Segunda, 28 Novembro 2016 09:25

ENTREVISTA: “É o intelectual público que pode, junto com as lutas sociais, refletir sobre que país queremos”, diz Ricardo Antunes à Adufmat-Ssind Destaque

Escrito por 
Avalie este item
(0 votos)

 

Por Luana Soutos

 

A Adufmat - Seção Sindical do ANDES ficou pequena para todos os interessados em ouvir o cientista político Ricardo Antunes durante o debate “A crise, desafios e perspectivas para as lutas sociais e sindicais”, realizado em 23/06/2016.

 

Dentro de uma instituição movida por trabalhadores para formar trabalhadores, não poderia ser diferente o interesse por uma das maiores referências nos estudos sobre o Mundo do Trabalho.

 

Muito articulado e bem humorado, Antunes falou com a seriedade e humanidade necessárias sobre a conjuntura política do país e do mundo, a crise econômica, e as consequências de tudo isso para todos nós.

 

Pouco antes de iniciar o diálogo com as mais de 300 pessoas que prestigiaram o evento, o docente da Unicamp falou exclusivamente com a Adufmat-Ssind sobre as universidades públicas nesse cenário. Confira, abaixo, a entrevista na íntegra.    

 

 

Adufmat-Ssind: A intenção dessa entrevista é focar na precarização das universidades. Por esse motivo, gostaria de começar perguntando qual a sua definição de precarização.

 

Ricardo Antunes: Precarização é um processo. Não é uma coisa estanque, não existe uma precarização. Existem modos distintos de ser da precarização. Ela ocorre quando as condições de trabalho são aviltantes, quer no que concerne a intensidade do trabalho, como jornadas extenuantes; quer no que concerne a burla em relação a legislação protetora do trabalho, ou a legislação social de determinado país que explicite o que seja um trabalho considerado normal. Quando você burla essa normalidade, não numa jornada excepcional, a hora extra em um dado momento, mas quando essa hora de trabalho é frequentemente burlada, você tem um processo onde a precarização se efetiva. E a precarização ocorre, fundamentalmente, quando o trabalho se encontra próximo da informalidade – o que é muito frequente nos processos de terceirização, onde a precarização se intensifica. Mas a precarização não ocorre apenas no trabalho terceirizado. Ela ocorre toda vez que há desrespeito a legislação protetora do trabalho. Nós estamos vivendo um processo global de precarização do trabalho. É um fenômeno mundial. E no Brasil nós estamos na iminência de nos defrontarmos com o desmonte da legislação social protetora do trabalho, que foi conquistada por muita luta da classe trabalhadora brasileira.             

 

AD: De que maneira esse processo de precarização atinge e educação, a universidade?

 

