito estufa. No momento, está previsto, para ocorrer em Glasgow (Escócia), em novembro-2021, uma nova reunião da Cúpula da ONU, a COP-26.


Em dezembro-2015, aconteceu a COP-21, em Paris, considerada histórica pelo resultado atingido. O documento final consensuado pelos participantes, conhecido como o “Acordo de Paris”, teve como objetivo principal a redução das emissões dos gases de efeito estufa (GEE), para limitar o aumento médio da temperatura global a 2º C, tendo como referência os níveis pré-industriais. Resumidamente incluiu: - “esforços para limitar o aumento de temperatura a 1,5ºC;recomendações quanto à adaptação dos países signatários às mudanças climáticas, em especial para os países menos desenvolvidos, de modo a reduzir a vulnerabilidade a eventos climáticos extremos;estimular o suporte financeiro e tecnológico por parte dos países desenvolvidos para ampliar as ações que levam ao cumprimento das metas para 2020 dos países menos desenvolvidos;promover o desenvolvimento tecnológico e transferência de tecnologia e capacitação para adaptação às mudanças climáticas;proporcionar a cooperação entre a sociedade civil, o setor privado, instituições financeiras, cidades, comunidades e povos indígenas para ampliar e fortalecer ações de mitigação do aquecimento global”.


Os países participantes, mais de 190, apresentaram suas propostas para a redução de emissões domésticas de GEE, denominadas de “Pretendida Contribuição Nacionalmente Determinada” (NDC, sigla em inglês).


O Brasil, com o documento intitulado “Compromisso do Brasil no Combate às Mudanças Climáticas: Produção e Uso de Energia”, se comprometeu, dentre outras, com as seguintes ações: - “reduzir suas emissões de GEE em 37% até 2025, atingindo 43% em 2030, tendo como referência os níveis emitidos em 2005; aumentar o uso de fontes alternativas de energia; aumentar  a participação de energias renováveis na matriz energética brasileira para 18% até 2030; utilizar tecnologias limpas nas indústrias; melhorar a infraestrutura dos transportes; diminuir o desmatamento e restaurar e reflorestar até 12 milhões de hectares”.


Em 2017, um ano depois de assinado o Acordo de Paris, o Presidente Donald Trump anunciou que deixaria a participação, para buscar um “melhor acordo”, afirmando que “o tratado penalizava de forma injusta empresas americanas” e que não atendia a sua política de “América Primeiro”. A formalização da saída, junto à ONU, do pacto global no combate às mudanças climáticas, se deu em novembro de 2020.


Não é demais lembrar que os Estados Unidos, ao lado da China, são os maiores emissores de GEE do mundo. A China, em 2020, foi responsável por 28% das emissões de GEE e os EUA, segundo colocado, por 15%. A China e os Estados Unidos juntos, por outro lado, consomem 40% de toda a energia elétrica disponibilizada no mundo, enquanto mais de 1 bilhão de pessoas não tem acesso a esse tipo de energia. Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA, sigla em inglês), as principais fontes de energia desses países são: carvão (40,8%), gás natural (21,6%),hídrica (16,4%), nuclear (10,6%) óleo (4,3%).


O desgoverno negacionista brasileiro, sem preocupação alguma com as questões socioambientais e com os povos indígenas e quilombolas, se associou às posições do governo Trump, afirmando sua disposição, com a conivência dos entreguistas de sua equipe, civis e militares, da reserva ou não, de explorar os recursos naturais da Amazônia com as empresas dos EUA; além de recusarsediara, então prevista, realização da COP-25. Assumiu o lema de “passar a boiada”, sugerido pelo Ministro do Meio Ambiente e, está desregulamentando a legislação de licenciamento ambiental e desmontando o IBAMA e o ICMBIO; transformando o Brasil de um dos principais protagonistas do mundo, num pária da questão socioambiental.
 
O retorno do EUA
 
O atual presidente dos EUA, Joe Biden, cumprindo promessa de campanha, convidou 40 líderes mundiais para o que está denominando de Cúpula dos Líderes sobre o Clima, dentre os quais, representantes de outros impérios e o presidente negacionista e entreguista do Brasil, Jair Bolsonaro, para uma reunião virtual sobre o clima, a ser realizada nos dias 22 (Dia da Terra) e 23 de abril. Pretende, com isso, marcar o retorno de Washington ao combate às mudanças climáticas, antes da COP-26, prevista para novembro próximo, em Glasgow, Escócia.


Os principais temas anunciados, para a Cúpula dos Líderes sobre o Clima, “enfatiza a urgência e os benefícios econômico de uma ação climática mais enérgica” e espera resultados que auxiliem para as discussões na COP-26, ou seja: - “esforços para sensibilizar e mobilizar as principais economias do mundo a reduzirem as emissões de GEE nesta década, para manter o limite de aquecimento de 1,5ºC; mobilizar o financiamento de setores público e privado para impulsionar a transição para a emissão líquida zero e ajudar os países vulneráveis a lidar com os impactos climáticos; os benefícios econômicos da ação climática, com forte ênfase na criação de empregos, e a importância de garantir que todas as comunidades e trabalhadores se beneficiem da transição para uma nova economia de energia limpa; impulsionar tecnologias de transformação que podem ajudar a reduzir as emissões e na adaptação às mudanças climáticas, ao mesmo tempo em que criam novas oportunidades econômicas e constroem as indústrias do futuro; apresentar atores subnacionais e não estatais comprometidos com a recuperação verde e uma visão equitativa para limitar o aquecimento a 1.5ºC e que estão trabalhando em estreita colaboração com os governos nacionais para promover a ambição e a resiliência; discutir oportunidades para fortalecer a capacidade de proteger vidas e meios de subsistência dos impactos da mudança climática e o papel das soluções baseadas na natureza para atingir as metas de emissões líquidas zero até 2050”.
 
No processo de apropriação dos recursos naturais e energéticos, com um discurso genérico de desenvolvimento sustentável, a reprodução do capital, com verniz verde, tem ultrapassado suas formas primitivas e selvagens; ampliando os mecanismos econômicos de trocas desiguais de recursos naturais dos países emergentes, por produtos tecnológicos do primeiro mundo, ao mesmo tempo que assume uma estratégia de discurso que legitime a apropriação dos recursos naturais e energéticos.


A questão ambiental, como observado por vários pensadores, se converteu num instrumento para ampliar os limites de crescimento, isto é, o ambiente e o aparato tecnológico passam a funcionar como tecnologia de reciclagem; a biotecnologia como um fator para reduzir a vida a uma mera produção de mercadoria e o ordenamento ambiental como um instrumento viabilizador da localização de atividades produtivas, dispersando as forças sociais, aumentando o espaço de produção, circulação e consumo, além de ampliar o território como suporte do crescimento econômico.


O discurso da sustentabilidade foi incorporado às políticas ambientais com os mesmos pressupostos e ditames da economia neoliberal, para solucionar os processos de degradação ambiental e de uso racional dos recursos naturais, ao mesmo tempo, que legitima a economia de mercado, justificando a capitalização da natureza. São convidados para participar todos os sujeitos sociais (governos, empresários, professores, povos indígenas, movimentos sociais) para uma operação de arrumação e participação na qual se integram e não se respeitam diferentes visões, além de mascarar os interesses contrapostos, com uma fantástica engenharia política para privilegiar o acúmulo de capital. Não se permite a discussão e formulação de um projeto futuro comum, debilitando-se as resistências da cultura e da natureza para reconvertê-las na lógica do capital.


