Sexta, 18 Dezembro 2020 20:10

Mesmo com pandemia, cerca de 180 famílias sofrem despejo em área próxima ao bairro Praeirinho, em Cuiabá Destaque

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 Atualizada às 10h45 do dia 19/12/2020 para correções de informações jurídicas. 

 

Além das milhares de mortes provocadas pela Covid-19, um dos aspectos mais tristes dessa pandemia tem sido observar a prevalência do modo capitalista de agir. Nem mesmo uma tragédia de proporção mundial foi capaz de barrar, por alguns meses sequer, a cólera neoliberal de prejudicar a população socialmente vulnerável para beneficiar quem tem posses, de sacrificar centenas de necessitados para favorecer um único privilegiado.

 

Os interesses financeiros e comerciais não deram espaço para qualquer sentimento de solidariedade capaz de impedir dezenas de despejos no período recente mais difícil da humanidade.

 

Foram mais de 30 entre março e agosto, em diversas regiões do país, atingindo 6.373 famílias, segundo a Campanha Despejo Zero. No mesmo período, outros 85 casos de ameaças de despejo foram contabilizados, causando ainda mais medo e insegurança para outras 18.840 famílias. Alguns deles, amplamente noticiados, foram no Quilombo Campo Grande em Minas Gerais, no PA Flexas em Cáceres, e mais recentemente na Comunidade Porta da Amazônia, em Confresa, os dois últimos em Mato Grosso.  

 

Já na pandemia, no dia seis de junho deste ano, algumas famílias começaram a ocupar um espaço ao lado do bairro Praeirinho, em Cuiabá. Moradores antigos afirmam que a área nunca havia sido ocupada por ninguém. Após a abertura de ruas e a divisão dos lotes, novas famílias foram chegando, muitos desempregados, que pediram ajuda para levantarem uma estrutura mínima para moradia. Cerca de 180 famílias encontraram ali um porto seguro em meio ao caos dos últimos meses.

 

Uma ocupante de 28 anos, que terá a identidade preservada, conta que foi para a ocupação por necessidade. “Eu estava sem condições de pagar aluguel, com cinco filhos, aí fiquei sabendo da ocupação e fui junto com o pessoal. Por necessidade, porque eu precisava muito mesmo ir. Eu saí pela Beira Rio, aquelas empresas grandes, saí pedindo paletes, carregando, pedi telha, pedi as coisas, construí minha casa e assim que ficou pronta eu entrei e fui morar. Tinha cinco meses que eu estava morando lá, junto com os meus filhos. Foi um alívio pra mim, porque eu não tinha condições de pagar aluguel, eu fiquei desempregada. Agora eu voltei paro aluguel, mas tenho esperança de que vai dar certo de voltar. A gente precisa, se a gente tivesse lá ia passar um natal bem, ano novo bem, com um dinheirinho, e agora como nós vamos passar?”, comentou.

 

Já em setembro, os moradores ocupados souberam que havia um pedido de reintegração de posse, e fizeram uma cotinha para arrecadar dinheiro e contratar um advogado. Segundo os moradores, é de conhecimento geral que a área não está documentada, não há provas de que a propriedade seja da pessoa que estava reivindicando. Mesmo assim, o advogado não conseguiu derrubar o pedido de liminar, como explica outra moradora.

 

“O advogado falou que nós conseguimos passar que a terra não é dele em si, o pessoal que mora lá no bairro há mais tempo, 35 anos, sabe que não é dele. Ele tinha, sim, uma parte de cima, mas aí ele pegou tudo. A verdade é essa. O poder aquisitivo falou mais alto. Até então a terra não tinha melhoria de nada, era mata fechada, era uma área de preservação permanente, não tem matrícula, nada disso”, afirmou a moradora.

 

Dois meses depois, algumas pessoas receberam a notificação de reintegração de posse, com data retroativa de 25 de novembro, e previsão de desocupação em dois de dezembro.

 

Um dia antes da data prevista, os moradores se reuniram e trancaram uma rua do bairro Praeirinho para tentar chamar a atenção da imprensa e do Poder Judiciário, mas não surtiu efeito. Desanimadas, algumas pessoas começaram a desmontar seus barracos.

 

“Muitos não conseguiram tirar nada, alguns acharam que a gente não ia sair, mas a polícia disse que quem tinha tirado tinha tirado, quem não tinha não ia mais tirar. Tanto é que derrubaram tudo, todos os barracos foram derrubados, só tiraram as coisas de dentro, e derrubaram tudo. Quem tem mais poder aquisitivo sempre ganha mais alto. A gente está lutando por um espaço, são quase 180 famílias e a Justiça foi lá e deu para uma só pessoa. Agora só vive pegando fogo, ele está destruindo o que a gente tinha plantado. Está destruindo tudo. É uma sensação de injustiça mesmo”, concluiu.

 

Para outro morador, ficou o trauma de ter sido expulso sem qualquer tipo de humanidade. “Infelizmente expulsaram a gente de lá como cachorros, foi desumano. Deram meia hora para tirar as coisas, como a gente ia tirar geladeira, fogão? Tinha criança chorando, roupa no chão. Não deram tempo para quase nada. E nós falamos ‘pelo menos vamos entrar num acordo’, nem acordo queriam. Foi muito difícil, foi choro para todo lado, família precisando. Não precisava disso. Agora vai olhar o mato lá, como está. Não tem nem como explicar, não tem nem palavras”.

 

Outra moradora também relata a perversidade da ação de despejo. “Eu acordei as cinco e pouco da manhã, para gente ir, porque a gente estava com medo do que ia acontecer, de perder, porque a gente construiu barraco, comprou madeirite, cimento, construiu contra piso. A gente já estava morando, a gente tem foto. A gente ficou lá até umas sete horas. De repente veio aquele exército de polícia, o que nem tinha necessidade, porque ninguém ia fazer nada. A gente estava ciente que ia sair. Um exército de polícia, um oficial de justiça muito grosso com a gente, muito mal educado, falou que queria terminar a reintegração na parte da manhã mesmo, que não queria perder tempo com aquilo. Foi muito triste. Muito triste porque a gente construiu. Querendo ou não a gente não tem muita coisa, e o pouco que a gente fez, que a gente construiu foi tudo demolido, o trator passou por cima de tudo”, relatou.   

 

Nesse momento, advogados independentes e entidades de trabalhadores estão organizados para cadastrar as famílias e tentar garantir o retorno ao local.     

 

Vale destacar que até a Organização das Nações Unidas (ONU) cobrou oficialmente o Governo Federal brasileiro para que editasse uma lei impedindo todos os tipos de despejos em território nacional durante a pandemia. Em nota, a instituição internacional destacou que os despejos forçados de pessoas em situação vulnerável, independentemente do status legal de posse, é uma violação aos direitos humanos.

 

No Brasil, moradia é um direito constitucional, de competência comum da União, dos estados e dos municípios. É dever do Estado “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.

 

Se é na Lei que os que reivindicam a propriedade de terra se apoiam para retirar famílias, deve ser a mesma Lei, baseada na Constituição Federal, a garantia de permanência no local daqueles que mais necessitam.

 

 

 

Luana Soutos

Assessoria de Imprensa da Adufmat-Ssind   

 

Ler 780 vezes Última modificação em Sábado, 19 Dezembro 2020 10:50