RA: Atinge de maneira muito ampla e diversa. Inicialmente, esse processo de precarização incidiu no mundo privado. Desde 1973, o capitalismo vem substituindo o padrão taylorista e fordista de trabalho, que também precarizava enormemente, mas era um padrão que, devido as lutas operária e da classe trabalhadora, comportou os direitos do trabalho. A classe trabalhadora vem lutando desde a segunda revolução industrial inglesa. Tivemos movimentos como o Ludismo, depois o Trade-unionismo, as greves, o Movimento Cartista, lutas que se esparramaram para o mundo ocidental, para os partidos socialistas, os partidos comunistas e sociais democratas. Todo esse processo consolidou uma legislação social protetora do trabalho. Mais avançada nos países capitalistas centrais, e mais burlada nos países do sul do mundo, da chamada periferia. Essa precarização no mundo privado vai aos poucos sendo impulsionada para dentro do Estado, especialmente durante o advento do projeto neoliberal. O neoliberalismo tem, fundamentalmente, a concepção de que o Estado não é fraco. O neoliberalismo não quer um Estado fraco. O neoliberalismo quer um Estado forte, mas estritamente para garantir os interesses das grandes corporações, porque o mundo em que nós vivemos tem hegemonia do sistema financeiro, do capitalismo financeiro, e da burguesia financeira, que é uma fusão da burguesia industrial com a burguesia bancária. E essa imposição financeira, típica do neoliberalismo, fez com que o Estado todo fosse privatizado. Todas as atividades do Estado que podem dar lucro devem ser privatizadas. Até o cárcere. Nos Estados Unidos, também no Brasil, em Minas Gerais, no governo Aécio Neves, eles criaram cárceres privados. O neoliberalismo é um modelo que vislumbra a exploração privativa até mesmo de atividades que, em princípio, não foram concebidas para serem privadas. Isso mostra que o Estado passou a ser todo fatiado: você tem trabalhadores e trabalhadoras estatutárias, com estabilidade; aí você passa a ter trabalhadores terceirizados dentro do Estado; depois você passa a ter trabalhadores contratados pela CLT; depois trabalhadores substitutos. Em algumas universidades públicas, sejam estaduais ou federais, a quantidade de professor  substituto hoje já é maior do que de professor efetivo. Esse é um caminho para que, aos poucos, desefetivem o professor, retirem aquela ideia da carreira, do direito, da estabilidade, da ascensão na carreira acadêmica, com uma modalidade flexível de trabalho contratado por hora. Muitas das faculdades privadas já nem fazem mais contrato de trabalho. Elas contratam um professor e o vinculam a uma cooperativa, que é das próprias empresas. Então, é uma falsa cooperativa. A cooperativa faz com que você se converta num cooperado, num PJ (Pessoa Jurídica), e você dá aula e recebe; se não dá aula, não recebe. Se adoece, é problema seu. Você volta a trabalhar quando você sarar. Se você tem seguridade, previdência, você consegue se suportar fora; se você não tem, vai passar a vivenciar as agruras de um trabalhador desempregado. A precarização atinge o setor público, e em particular a universidade, por uma imposição da lógica da racionalidade privada. É a tragédia mais grave. E é o que esse governo ilegítimo e golpista também está tentando impor. Durante o governo Dilma, também houve precarização do trabalho docente em grande intensidade. Houve a concessão a valores privatistas. Mas é evidente que o caráter do governo atual é impor essa lógica. Se esse governo puder, vai privatizar todas as universidade e todas as demais atividades que forem possíveis. Com isso, nós caminhamos para uma situação onde o trabalhador e a trabalhadora do espaço público terão uma lógica destrutiva semelhante ao trabalhador e a trabalhadora do espaço privado. 

 

AD: Como ficam as relações nesse processo, tanto do trabalhador com a universidade, quanto entre os colegas de trabalho?

 

RA: As relações, no setor público, perdem o caráter de uma atividade dotada de sentido. Vejamos um exemplo: você percebe muitos professores que já teriam idade para se aposentar e não se aposentaram. Eu mesmo poderia me aposentar com o salário que eu ganho, ficaria em casa lendo, estudando, escrevendo ou passeando, sem precisar desenvolver atividades acadêmicas. Eu não me aposento porque eu vejo a atividade docente como dotada de sentido. É um valor. Não é maravilhoso poder, como um cientista social, pedagogo, químico, matemático, físico, ou historiador, discutir, pensar, no âmbito da sua atividade central, os desafios principais do país e do mundo, e poder contribuir com isso? Poder lutar pela preservação da universidade pública, pelo ensino público? É vital! E, por isso, muitos professores que já poderiam de aposentar, não se aposentam. Porque acham que têm condições de continuar. Ou porque começaram a trabalhar muito cedo, e crêem que têm condições de continuar numa fase de maturidade intelectual como pesquisador e cientista. Esta é uma relação fundada num ato volitivo autêntico, um ato de vontade, porque o trabalho é dotado de sentido. Quando você passa a ter uma lógica privatista, o produtivismo não mensura a qualidade docente. Por exemplo, é uma aberração que, nas Ciências Sociais, um livro não tenha o valor que ele realmente tem, e nós sejamos obrigados a produzir uma infinidade de artigos, muito frequentemente de qualidade duvidosa, numa avaliação séria. Porque é o fazer pela necessidade de fazer. O ato científico, o labor que leva a preparação, à escritura de um livro, não pode ter o tempo do mercado, como se eu estivesse vendendo abacaxis ou hambúrgueres. Ele não pode ter essa lógica produtivista. E o principal elemento que corrói as relações de trabalho é a ausência de sentido, quando o trabalho se torna uma imposição, algo que tem de se fazer pra sobreviver. Um autor que foi muito feliz nessa discussão, num livro chamado “A corrosão do caráter”, foi o Richard Sennett. Ele diz que, no trabalho no mundo privado, as pessoas são tão voltadas a eliminar o outro na concorrência, sobreviver com a eliminação do outro, que os valores são dilapidados.  Nesse contexto, surge uma sociedade com terreno propício para o desenvolvimento da corrosão do caráter, e isso reflete nas relações. E é o que nós estamos percebendo no mundo atual. Quantos gestores do Capital, ou funcionários do Capital, ou assalariados do Capital, para poderem garantir o seu espaço, não fazem aquilo que o ideário empresarial nos impõe? Eu publiquei, numa coleção pela editora Boitempo, o livro de uma colega francesa, Daniele Linhart, chamado “A desmedida empresarial”.  Ela afirma que o empresariado tem uma desmedida: extrair mais valor, mais lucro e mais riqueza do trabalho, seja material, imaterial, manual, ou intelectual. E é evidente que isso corrói as relações que devem fundar o trabalho dotado de sentido. Por isso o meu livro chama-se “Os sentidos do trabalho”, também publicado pela editora Boitempo. O trabalho não tem apenas um sentido. Se o trabalho é voltado para a humanidade, ele tem um sentido de criação. Se o trabalho é para a criação de valor de troca e de riqueza de outrem, ele tem um sentido de obrigação. Por isso eu usei uma vez uma metáfora: o pêndulo do trabalho. O trabalho oscila, sendo um elemento vital da humanidade e ao mesmo tempo o Capital procura torná-lo o mais supérfluo possível. A tragédia dos capitais é que eles não podem se reproduzir, se ampliar, sem o trabalho vivo. Por isso eles depauperam, corroem e dilapidam o trabalho. Podem reduzi-lo ao máximo, desempregar ao máximo, precarizar ao máximo, mas não podem eliminar. Porque se os capitais eliminam o trabalho vivo, eles morrem. Essa é a tragédia do Capital. O Marx percebeu isso na sua obre genial, de combate, que foi o Manifesto Comunista. Ele dizia isso, o Capital cria o seu próprio coveiro. O Capital não pode se expandir sem impulsionar o crescimento do trabalho. É claro que, do século XIX para cá, muita água rolou, e isso eu tenho procurado trabalhar nos meus textos; no “Os Sentidos do Trabalho”, no “Adeus ao Trabalho”, que foi publicado há 12 anos. No ano passado, saiu uma edição linda da Editora Cortez em homenagem ao livro. De certo modo, uma edição especial de 20 anos. Esse tem sido os temas dos meus livros posteriores também.