Como parte dessa engenharia política, busca-se fazer com que as populações dos mercados emergente, particularmente, os povos indígenas e as populações tradicionais se reconheçam como capital humano e ressignifiquem seu patrimônio de recursos naturais e culturais como um capital cultural; que aceitem uma compensação econômica negociada pela cessão deste patrimônio às empresas, principalmente às multinacionais farmacêuticas e às geradoras de produtos agronômicos, que se tornarão as encarregadas de administrar bens comuns em benefício do equilíbrio ecológico e do bem estar da humanidade atual e futura. Significa uma operação simbólica que funciona como um amálgama nos marcos ideológicos do capital transnacional para legitimar as novas formas de apropriação da natureza. Faz crer que não há alternativas e impõe um pensamento único, ao qual não se pode mais opor os direitos tradicionais pela terra, pelo trabalho e pela cultura. (Godoi Filho(1))
 
Os EUA estão realmente preocupados com a questão socioambiental?
 
As declarações de autoridades americanas colocam em dúvida as reais intenções do império. Afinal, a disputa pelo domínio e controle do que o Fórum Econômico Mundial denominou de Quarta Revolução Industrial é o que tem norteado a guerra comercial China-Estados Unidos, muito mais
que a questão socioambiental. E, numa reunião, como a convocada pelos EUA, são poucas as possibilidades de grandes resultados que se viabilizem na prática;mesmo depois da missão do assessor especial para o clima do governo Biden,John Kerry, na China e de afirmações do tipo “é muito importante tentarmos nos manter distantes de outras pendências, porque o clima é uma questão de vida ou morte em tantas partes diferentes do mundo”.


Não há como esconder, que os EUA e a China disputam o protagonismo nas ações contra as mudanças climáticas e a posição de império mais poderoso do planeta. A China acusa os americanos de “serem responsáveis por atrasar o cumprimento do Acordo de Paris. Deveriam ter vergonha de tê-lo abandonado e não deixar claro como farão para recuperar o tempo perdido”.


O vice-ministro das Relações Exteriores da China, Le Yucheng, alertou que “a questão climática não deveria ser moeda de troca para a geopolítica ou para barreiras comerciais”. Afirmou, ainda, que “para um grande país com 1,4 bilhão de habitantes, algumas das metas não são facilmente alcançadas. Alguns países estão pedindo à China que faça mais em relação à mudança climática. Talvez isso não seja muito realista”. O governo da China, por seu lado, prometeu em seu plano econômico “continuar aprovando novas usinas de carvão, priorizando a estabilidade social e o desenvolvimento de importantes indústrias nacionais”.


O secretário de Estado Antony Blinken (2) deixou claro, essa semana, que os EUA, por sua vez, decidiram fazer do debate das mudanças climáticas a oportunidade de reorientar a geopolítica mundial, buscando ultrapassar a China e consolidar sua posição de império mais poderoso do planeta. Nesse sentido, admitiu que “os EUA estão atrás na agenda verde e, se não alcançarem os chineses, perderão a chance de moldar o futuro climático do mundo”. Afirmou, que “neste momento, estamos ficando para trás. A China é o maior produtor e exportador de painéis solares, turbinas eólicas, baterias e veículos elétricos. Detém quase um terço das patentes mundiais de energia renovável”. Mesmo com o “objetivo número um da política climática americana ser o de prevenir catástrofes”, os EUA “não deixarão de lado a competitividade e a ânsia de voltar a ditar os rumos do planeta”.
Ressaltou, o secretário Blinken, que “é difícil imaginar os EUA ganhando uma competição estratégica de longo prazo com a China se não liderarem a revolução das energias renováveis”. As mudanças climáticas não devem ser vistas apenas como “uma ameaça”, mas também como “uma oportunidade” para os americanos recuperarem seu protagonismo. “Estamos torcendo para que cada país, empresa e comunidade melhore a redução de emissões e a construção de um sistema de resiliência. Mas isso não significa que não tenhamos interesse em que os EUA desenvolvam essas inovações e as exportem para o mundo.”
Como chefe da chancelaria dos EUA, afirmou que seu trabalho é garantir que a política externa atenda aos interesses dos americanos e que a abordagem da crise climática como forma de transformar a matriz energética do país e criar empregos é a melhor forma de fazer isso. Para convencer o público americano da importância do tema, Blinken argumentou que o mercado de energia renovável global deve chegar a US$ 2,15 trilhões até 2025, 35 vezes o tamanho atual do setor nos EUA. Ele também afirmou que as políticas que serão adotadas por Biden representam novos empregos para os americanos. Vamos acompanhar a reunião e tirar conclusões.
 
E o Brasil?
 
Chegará à guerra dos impérios na condição de “paria” e, certamente, não serão os poucos minutos previstos para o pronunciamento de cada liderança, que recolocarão o Brasil como um dos principais protagonista mundiais na questão socioambiental. A credibilidade do governo Bolsonaro tende a zero, a carta encaminhada ao governo Biden é vista com ceticismo e desconfiança. O governo brasileiro terá que explicar a excessiva e absurda desregulamentação das normas ambientais; o desmonte dos órgãos ambientais e o esvaziamento das instituições oficiais de pesquisas que produzem dados e conhecimento sobre o território como INPE, IBAMA, IBGE, universidades; a intimidação que tem sido feita aos que criticam a política ambiental do atual governo; a militarização esdrúxula da política ambiental; a atual paralisação da fiscalização pelos órgãos responsáveis em função de portarias do Ministério do Meio Ambiente, dentre outras. A favor apenas a postura entreguista para tentar seduzir interesses empresariais.


Temos os direitos sobre os recursos naturais existentes em nosso território e de qualidade de vida em um ambiente saudável; bem como a obrigação de lutar contra a posição subjacente nessa guerra dos impérios e explícita nas posições do governo brasileiro de, como bem questionadopor Forrester (3) – “é preciso merecer viver para ter esse direito? Será útil viver quando não se é lucrativo ao lucro?”

Há saídas, depende de nós. Vamos construir um novo caminho.
 
(!) Godoi Filho, J.D. Desenvolvimento sustentável e a capitalização da natureza. Cuiabá: CEGAM, mimeografado,1994.
(2) Blinken, A. Blinken warns US is falling behind China in race to capitalize on climate opportunities –CNN Politics. Disponível em:https://edition.cnn.com/2021/04/19/politics/blinken-climate-speech/index.html - Acessado em 20/04/2021.

(3) Forrester, V. L’horreur économique. Paris: Fayard, 1996.
 

*José Domingues de Godoi Filho – Professor da UFMT/Faculdade de Geociências.
 

