Sexta, 01 Agosto 2025 11:20

A TERCEIRA REVOLUÇÃO ENERGÉTICA DOS SAPIENS: O DOMÍNIO DA FORÇA ANIMAL - Danilo de Souza

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Por Danilo de Souza*

Depois de desenvolver o controle primitivo do fogo, e em meio à domesticação da fotossíntese pela construção da agricultura, os Sapiens deram mais um passo decisivo na longa caminhada civilizatória: aprenderam a converter a energia dos animais domesticados em trabalho útil. Essa capacidade aparentemente simples de utilizar bois, cavalos, burros, camelos e outros animais para puxar cargas, arar a terra ou movimentar moinhos representa uma profunda transformação na história energética da humanidade. Trata-se de uma das grandes revoluções energéticas externas, a domesticação da força animal, a conversão da energia biológica em tração e movimento.

Segundo o Prof. Vaclav Smil, essa foi a principal forma de aumentar o rendimento energético do trabalho antes da Revolução Industrial. A força de tração animal permitiu multiplicar a capacidade humana de produzir, transportar e transformar o mundo físico sem recorrer à força de trabalho escravizada ou à energia do próprio corpo. O boi arando o campo ou o cavalo puxando uma carroça é a expressão direta desse salto civilizatório.

Energeticamente, o processo é claro. Animais herbívoros ingerem vegetais, acumulam energia química em forma de biomassa e convertem parte dela em movimento. Ao serem domesticados, os Sapiens passaram a controlar essa conversão, colocando-a a serviço da agricultura, do transporte e da guerra. Diferentemente do fogo, que quebra as ligações químicas da madeira, liberando energia na forma de calor e de luz, ou da fotossíntese, que transforma luz solar em calorias alimentares, a tração animal representa uma das primeiras formas de converter energia biológica em energia mecânica, sendo externas ao corpo dos Sapiens.

Um homem adulto saudável é capaz de produzir entre 75 e 100 watts de potência contínua em atividades físicas moderadas. Já um boi ou um cavalo pode fornecer entre 500 e 800 watts de forma sustentada, o equivalente a seis a 10 homens.

Portanto, o boi, o cavalo, o dromedário e o búfalo, cada um com diferentes potências e resistências, passaram a ser motores vivos integrados ao cotidiano das sociedades humanas. Mazoyer e Roudart (2009), em sua obra sobre a história da agricultura, destacam que a tração animal foi essencial para superar os limites biofísicos do corpo humano. O uso de animais aumentou drasticamente a produtividade agrícola por unidade de trabalho humano. Com um arado puxado por bois, um lavrador podia cultivar superfícies muito maiores do que com ferramentas manuais.

A domesticação do boi para tração ocorreu por volta de seis mil anos antes de Cristo, no Crescente Fértil, e depois se espalhou para a Índia, a África e a Europa. Já o cavalo, domesticado nas estepes da Eurásia por volta de três mil anos antes de Cristo, revolucionaria a agricultura, e consequentemente o transporte e a guerra. A biga puxada por cavalos alteraria o curso de batalhas. O camelo permitiu a travessia de desertos. O búfalo asiático foi essencial nos arrozais da China. A energia dos animais moldou geografias inteiras.

 

 

Uma das representações visuais mais antigas desse processo encontra-se na tumba de Sennedjem, artesão egípcio que viveu durante os reinados de Séti I e Ramsés II, por volta de 1200 a.C. Na pintura, vemos um camponês conduzindo um arado puxado por bois, simbolizando uma técnica agrícola, que utilizava energia externa ao corpo humano para produzir movimento.

Fernand Braudel (1979), em Civilização Material, Economia e Capitalismo, observa que as sociedades pré-industriais dependiam enormemente da energia animal. Tudo que andava, arava, puxava ou girava era movido por músculos, humanos ou animais. Os próprios moinhos, símbolos da revolução dos fluxos, muitas vezes só se tornaram viáveis com a tração inicial dos animais. Antes da energia fóssil, havia a força dos cascos.