 

AD: E quanto ao trabalhador docente, o que você tem observado?

 

RA: Adoecimentos. Suicídios. Estresse. Competitividade acirrada entre eles. A vontade de aposentar-se o mais cedo possível, que é o contrário que eu falei da minha geração. Eu me lembro do Otávio Ianni, querido mestre e amigo. Quando ele fez 70 anos, foi um momento de grande tristeza para ele, porque a compulsória o expulsou da universidade. Quando ele parecia um menino, um jovem trabalhando na Unicamp. O Otávio dando aula com 70 anos tinha mais vontade de trabalhar do que um professor de 25 anos. Quando ele recebeu um bilhete burocrático da universidade, de alguma máquina burocrática infernal que disse “a partir de hoje o senhor limpe as suas gavetas”, ele ficou enfurecido, porque algum burocrata deu um comando e “pumba, cai fora da universidade, por lei”. É nesse sentido que a gente tem de entender a condição docente. Nós estamos cada vez mais vulneráveis. Somos cada vez mais impulsionados a uma produtividade sem sentido, cada vez mais competitivos entre nós. Se nós não formos capazes de resistir a essa impulsão privatista, com a nossa solidariedade, com as nossas associações sindicais, a universidade pública vai desaparecer. Eu tenho confiança na força docente, dos estudantes e dos trabalhadores técnico administrativos. Nós já resistimos à ditadura militar, resistimos à primeira fase dura do neoliberalismo, com Collor e Fernando Henrique, resistimos à segunda fase do social liberalismo com Lula e Dilma - que tem diferenças, é preciso dizer, no que diz respeito à universidade pública. O governo Lula, e um pouquinho do governo Dilma, expandiram muitas universidades, mas em condições de precariedade. Ao mesmo tempo em que, criminosamente, isentou a tributação de grandes empresas de ensino superior de tal modo que, hoje, o mais importante grupo privado econômico do mundo, que atua no ensino superior, está no Brasil. Se os governos de Lula e Dilma não fossem tão pró privatistas, não teriam destinado uma soma vultuosa de recursos que deveriam ser canalizados estritamente para o ensino de primeiro grau, segundo grau e ensino superior para programas como Prouni e Fies, incentivando escolas privadas, com o pretexto de que os pobres podem ir para a escola privada com bolsa. Mas por que os pobres devem ir para as escolas privadas quando a classe média e os ricos sabem que a escola pública de ensino superior é melhor? Nós já sabemos. A ditadura militar destruiu os ensinos de primeiro e segundo grau públicos, durante os anos em que dominou, entre 1964 e 1985. Mas ela não conseguiu destruir a universidade. Quem quer destruir a universidade agora é o neoliberalismo, nas suas variantes pura ou branda.