Segunda, 22 Março 2021 10:04

 

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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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José Domingues de Godoi Filho*

 

Será possível ser otimista em relação a uma mudança global para um novo normal? Mesmo com algum otimismo, não me parece que iremos acordar, no final da pandemia, com uma mentalidade coletiva diferente. Será que os tecnocratas que decidem os rumos da economia dos diferentes países, especialmente os nefastos “Chicago boys”, que integram o governo brasileiro, conseguirão ver e reconhecer a falência das receitas neoliberais e os seus efeitos como, por exemplo, mostra o relatório da Oxfam (1): - “desde o início do século 21, a concentração de riqueza entre os mais ricos tem aumentado constantemente. O número total de bilionários quase dobrou dez anos após a crise financeira de 2008 e, entre 2017-2018, um novo bilionário foi criado a cada dois dias. Esse abismo crescente entre os mais ricos e o restante da população foi alimentado, em parte, por níveis elevados e persistentes de desigualdade de renda. Em 2015, a maior parte da população mundial vivia em países onde a desigualdade havia aumentado nos 25 anos anteriores. O World Inequality Lab mostrou que, entre 1980 e 2016, o 1% mais rico recebeu 27 centavos de cada dólar de crescimento da renda global”.

E mais, que, no Brasil, mesmo com a pandemia o lucro total dos quatro maiores bancos, em 2020, foi de R$ 61,6 bilhões?

A extrema desigualdade atual foi gerada por um sistema econômico explorador (neoliberalismo) que, há quarenta anos, vem beneficiando uns poucos super ricos. O neoliberalismo é o responsável pela abissal concentração de riqueza e renda no topo, enquanto uma ampla maioria, na base, continua sendo sacrificada e empobrecida.

Como bem analisa Mia Couto, em países como Moçambique, “fica clara a falência das receitas neoliberais, que acabaram destruindo as conquistas sociais dos primeiros anos da Independência. Se for verdade que a vacina da BCG ajuda a proteger contra o coronavírus, os moçambicanos só podem agradecer esse período de poder popular em que a totalidade da população se beneficiava de campanhas de vacinação e de cuidados médicos básicos. Não será por causa da medicina privada, inspirada no capitalismo selvagem, que nós iremos proteger nem nesta pandemia nem em nenhuma outra situação de sofrimento”.

Todas variáveis que estão disponíveis indicam, como já ressaltado pela OIT – Organização Internacional do Trabalho, que o ponto de partida não será encorajador. Independentemente de sua evolução futura, a pandemia deixará um mundo de trabalho com mais desemprego, mais desigualdade, mais pobreza, mais dívidas e, com toda a probabilidade, mais frustração e até raiva popular. No entanto, a pandemia também destacou fortemente a necessidade absoluta de agir, sem demora, para cumprir os princípios e objetivos da Declaração do Centenário da OIT, comemorado em 2019, e o preço humano de não o fazer. Portanto, o processo de uma melhor reconstrução terá que responder a certas questões e desafios prementes (2):

i - como promover o crescimento sustentável com pleno emprego e trabalho decente para todos; como conceber resposta à crise pelo Covid-19 de forma a recuperar a economia global da recessão e colocá-la em posição de superar os desafios de uma transição digital, demográfica e ambiental justa; ii - o que precisa ser feito para resolver as enormes vulnerabilidades no mundo do trabalho revelados pela pandemia? Como intensificar os esforços para formalizar a economia informal e avançar decisivamente para a cobertura universal da proteção social? iii - Queremos acelerar o uso de tecnologias que possibilitem novas formas de trabalhar à luz da experiência da pandemia? Em caso afirmativo, como esse trabalho deve ser regulamentado? iv - Quais setores de atividade econômica e categorias de trabalhadores requerem especial apoio e atenção? O processo de recuperação pode incorporar uma agenda transformadora para alcançar a igualdade de gênero e uma plataforma para o avanço da juventude no mundo do trabalho? v - Como fazer com que a redução e eliminação da pobreza e os imperativos de direitos e justiça social se tornem objetivos centrais do processo de recuperação? vi - Num momento em que a cooperação multilateral é mais indispensável do que nunca, mas enfrenta desafios sem precedentes, como a comunidade internacional pode se unir em torno de um verdadeiro propósito comum e se dedicar novamente à implementação da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável?

E no Brasil?

No caso brasileiro, onde um time de bonecos amestrados controlados pelos interesses do capital que os elegeu e estão destruindo o Estado com as emendas constitucionais e reformas que estão aprovando, conseguirão perceber a importância dos sistemas públicos de saúde e de educação? E a falência do neoliberalismo?

O anunciado colapso no sistema de saúde deixou de ser uma possibilidade e se tornou realidade em todo país. Há necessidade de contornar o colapso e de impedir que se mantenha por tempo indeterminado, sendo fundamental atender as recomendações feitas com base na ciência, enquanto a vacinação não atinja a maioria da população.

A recente entrevista do CEO do Hospital Sírio-Libanês Paulo Chap Chap, onde informa que cancelou cirurgias eletivas e que não consegue mais atender os pedidos de transferência, ilustra bem a situação. Disse ainda, que ter dinheiro ou plano de saúde de primeira linha não significa espaço assegurado nas unidades privadas. Ao contrário, cresce gradativamente o universo de pessoas que, sem conseguir vaga na rede particular, acabam socorridas pelo sistema público.

Os hospitais particulares também enfrentam superlotação ou vivem perto dela. Morrer na fila de UTI por causa do colapso é agora, um risco de todos, assim como é também de todos a responsabilidade em revê-lo.

Quanto ao governo brasileiro já passou da hora de ficar insistindo que o governo fez tudo certo, conforme teria dito para médica Ludhmila Hajjar ao convidá-la para ocupar o ministério da saúde. A médica recusou o convite e relatou, em entrevistas para a imprensa, que “não houve convergência técnica com o governo”, uma forma educada de dizer que era incompatível com o saber estabelecido. Cabe uma pergunta, se tinha feito tudo certo, por que trocar de ministro de novo?

Um novo convite foi feito e aceito pelo médico Marcelo Queiroga e, um novo ministro indicado. Não é demais desconfiar de qualquer um que aceite o cargo, sabendo o que o presidente Bolsonaro pensa, faz e deixa fazer em relação à pandemia. O que Queiroga conversou com o presidente? O que perguntou antes de aceitar o cargo?

Agora temos um ministro que está exonerado, mas não deixou o cargo e, um que foi indicado e ainda não assumiu. Enquanto isso a pandemia caminha celeremente para atingir três mil mortes por dia, como previsto e alertado há tempos por pesquisadores.

O que fazer para enfrentar a pós pandemia.

Talvez retomar, para fortalecer os sonhos e a esperança, a frase inicial de “O primeiro círculo”, de Alexander Soljenitsin – “mariposas vivem pouco tempo, o carvalho floresce aos cem anos” e tocar em frente inspirados pela brilhante recomendação de Chomsky que:

- “Primeiro de tudo nós devemos ter em mente que há, desde poucos anos atrás, uma forma de isolamento social que é muito danosa. Você vai ao McDonald’s e vê adolescentes sentados ao redor da mesa comendo hamburguer e o que você vê é uma conversa rasa de uns ou alguns outros mexendo no seu próprio celular com algum indivíduo remoto, isso tem atomizado e isolado as pessoas em uma extensão extraordinária. As redes sociais têm tornado as criaturas muito isoladas, especialmente os jovens. Atualmente, as universidades nos Estados Unidos onde os passeios têm placas dizendo ‘olhe para frente’, porque cada jovem ali está grudado em si mesmo, essa é uma forma de isolamento social autoinduzido, o que é muito prejudicial. Estamos agora em situação real de isolamento social, que deve ser superada com recreação, laços sociais e tudo que puder ser feito. Qualquer coisa que puder ajudas as pessoas em suas necessidades, desenvolvendo organizações, expandindo análises...Fazendo planos para o futuro trazendo as pessoas para perto...Procurando soluções para os problemas que encaram e trabalhar neles. Estender e aprofundar atividades, pode não ser fácil, mas os humanos têm encarado seus problemas. Soberania para todas as pessoas em português”.

