Sexta, 25 Junho 2021 08:28

O ÚLTIMO APAGA A LUZ - Aldi Nestor de Souza

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza*
 

Por trás de Edivaldo estão a Espanha, os Emirados Árabes e alguns séculos de história. Na sua frente está dona Margarida, na vizinhança dos 80 anos, viúva, devota de nossa senhora da Conceição, moradora da pequena cidade de Lages, sertão do Rio Grande do Norte. É cedo do dia, dona Margarida tomou café da manhã e estávarrendoa calçada. É lúcida.
 
A razão do encontro é que a Espanha e os Emirados Árabes, como já o fizeram com centenas de outras casas da cidade, querem alugar a de dona Margarida. Três quartos, sala, cozinha, banheiro e quintal. Herança reformada de vários antepassados. É a casa da família, de toda a sua história e que dá pra abrigar 10 pessoas com tranquilidade.
 
As serras, o vento da região e a implementação da energia eólica, em popa em todo o estado,  alvoroçam a cidade e fazem os olhos do mundo mirarem o discretomunicípio. Caminhões, máquinas, guindastes e uma legião de trabalhadores formigueiram o encosto das serras da redondeza, que aos poucos vão transmutandoa paisagem.  É digno de nota também o que está acontecendo no litoral,  nos cartões postais do estado que ganharam a companhia de gigantes moinhos de vento. Não dá pra andar no estado sem lembrar de dom Quixote.
 
Não é venda o que se quer da casa, é aluguel, e é bom frisar isso. A ocupação é temporária, sem finalidade de estabelecer relações ou vínculos e vai durar apenas o tempo de instalação do empreendimento, da colonização do vento. Depois a cidade volta a sua rotina, quietude,negócios, empregos e vida de costume. E dona Margarida poderá voltar pra sua casa.
 
Para Edivaldo conseguir desempenhar esse cargo de aliciador de imóveis, foi fundamental o curso de bacharel em Ciência e Tecnologia, de duração de três anos, ofertado pela Ufersa-Universidade Federal Rural do Semi Árido, que ele concluiu com láurea, no campus da cidade de Angicos, há poucos quilômetros de Lages. Ele é o primeiro de sua família a transpor os muros do ensino superior.
 
O encontro com dona Margarida se deu numa segunda feira de junho, no mesmo dia em que a Eletrobrás foi privatizada. As bolsas de valores do mundo todo, em particular a da Europa e a do Oriente Médio souberam desse encontro e sabem tudo de Edivaldo, de dona Margarida, da Ufersa, das universidades em geral, das autoridades e do governo brasileiros, dos detalhes da pilhagem da privatização.  E há quem acredite e defenda que tudo isso não passa de mais uma etapa exitosa de desenvolvimento.
 
Edivaldo, que pretende, agora mais do que nunca, seguir estudos na engenharia elétrica, é vendido como portador deuma estatística louvável:É um jovem, com diploma e emprego.As autoridades governamentais e os operadores universitários,não descartam o fato de que ele poderá acompanhar e crescer na terceirizada que o contratou eque presta serviços paraa multinacional.Quem sabe ele não vira auxiliar de engenheiro. Afinal, o que mais tem no sertão são serras e ventos desocupados.  Até uma moto Honda, CG, 150 cilindradas, ele já adquiriu. Edivaldo tem até carteira assinada.
 
Dona Margarida, que não frequentou escola, tinha 20 anos quando o educador Paulo Freire andou por Angicos com seu projeto de alfabetização de adultos. Não deu. Ela carrega pelo corpoas marcas inequívocas de um país que fala grosso com o seu povo e fino com os impérios do estrangeiro.  Ela diz bassoura e barrer, escancarando,  naquilo que talvez seja um dos bens mais preciosos de um povo, que é a sua língua, uma Espanha acostumada a tantas,  tamanhase corriqueiras colonizações. 
 
Da calçada de dona Margarida o sol não serámais o mesmo. As aspas dos moinhos de vento, plantados no espinhaço da serra, fazem girar a visão, inquietam o sertão, perturbam o sossego das serras e dão cutiladas no bucho do astro rei. 

 



 

Bem longe dali essa pilhagem dos nossos recursos, essa colonização do nosso vento, alimenta, com negócios milionários, a sanha do mercado internacional de comodities. E o esforço, a história e os préstimos de gente como Edivaldo ea gentileza de casas como a de dona Margarida andarão por algumas linhas de transmissão e depois cruzarão o oceano, até repousar nas contas bancárias de algum gringo desconhecido que jamais pôs ou porá os pés em Lages.
 
Num dizer mais encorpado e bem mais elaborado, na linguagem de uma tese, que foi ao ar em 2019, pela Geografia da UFRN, com o título TERRITÓRIO, TÉCNICA E ELETRIFICAÇÃO, o autor Marcos Antônio Alves de Araújo, impiedosa e duramente conclui.
 
“Os resultados obtidos nos conduziram a ratificar a tese, ora defendida, de que a realização do subcircuito eólico no Rio Grande do Norte tem ocorrido a partir da expansão técnica, normativa e produtiva do macrossistema elétrico nacional no estado, e de sua estrangeirização, financeirização e oligopolização, resultado da fusão e concentração de capitais e da desnacionalização do setor elétrico via processos de aquisição de empresas e ativos domésticos por grandes grupos econômicos internacionais que já controlam, majoritariamente, os segmentos de geração, distribuição e comercialização de energia, e que avançam sobre a transmissão. Isso nos leva a concluir que vem acontecendo no meio geográfico potiguar um processo, outrora observado pelo professor Milton Santos no território brasileiro, de expansão dos espaços nacionais da economia internacional, agora através da energia elétrica.”
 
O valor do aluguel da casa, por um contrato de um ano, será de dois mil reais por mês, que junto com a aposentadoria de um salário mínimo, deixará dona Margaridaentre as maiores rendas mensais da cidade e fará com que ela multiplique seus ganhos, por três, pela primeira vez na vida.
 
P.S. O governo federal tem na agenda a privatização do que ainda resta, por exemplo, dos correios, da Petrobrás, dos bancos públicos e a reforma administrativa. É privada e espanhola a empresa de energia elétrica do Amapá, que viveu, tempos atrás, um apagão de vários dias. Os custos do Apagão foram repassados para os consumidores. As universidades, mergulhadas no ensino remoto, discutem país afora se e quando voltam ao ensino presencial e exigem condições sanitárias para tal.
 

 
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT, campus de Cuiabá
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Ler 743 vezes Última modificação em Sexta, 25 Junho 2021 08:33