A força animal tornou possível o surgimento de excedentes agrícolas, a expansão de territórios, o transporte de mercadorias em longas distâncias e até mesmo a construção de grandes obras.

 Jared Diamond (1997), em Armas, Germes e Aço, destaca que apenas algumas regiões do planeta dispunham de grandes mamíferos domesticáveis, o que teve impactos profundos na trajetória das civilizações. Das 14 espécies domesticadas em larga escala, 13 eram originárias da Eurásia (Europa e Ásia) como bois, cavalos, porcos e camelos. Na América do Sul, apenas a lhama foi domesticada, e mesmo ela tinha limitações importantes: não servia para arar, não produzia leite e não era montável. Esse acesso desigual a animais de tração e carga gerou uma profunda assimetria histórica. Em regiões com essas espécies, foi possível ampliar drasticamente a produção agrícola, a mobilidade e até a eficácia militar.

Apesar de seus ganhos, a tração animal também tem limites. A conversão de vegetais em trabalho via animal é ineficiente do ponto de vista puramente termodinâmico, pois mais de 90% da energia é perdida no metabolismo do animal antes de se transformar em força útil. Mas essa energia era “gratuita”, captada via pasto ou forragem, o que tornava sua ineficiência aceitável.

E se olharmos atentos, podemos observar uma ambivalência simbólica. Os animais de tração aparecem nas mitologias e ritos. O Centauro, meio homem meio cavalo, expressa a fusão entre intelecto e força. O Minotauro, meio homem meio touro, representa a dominação e o poder da força animal. Em ambas as figuras, há um reconhecimento da força bruta como parte constitutiva da humanidade civilizada, seja para trabalhar a terra ou guerrear.

A própria linguagem reflete essa herança. Dizemos força bruta, animal de carga, potência de tração. Até mesmo a unidade cavalo-vapor (CV ou Horsepower - HP), utilizada até hoje em muitos países para especificação de motores (elétricos ou de combustão), sobreviveu como medida simbólica da potência, uma lembrança da época em que o cavalo era, de fato, o motor mais eficiente disponível.

Importante destacar que essa revolução energética é externa ao corpo humano, mas não necessariamente libertadora. Em muitas sociedades, a força animal se somava, e não substituía, à força de trabalho humano, seja ele servil, assalariado ou escravizado. A relação entre força animal e exploração humana é profunda e estrutural.

No entanto, do ponto de vista técnico e energético, o uso de tração animal marca uma passagem fundamental. Os Sapiens tornaram-se controladores de uma força externa, capaz de armazenar energia em biomassa, converter em movimento e aplicar com finalidade produtiva. Essa lógica, conversão, controle e uso de energia externa, esteve presente em todas as revoluções energéticas seguintes: das turbinas às usinas nucleares.

A domesticação da força animal constituiu uma revolução lenta, difusa e heterogênea. Não teve um marco preciso, uma data inaugural ou um nome consagrado, ligeiramente diferente das demais etapas abordadas, e seguindo a nossa trajetória de reflexão, em que a dimensão biofísica se sobressai ao recorte puramente social. Ainda assim, esta revolução energética moldou profundamente a organização do trabalho, o traçado das cidades, a estrutura das economias e a iconografia das civilizações.

Antes do vapor, dos combustíveis fósseis e da eletricidade, havia o boi, o burro, o cavalo, animais vivos, que respiravam, se alimentavam, e que funcionavam como motores orgânicos. Dessa forma, a energia animal acelerou o progresso técnico, ampliou a construção das estruturas sociais e políticas, o que explica, em parte, por que algumas sociedades que tiveram esta disponibilidade avançaram mais rapidamente do que outras.

  

Coluna publicada mensalmente na revista - "O Setor Elétrico".

 

*Danilo de Souza é professor na FAET/UFMT e pesquisador no NIEPE/FE/UFMT e no Instituto de Energia e Ambiente IEE/USP.

 

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