 

(1)    O vírus da desigualdade – Oxfam Brasil – Disponível em:

https://www.oxfam.org.br/wp-content/uploads/2021/01/bp-the-inequality-virus-110122_PT_Final_ordenado.pdf?utm_campaign=davos_2021_-_pre_lancamento&utm_medium=email&utm_source=RD+Station –Acessado em 15/03/2021

(2)    Cumbre virtual – ILO – Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/meetingdocument/wcms_747938.pdf - Acessado em: 10/01/2021

 

*José Domingues de Godoi Filho – Professor da UFMT/Faculdade de Geociências.

 

Terça, 09 Março 2021 08:45

 

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José Domingues de Godoi Filho*

Os projetos do Estado para o desenvolvimento da Amazônia, desde o golpe civil-militar de 1964 até os dias de hoje, quando são escondidos atrás das queimadas, produziram: destruição das formas de organização produtiva e social das populações nativas; aumento da degradação ambiental; indução de migrações atraídas pela propaganda enganosa dos grandes projetos; desfiguração da identidade cultural; aumento de doenças; expropriação das populações rurais;   invasão e destruição de territórios indígenas, por estradas, hidrelétricas, mineração e garimpos; aumento nas tensões sobre os núcleos urbanos; geração de  latifúndios; conflitos pela posse da terra;  utilização depredatória dos recursos florestais; destruição de grandes áreas por projetos hidrelétricos;  assoreamento de rios e poluição hídrica. Como agravante, as políticas públicas, projetos e incentivos fiscais foram e continuam sendo definidos fora da região, à revelia da população local, e conivência das oligarquias regionais. Resultaram na exploração dos recursos naturais de forma imediatista, para atender os interesses do capital. Como alguns exemplos temos a SUFRAMA - Superintendência da Zona Franca de Manaus, o Programa de Pólos Agrominerais, a UHE de Tucuruí e os planos do setor energético, o Programa Grande Carajás, o Calha Norte.

No caso do Calha Norte, nem mesmo a defesa dos recursos naturais do solo e do subsolo, motivo alegado pelos militares para justificá-lo, foi conseguida. Antes da nova fase de entreguismo, iniciada após a promulgação da Constituição Federal de 1988, as empresas multinacionais de mineração, associadas ou não com grupos nacionais, como, por exemplo, os Grupos Roberto Marinho e Monteiro Aranha, detinham cerca de 35% dos alvarás de pesquisa mineral e, em alguns casos, controlavam mais de 50% da área do subsolo de vários estados da Amazônia Legal.

A partir do governo Collor o entreguismo aumentou com as emendas constitucionais que modificaram o conceito de empresa nacional e a quebra do monopólio do petróleo. Nos governos seguintes, o processo continuou e se ampliou com outras emendas constitucionais e as privatizações espúrias das empresas estatais. Novo golpe civil, em 2016, com apoio dos militares, como é possível verificar no livro, recém-publicado, do ex-Comandante do Exército General Villas Boas.

Em 2018, é eleito o Presidente Bolsonaro. Embora enalteça à sua formação militar e use um discurso patriótico, o governo Bolsonaro não tem um projeto nacionalista de desenvolvimento para o país, nem para a Amazônia; tendo deixado claro que pretende “explorar a floresta em parceria com os norte-americanos”; incentivar “as madeireiras, a mineração e o agronegócio” e não demarcar “nenhum centímetro de terras indígenas”. Após o seu negacionismo e bravatas internacionais, transferiu para a Vice-presidência da República a direção do Conselho Nacional da Amazônia Legal – CNAL, nomeando como Presidente, Hamilton Mourão (Vice-presidente da República). Frente às críticas existentes, Mourão respondeu “afirmando que a Amazônia só será preservada se forem encontradas ‘soluções capitalistas’ que garantam dinamismo econômico e renda para os cerca de 20 milhões de habitantes da região”. Nada de novo, apenas retórica; como ficou claro na polêmica reunião ministerial de abril-2020.O governo Bolsonaro acatou implicitamente a sugestão do Ministro do Meio Ambiente de “passar a boiada” e, durante a pandemia, acelerou a publicação de atos que destroçaram a legislação ambiental.

Cerca de um ano após sua posse, Mourão, em artigo de sua autoria, desconsiderou as políticas ambiental e de desenvolvimento impostas pelo Estado à Amazônia, desde o golpe civil-militar de 1964, afirmando que a Amazônia sofria com ausência do Estado, projetos inconsistentes e crenças ambientais equivocadas que, por anos, foram deliberadamente plantadas e cultivadas na mente dos brasileiros como verdadeiras. Por ser uma região distante e de difícil acesso que poucas pessoas de fato conheciam, muitas acabaram aceitando essas verdades criadas por especialistas de suas vontades, plantadas como ‘boas sementes’ e cuidadosamente regadas até criarem raízes”.  Serão “boas as sementes” que semeia Mourão, Presidente do CNAL?

Depois de muitas queimadas e tentativas de esconder os reais interesses sobre os recursos naturais existentes na Amazônia; de mentiras sobre a situação ambiental do país, pronunciadas pelo presidente Bolsonaro, no discurso de abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU, o CNAL anunciou, em 10 de fevereiro de 2021, o Plano Amazônia 21/22, que terá ações conduzidas de forma simultânea, em quatro áreas de atuação: -  priorização de áreas onde a ocorrência da ilicitude pode impactar de maneira mais decisiva os resultados da gestão ambiental; aumento da efetividade da fiscalização e o fortalecimento dos órgãos; contenção dos ilícitos em conformidade com a lei; e, busca de alternativas socioeconômicas à população dentro do princípio do desenvolvimento sustentável.

O CNAL é composto pelo Vice-presidente da República e quinze Ministérios distribuídos em 5 Comissões e 4 Subcomissões e tem trabalhado em três eixos principais: preservação, proteção e desenvolvimento sustentável. Se consideradas as políticas públicas e as ações desses ministérios, bem como as emendas constitucionais e os projetos de lei, do executivo e de parlamentares, em tramitação no Congresso Nacional sobre meio-ambiente, povos indígenas, mineração, garimpos, energia, agronegócios e obras de infraestrutura, não há dúvidas de que não se aplique, mais uma vez, a frase famosa de Lampedusa, em seu romance O Leopardo: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”, para o regozijo das grandes empresas e bancos.

*José Domingues de Godoi Filho – Professor da UFMT/Faculdade de Geociências

 

 

Quinta, 25 Fevereiro 2021 14:57
 
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Divulgamos a pedido do Prof. José Domingues de Godoi Filho, o link de acesso aos textos "Universidade Pública em Movimento", do reitor da UFBA, prof. João Carlos Salles, e "O Exercício e a Dignidade do Pensamento: O Lugar da Universidade Brasileira", da profª Marilena Chauí.

 
Olá Pessoal.
 
Boa tarde.
 
Peço para se possível, divulgar no Espaço Aberto os textos dos discursos corajosos e instigantes, apresentados na abertura do Congresso da UFBA, no dia 22/02/2021, pelos professores João Carlos Salles, reitor da UFBA (UNIVERSIDADE PUBLICA EM MOVIMENTO) e Marilena Chauí (O EXERCÍCIO E A DIGNIDADE DO PENSAMENTO: O LUGAR DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA).

E a nossa UFMT para onde vai? Para atender a quais interesses? Certamente os textos nos auxiliarão para responder essas questões e a situação do possível fim das destinações mínimas para a educação e saúde. Parlamentares anódinos, casuístas, sem nenhum pudor e que não foram eleitos para rasgar a Constituição Federal-1988, estão de prontidão e com os bolsos abertos para realizar mais uma barbárie.
 
Abraço.
Quinta, 18 Fevereiro 2021 16:17
 
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                José Domingues de Godoi Filho*
 
               “No século XV, a igreja e as monarquias europeias
 estabeleceram os fundamentos jurídicos e morais para a
colonização e extermínio de povos não-europeus na
América através de cartas, patentes ou bulas papais.
Quinhentos anos depois de Colombo uma versão secular
 desse projeto de colonização tem continuidade através
de patentes e direitos de propriedade intelectual.”
Vandana Shiva (1)
 
Em agosto de 1971, depois de vários conflitos internacionais e da explicitação da guerra energética mundial, o padrão ouro, para o dólar, foi extinto. Ficou evidenciado que, como critério de riqueza, se impunha a necessidade da apropriação dos recursos naturais e energéticos, o domínio do conhecimento científico-tecnológico por sua importância no processo produtivo e a imposição de controles sobre as manufaturas e demais criações humanas.
A Conferência das Nações Unidas para o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em junho de 1972, reforçou a importância dessas variáveis, ao tratar das questões ambientais e da saúde, a partir do seu tema central – “Os limites do crescimento”, que iniciou a busca por equilíbrio entre desenvolvimento econômico e degradação ambiental.
Ao mesmo tempo, tornou vital, para a acumulação capitalista, garantir, com mão-de-ferro, em tempos ditos de paz, o que conhecemos como patente. Um tipo de contrato que concede ao seu detentor o direito de ser dono, com exclusividade, de um produto durante um espaço de tempo determinado.
Os países hegemônicos, que investem grandes recursos financeiros em educação, ciência e tecnologia, utilizam-se das patentes para manterem seu poder, especialmente, quando envolve produtos agronômicos e farmacêuticos.
Nesse cenário, após a Guerra das Malvinas, foi convocada a Rodada Uruguai do GATT (sigla em inglês para Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), em 1986, em Punta del Leste, tendo como um dos pontos de pauta a lei da propriedade intelectual, com ênfase nos produtos agronômicos e farmacêuticos.
A reunião foi concluída em abril de 1994, no Catar, com a criação da OMC – Organização Mundial do Comércio, a partir de 01/01/1995 e, entre outras, a exigência de que os países membros aprovassem, com base na Declaração de Doha, a lei da propriedade intelectual e com ela as patentes.
O Parlamento Europeu e a Índia repudiaram as normas sobre patentes indicadas pela OMC; a Argentina exigiu um mínimo de oito anos para ter a sua lei de patentes; os EUA só aceitaram patentes para seus próprios cidadãos e todos os demais países desenvolvidos, se comprometeram estabelecer patentes farmacêuticas e agronômicas só depois que consolidassem suas próprias indústrias nacionais.
O Brasil que teria pelo menos cinco anos para discutir, formular e negociar sua lei de propriedade intelectual, a aprovou, sob pressão das multinacionais e dos Estados Unidos, um texto, comprado junto à WIPO (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), que uma vez traduzido, se tornou a lei brasileira de propriedade intelectual. Após idas e vindas, negociatas, chantagens emocionais e mentiras patrocinadas pelo governo FHC, por setores da imprensa, da intelectualidade e pesquisadores, em maio-96, quatro anos antes do prazo mínimo estipulado pela OMC, foi aprovada a Lei nº 9279, conhecida como lei da propriedade intelectual. Consolidava-se assim, o avanço do descompromisso e a inviabilização da pesquisa científico-tecnológica pelo governo FHC.
Chegamos em 2020, com a pandemia e, no Brasil, com um governo negacionista e disposto a destruir o que resta das instituições estatais que tratam com saúde, educação, ciência, tecnologia. Uma encruzilhada.
 
Ciência e humanismo maltratados pelos interesses econômicos.
 
A espécie humana não está só sobre a Terra, há milhões de outras, embora o seu poder de conhecimento a torne quase invencível. O conhecimento acumulado, contudo, no sistema capitalista, não está disponível para todos os indivíduos como a pandemia evidenciou.
A covid-19 não apareceu por acaso, mas sim como resultado de um capitalismo devastador que alterou o equilíbrio ambiental, forçando muitas das demais espécies migrarem e se aproximarem dos humanos, aumentando as chances de contaminação por vírus e bactérias.
O obstáculo é que muitos indivíduos não conseguem, ou não querem, estabelecer uma ligação entre o vírus e o capitalismo. Basta verificar como a mídia vem tratando o tema; apenas são ouvidos os profissionais especializados da saúde, não há discussão sobre como o capitalismo gera pandemias.
O covid-19 não evidência apenas as fragilidades e limitações humanas, mas também os descaminhos do sistema capitalista. Imaginem, diante de previsíveis e possíveis eventos climáticos extremos, o que nos aguarda com a vigência de um capitalismo financeiro e globalizado interessado nas possibilidades de rentabilidade das aplicações e das patentes?
Numa crise como a atual, não pode haver espaço para o negacionismo científico, mas sim para o conhecimento. Contudo, pode o conhecimento ser comercializado e privatizado? E, o ser humano transformado em provedor e usuário?
Se o conhecimento se tornar mercadoria, deixará de ser um valor de uso, se transformando num valor de troca. A atual corrida de grupos de pesquisadores, laboratórios e empresas farmacêuticas pela comercialização da vacina não só comprovam essa barbárie, como abrem espaço para a falta de legitimidade da ciência; já que o sistema tenta passar como saber o que é de interesse econômico e garanta lucros financeiros. Como confiar num conhecimento dirigido por esse tipo de interesse?
 
Suspender as patentes temporariamente.
 
Se por um lado, desde o início da pandemia as previsões mais otimistas fossem na direção de que uma geração de uma vacina confiável levaria pelo menos 18 meses; por outro, a ação conjunta da OMS – Organização Mundial da Saúde, dos governos, da comunidade científica, e da iniciativa privada possibilitou que, em menos de um ano, se chegasse a várias vacinas.
Com quantidades ainda limitadas, como distribuí-las para à população mundial? Qual seria o critério dessa distribuição? O que deveria ser privilegiado internacionalmente? Por que não suspender as patentes e facilitar a produção?
O critério escolhido foi o pior possível: primeiro os negócios, depois o humanismo e a caridade.
Os países ricos adquiriram a maioria das vacinas, via contratos obscuros. Segundo dados da Duke University (2), os EUA, com 16% da população, reservaram 60% do fornecimento de vacinas, exibindo a brutal desigualdade que o capitalismo impôs ao compartilhamento de recursos importantes para o mundo. Além de não haver vacinas com registro definitivo, também não há vacinas suficientes para todos e os altos preços torna inviável a sua aquisição pelos países mais pobres.
Os contratos obscuros estão levando ao seu não cumprimento e se tornado objeto da ganância pela indústria farmacêutica, senão vejamos: a Pfizer reduziu unilateralmente as entregas para a Itália; Israel, frente a negativa ao pedido de vacinas, aumentou o valor que pagaria e as conseguiu; o Brasil com seus descaminhos e negacionismo governamentais, pagou ao Instituto Serum (Índia), mais do que o dobro do valor pago pela União Europeia pela vacina desenvolvida pela Astrazeneca, cerca de US$ 5,25/dose,  contra US$ 2,16/dose.
Frente a atual emergência de saúde e a ameaça à vida de milhões de pessoas, a Índia, com o apoio da África do Sul, em outubro-2020, apresentou à OMC uma proposta para a suspensão e o licenciamento compulsório (quebra de patente) da produção de vacinas, medicamentos, testes contra a covid-19 e insumos relacionadas à pandemia, para serem produzidos em grande quantidade e disponibilizados a todos os países de forma justa e igualitária entre as populações – e não apenas para aqueles que podem pagar. A entidade Médicos Sem Fronteira, prêmio Nobel da Paz, em 1999, se posicionou em apoio afirmando que - "Uma pandemia global não é hora de continuar fazendo negócios como de costume. Não há lugar para patentes ou lucro de negócios, pois o mundo enfrenta a ameaça do COVID-19".
Com o apoio de 99 países dos 164 que integram a OMC, a proposta foi rejeitada por não ter atingido o mínimo de 123 países. Se posicionaram contra os EUA, Canadá, Austrália, Reino Unido e países da União Europeia. O Brasil (governo Bolsonaro), apesar de ser um exemplo na quebra de patentes para medicamentos genéricos, se alinhou ao ex-presidente Trump rejeitando a proposta. Um grave erro para a saúde global, visto que, como já está ocorrendo, o vírus pode continuar se desenvolvendo e ganhar escala mundial mediante novas mutações, que escaparão da proteção das atuais vacinas. Nos países onde as vacinas demorarem para chegar os efeitos serão mais graves, correndo o risco de se tornar endêmica em várias regiões do mudo.
A pandemia expôs inequivocamente as fissuras profundas existentes há tempos no sistema capitalista, agravadas pela necessidade de volumes de financiamentos públicos sem precedentes, como demonstrado pelas manifestações dos Médicos Sem Fronteira.
O momento exige dos governos coragem e compromisso humanitário suspendendo o direito de patentes; algo previsto pela OMC, na Declaração de Doha, ao reconhecer o poder dos Estados de aplicar limitações aos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, bem como o direito de “determinar o que constitui uma emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência” para justificar tal aplicação.
O Brasil, bem como todos os países periféricos, precisam se posicionar e reivindicar, nos foros internacionais,  suas necessidades e prioridades e adotarem medidas emergências tais como: - priorizar os orçamentos de saúde pública e não a especulação financeira; garantir vacinação universal e gratuita para toda a população; se posicionar, nos foros internacionais, contra qualquer discriminação que dificulte o acesso seguro e eficaz às vacinas e diagnósticos por parte de qualquer país; exigir da indústria farmacêutica transparência pública dos custos, benefícios e preços da produção de vacinas; apoiar e suspender o direito de patentes como já foi feito tempos atrás; promover sem demora políticas públicas de ciência e tecnologia para a produção local de equipamentos, insumos, medicamentos e vacinas, inclusive tendo como perspectiva a complementação das necessidades regionais.
Está cada vez mais evidente que, como defendido pelos Médicos Sem Fronteiras, a suspensão temporária das patentes, pelo menos até que seja atingida a imunidade mundial permitiria o aumento da produção, contribuindo para um maior equilíbrio na distribuição dos medicamentos e vacinas.
Finalmente, é importante ressaltar, até pela destruição que vem sendo imposta às universidades públicas, a posição da Reitora da UNIFESP, Soraya Smaili, após o trabalho realizado em parceria com a Universidade de Oxford (vacina da Astrazeneca), em defesa da quebra das patentes das vacinas contra a covid-19, como forma de garantir a soberania e autonomia do Brasil, viabilizando a produção por instituições públicas como o Instituto Butantã e a Fiocruz, e sem a dependência de fornecedores estrangeiros.
 
*José Domingues de Godoi Filho – UFMT/Faculdade de Geociências 

(1) Shiva, Vandana – Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. 

(2) Ensuring Everyone in the World Gets a COVID Vaccine – Disponível em: https://globalhealth.duke.edu/news/ensuring-everyone-world-gets-covid-vaccine - Acesso em 01/02/2021. 

 
Terça, 19 Janeiro 2021 16:30


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José Domingues de Godoi Filho(1) 

O atual Governo de Mato Grosso, no que se refere ao processo de licenciamento ambiental, vem seguindo a orientação do medonho Ministro do Meio Ambiente e vai “passando a boiada”, especialmente para as obras e projetos de infraestrutura do programa que denominou “Mais MT”, o qual, segundo a propaganda oficial, será o “maior programa de investimentos da história do Estado”. Alardeia que “serão 2400 quilômetros de asfalto novo, restauração de 3 mil quilômetros de asfalto, cinco mil pontes, iluminação para as cidades, entre outros projetos”. As obras de infraestrutura consumirão cerca de 50% do total de recursos do programa “Mais MT”, isto é, R$ 4,73 bilhões. Não é demais lembrar os atuais governantes o desastre ambiental que foi produzido por um governo que, no início dos anos 80 do século passado, prometia 40 anos em 4.
 
Os primeiros sinais vêm da constatação, por profissionais de geociências, que estão trabalhando na região, do desrespeito a um importante patrimônio geológico brasileiro e mundial representado pelo Domo de Araguainha, uma das poucas e grande estrutura provocada por impacto meteorítico, situada na divisa Mato Grosso-Goiás. Há décadas pesquisadores, do Brasil e exterior, estudam a região produzindo trabalhos científicos, dissertações, teses, capítulos de livros, dentre outras publicações, para melhor compreender as transformações ocorridas.
 
O Serviço Geológico do Brasil, em 1999, ao publicar o livro “Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil”, incluiu um capítulo intitulado “Domo de Araguainha – o maior astroblema da América do Sul”.
 
Contudo, “ existe uma pedra no caminho”, corta a região a rodovia MT-100, que, em 14 de agosto de 2020, foi licitada (RDC Presencial N.013/2020):
 
“REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO PRESENCIAL, PARA CONTRATAÇÃO DE EMPRESA DE ENGENHARIA PARA EXECUÇÃO DOS SERVIÇOS DE IMPLANTAÇÃO E PAVIMENTAÇÃO DA RODOVIA MT-100, TRECHO: ENTR. BR-364(B)MT/299 – PONTE BRANCA, SEGMENTO 1: ENTR. BR-364(B)/MT-299 (ESTACA 2.035) – ENTR.MT-463/ACESSO (A) PARA RIBEIRÃOZINHO (ESTACA 3.035), SEGMENTO 2: ARAGUAINHA (ESTACA 3.035) – PONTE BRANCA (ESTACA 4.504+10,00), COM EXTENSÃO TOTAL DE 49,39 KM”.
 
Como agravante, o negacionismo científico que vivemos, também adotado pelo atual Governo de Mato Grosso, conforme demonstrou em observações divulgadas o  ano passado sobre a pandemia, nos relatórios que acompanharam o processo licitatório (acessíveis, em 16/01/2021, no endereço http://www.sinfra.mt.gov.br/-/15142801-rdc-presencial-n.-013/2020) não há qualquer referência ao Domo de Araguainha, nem um estudo para a avaliação de possíveis impactos ambientais,  num flagrante desrespeito às Constituições Federal e Estadual e à RESOLUÇÃO CONAMA 001/1986 como um todo e, especialmente em relação ao Artigo 6º, alínea c que alerta para a importância do “meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a sócio-economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos”. Além de demonstrar desconhecimento(?) da região e desprezo pela legislação vigente, se escondem por detrás da pandemia e fecham os olhos para que “a boiada passe”.
 
As preocupações ambientais da SINFRA-MT se referem, como consta do documento “Informações complementares para as obras de implantação e pavimentação da rodovia MT-100”, aos seguintes itens:
 
“10 – CRITÉRIOS DE SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL A SEREM ADOTADOS NA EXECUÇÃO DOS SERVIÇOS.
 
10.1 A empresa contratada deverá utilizar na execução da obra as boas práticas de sustentabilidade ambiental, respeitando-se os critérios de sustentabilidade ambiental indicados abaixo:
 
10.1.1 Uso de produtos de limpeza e conservação de superfícies e objetos inanimados que obedeçam às classificações e especificações da ANVISA.
 
10.1.2 Adoção de práticas que evitem desperdícios de água potável.
 
10.1.3 Implementação de um programa de treinamento de seus empregados visando o uso racional de consumo de energia elétrica e água, bem como redução de resíduos sólidos.
 
10.1.4 Classificação e destinação adequada dos resíduos recicláveis produzidos durante a execução dos serviços. Especificamente para papéis e latas de alumínio deve-se contatar as Associações e/ou Cooperativas locais de catadores de materiais recicláveis.
 
10.1.5 Práticas de redução de consumo de papel, utilizando o padrão frente-verso na impressão de relatórios e outros documentos, bem como utilize a fonte ecológica recomendada pela Advocacia Geral da União, disponível no endereço eletrônicowww.agu.gov.br/econfont.
10.1.6 Adoção de uso preferencialmente de papel não clorado na impressão de documentos e relatórios.
 
10.1.7 Adoção de práticas de substituição de copos descartáveis por copos definitivos.
 
10.1.8 Adoção de prática de destinação final das pilhas e baterias usadas ou inservíveis, segundo a Resolução CONAMA Nº 257/1999.
 
10.1.9 Atendimento aos padrões indicados pela RESOLUÇÃO Nº 20/1994 quando da aquisição e utilização de equipamentos de limpeza que gerem ruídos em seu funcionamento.
 
10.1.10 Adoção e promoção de medidas de proteção para a redução ou neutralização dos riscos ocupacionais aos seus empregados, além do fornecimento de equipamentos de proteção individuais – EPI’s necessários, tais como óculos, luvas, aventais, máscaras, calçados apropriados, protetores auriculares, etc., fiscalizando e zelando para que eles cumpram as normas e procedimentos destinados à preservação de suas integridades físicas.
 
10.1.11 Considerações nas pesquisas de preços para aquisições e serviços contemplados no escopo da contratação empresas que tenham certificado ambiental.
 
10.1.13 Atendimento as Instruções de Serviços do DNIT, principalmente a Instrução de Serviço nº 03/2011, de 04 de fevereiro de 2011, publicada no Boletim Administrativo nº 06 de 07 a 11/02/11 que trata da Responsabilidade Ambiental das Contratadas – RAC.
 
Somam-se as ações mínimas básicas de engenharia, que aparecem no volume que trata do projeto, ou seja, medidas que “evitem que as valas abertas para retirada de material para confecção do corpo estradal sejam causadoras de pontas de erosão ou geração de focos de enfermidade, e a eliminação dos efeitos causados na paisagem regional pelos terrenos desmatados para exploração de caixas de empréstimos, jazidas, execução de bota-fora, canteiros de obra, etc., através da regeneração da natureza nestes locais”.
 
Com as simplificações no licenciamento ambiental, inspiradas pelo medonho que ocupa o Ministério do Meio Ambiente com o apoio do capitão que desgoverna o país, o atual Governo de Mato Grosso baterá todos os recordes de destruição, inclusive as produzidas pelos governantes dos 40 anos em 4. Ainda há tempo para que a Assembleia Legislativa promova audiências públicas para diminuir a voracidade do “Mais MT” e o Ministério Público reaja e não fique esperando os questionáveis “termos de ajustes de conduta”.
 
(1) Professor da UFMT/Faculdade de Geociências

Quarta, 13 Janeiro 2021 09:55


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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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José Domingues de Godoi Filho(¹)
 

“As coisas que acontecem por aqui, acontecem paradas.
Acontecem porque não foram movidas.
Ou então, melhor dizendo: desacontecem.
Dez anos de seca tivemos.
Só trator navegando de estadão, pelos campos. (...)
(Carreta Pantaneira, Manoel de Barros, 1985) 

Pantanal Mato-grossense é o nome dado para uma planície com uma    das maiores extensões úmidas contínuas do planeta, situada no centro da América do Sul (Figura 1). Com altitude média de 100m e área aproximada de 140 000 km², é circundado por um planalto com altitude variável entre 600 e 1000 metros, que representa a área fonte de água, sedimentos e toda espécie de resíduos. Como consequência sua evolução física e biológica pretérita, atual e futura está diretamente submetida às condições ambientais dos planaltos.
 
O Pantanal Mato-grossense é uma paisagem geológica recente, resultante da evolução da placa tectônica sul americana, que o individualizou após o soerguimento da cadeia andina. Os rios possuem baixo declive, com descarga pouco uniforme e períodos de inundação prolongada. Devido à baixa declividade, a água que cai nas cabeceiras do rio Paraguai pode levar meses para atravessar o Pantanal.
 
Além das áreas sem alagamento periódico e campos inundáveis, caracterizam a paisagem pantaneira feições, localmente definidas como: - baías (lagoas de diferentes formas e dimensões), salinas (baías com grandes concentrações de sais alcalinos), cordilheiras (elevações do terreno que separam baías), capões-de-mato (semelhantes às cordilheiras, porém circulares) , vazantes (canais que servem de escoadouros às baías e rios) e corixos ( pequenos rios que conectam baías).
 
Nesse cenário diverso, a Embrapa Pantanal verificou que o Pantanal não é um só. São onze pantanais com características próprias de solo, vegetação e clima: Cáceres, Poconé, Barão de Melgaço, Paraguai, Paiaguás, Nhecolândia, Abobral, Aquidauana, Miranda, Nabileque e Porto Murtinho.
 
OS IMPACTOS AMBIENTAIS
 
É fundamental ressaltar que além dos fatores que atuam há milhões de anos na formação da região pantaneira, outros resultam direta e indiretamente da ocupação humana. A degradação e ameaças ambientais geradas ou agravadas pela espécie humana na região vem crescendo em frequência e intensidade, desde pelo menos o início dos anos 1980 com a implantação de usinas de álcool, usinas hidrelétricas, garimpos, expansão de áreas urbanas sem tratamento de esgotos, intensificação do plantio de soja, milho e algodão nas terras altas e mesmo no interior da planície.
 
Como agravante a preservação do Pantanal não pode ser desvinculada de um outro problema, isto é, o processo de ocupação da Amazônia. A BR-364 (Cuiabá-Porto Velho), que cruza as terras altas da porção norte do Pantanal foi e é uma das principais entradas para a “invasão” da Amazônia, programada pela antiga SUDECO – Superintendência para o Desenvolvimento do Centro-oeste.
 
O agronegócio, com práticas nefastas para as condições ambientais, devastou a região e não respeitou nem mesmo as terras indígenas e das populações locais, além de pressionarem as áreas e estações de preservação permanente.
 
Todo o conjunto dessas atividades estranhas à região, somadas a práticas de trabalho precário imposto a muitos pantaneiros, contribuiu para a ruptura das relações sociais vigentes. Muitos pantaneiros deixaram a região na esperança de conseguir melhores condições de vida. Com isso, novos proprietários se instalaram na região para criar gado com prática diferente da adotada historicamente pelo pantaneiro, o que tem contribuído, significativamente, para o aumento de queimadas, especialmente, em períodos de seca mais intensa e com ciclo previsível, como as ocorridas em 2020.

 

De 2019 para cá, com a posse de um governo negacionista e com postura de liberar a devastação, houve um impensável processo de desregulação ambiental, desconstrução do aparato institucional e da política nacional de meio ambiente para que a “boiada passasse”, via precarização e omissão na fiscalização e aplicação das penalidades previstas em lei. As previsíveis queimadas, criminosas ou não, de 2020, são um exemplo das consequências do desrespeito às mais elementares normas de preservação e conservação ambiental.
 
PANTANAL MATO-GROSSENSE: RESERVA DA BIOSFERA.
 
Em função de suas características e importância, em 2000, a UNESCO reconheceu o Pantanal Mato-grossense como Reserva da Biosfera. As atividades econômicas necessitam, contudo, de rigoroso manejo do solo, convivência com os períodos de cheia e controle do desmatamento. As cheias modificam a qualidade do solo e a produtividade do Pantanal por transportarem água, sedimentos e resíduos antrópicos da região circunvizinha. O desmatamento e a urbanização desorganizada de suas bordas afetam a quantidade e a qualidade da água, os sedimentos e a velocidade de transporte desses materiais para as terras baixas, alterando gravemente o equilíbrio socioambiental.
 
O Pantanal e sua área de influência representam uma região singular de alta complexidade, ainda pouco conhecida cientificamente e, sobremaneira rica e frágil. Sem um criterioso planejamento, reivindicado pelos pantaneiros, desde os anos 1970, o aproveitamento de seus recursos naturais, renováveis e permanentes, e, todo seu potencial econômico e socioambiental sofrerá danos irreparáveis para o futuro da região, como demonstrado nos acontecimentos de 2020.
 

No paraíso das águas, o desrespeito à sua qualidade significa o desrespeito à vida.
 
Figura 1: Fonte – Godoi Filho, J.D. (1984)
 
Texto publicado pelo Núcleo Piratininga de Comunicação – Livro-agenda 2021.
 
(¹José Domingues de Godoi Filho – Professor da     UFMT/Faculdade de Geociências.

Terça, 20 Outubro 2020 09:37

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por José Domingues de Godoi Filho*

 

 

A vida é pra valer
Não se engane, não
É uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem sem provar
muito bem provado com certidão passada em cartório do Céu assinado embaixo: Deus!
E com firma reconhecida (1)

 

 

Se estivesse por aqui tomando whisky e escrevendo poemas, em 19/10/2020, o grande “poetinha” estaria completando 107 anos. Sua presença, no meio de uma pandemia,  foi resgatada pelo Vaticano que “propõe um convite a um amor que ultrapassa barreiras da geografia e do espaço” e “...uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita”.(2)

Ao resgatar o verso “...A vida é arte do encontro...”, o Papa Francisco o fez pinçando-o de um afrosamba, em tempos de racismo crescente, de desrespeito às religiões de matriz afrodescendentes, de negacionismo científico, de agressões impensáveis ao ambiente que vivemos e de uma desigualdade social jamais vista.

Nada mais atual, para nós brasileiros, num país majoritariamente cristão e com importante presença de religiões de matriz africanas ,  sermos lembrados que São Francisco, o mesmo que tem inspirado o Papa, “se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda parte e andou junto aos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos”.

Chegamos ao final da segunda década do século XXI com uma pandemia, que está expondo as entranhas do capitalismo e demonstrando a insuficiência da festejada interconexão existente para resolver os problemas que afetam a espécie humana. Também não se trata de pensar a volta ao normal e, negar a realidade que vivemos.

A vida é “arte do encontro” e, para que “os desencontros” sejam evitados, num dos momentos mais graves desde a II Guerra Mundial, se faz necessário, “um anseio mundial de fraternidade”(2) e de união daqueles que não têm nada a perder. Não haverá volta ao “normal”; ao contrário, a desigualdade social e a miséria só tenderão a aumentar. Para atender o pedido de “benção” do poetinha e fortalecermos a “arte do encontro”, se faz necessário barrar os métodos “democráticos e humanitários”, utilizados pelo governo americano  para garantir seus interesses e transformar o mundo num videogame, que  justifique suas intervenções militares,  em regiões como a América Latina, onde conta com o apoio da burguesia e das oligarquias locais. Há a necessidade urgente de unir forças para enfrentar o renascimento de velhas paranoias militares que justifiquem golpes e ações de “tocar a boiada”, ou seja: terras indígenas e áreas de preservação infiltradas por ongs; forças armadas revolucionárias; movimentos de trabalhadores rurais; renascimento de movimentos sociais urbanos; setores universitários e de instituições de pesquisa discutindo e construindo alternativas políticas “vermelhas” de desenvolvimento; povos indígenas latifundiários prejudicando os interesses das empresas de mineração e energia; relações promíscuas nas áreas de fronteiras internacionais, dentre outras.

O poetinha que está acrescentando mais um pedido de “benção” ao seu poema, não se furtará de incluir todos que passem a aceitar que, “de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes” (2).

Sarava!!

 

(1) Moraes, V. Samba da Bênção

Disponível em: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/musica/cancoes/samba-da-bencao - Acessado em 19/10/2020

 

(2) CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL. Disponível em:

http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html  - Acesso em 19/10/2020

 

*José Domingues de Godoi Filho – Professor da Universidade Federal de Mato Grosso/Faculdade de Geociências