 

AD: Dentro dessa lógica capitalista imposta aos serviços públicos, o que dizer sobre a mercantilização da educação?

 

RA: É mais ainda do que a mercantilização. É a mercadorização da educação. É uma distinção sutil, mas importante. Se você analisar os documentos do Banco Mundial de décadas anteriores, eles já sinalizam esse processo há muito tempo, pelo menos duas décadas. Nosso amigo reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Leher, estudou isso com muita competência, e por isso tornou-se reitor da UFRJ. Ele estudou o sentido perverso do neoliberalismo na educação superior. Nós sabemos que o Banco Mundial e todas essas agências de fomento internacional já redefiniram a educação, que passou a ser tratada como negócio, como serviço. E se a educação é um negócio, um serviço, ela não é diferente de um supermercado, de uma empresa de celulares, que também oferecem serviços e negócios. E na medida em que a educação pública é empurrada para o mundo da mercadoria, das commodities, a educação deve criar valor e riqueza para os interesses privados. É uma lógica onde a educação é concebida para o mercado. Esse governo ilegítimo e golpista está propondo que a nossa universidade siga os imperativos do mercado, mas o mercado é muito destrutivo. Então, a mercantilização ou a mercadorização da universidade quebram o que é vital na universidade pública, que é o seu sentido de rigor científico, e independência reflexiva. Se eu sou pago por um banco, como é que eu posso ter independência para denunciar a tragédia do mundo financeiro? Nesse espaço de tempo em que nós estamos conversando, vinte, trinta minutos, é incalculável o quanto os bancos ganharam, só no Brasil. As empresas são tão nefastas que, quando elas não conseguem quebrar a universidade pública, elas criam a universidade corporativa, que é um verdadeiro inferno. Porque o boneco que é formado nessa universidade corporativa não é um ser humano societal, livre de espírito. Lembro do Otávio de novo aqui. Ele disse uma vez: “universidade não rima com mercado. Universidade rima com universalidade.” E a mercantilização, ou mercadorização, das universidades é um elemento vital que nós temos de impedir que seja vitorioso. Eu tenho confiança na luta dos estudantes. Por isso as ocupações. O que o governo Alckmin está fazendo em São Paulo? Ele propôs, no ano passado, reduzir escolas para melhorar a educação pública. Alguém acredita que isso vai melhorar o ensino público? É, na verdade, um projeto racionalista, privatista e destrutivo. Porque se você destrói a educação pública, você está favorecendo a educação privada, mesmo que isso não apareça de cara. É por isso que o ensino superior no Brasil tem mais de 80% das matrículas no setor privado. É uma tragédia que isso ocorra. Nós estamos tendo uma diminuição do espaço público, porque quanto menos recurso você tem para o espaço público, mais você abre o bolo, o butim, para ser saqueado pelas escolas privadas de ensino superior, que não têm outro objetivo se não fazer com que a escola seja uma máquina de lucro.

 

AD: E a qualidade do ensino?

 

RA: A consequência de tudo isso é que a qualidade da universidade pública é depauperada. E nem existe universidade privada no Brasil, existem faculdades, existem institutos de ensino superior. Com exceção das PUC’s, que não são privadas, propriamente. Vêm se tornando privadas, privatistas na sua orientação, mas são escolas de origem confessional. Com exceção de uma ou outra escola que nasceu com valor diferenciado, as faculdades superiores privadas são o exemplo mais cabal do embrutecimento do ensino reflexivo e crítico, da pesquisa de ponta. É impossível um professor fazer pesquisa de ponta se ele dá vinte, trinta, quarenta horas de aula por semana. Para você fazer pesquisa de ponta, poder debater as suas produções no cenário nacional, internacional,  você precisa ter tempo de pesquisa e de reflexão. Essas escolas privadas superiores, ou as escolas superiores públicas que sofrem constrangimentos para serem privatizadas, depauperam a qualidade. A discussão de fundo disso é que existe uma nova divisão internacional do trabalho, onde a produção científica e de qualidade é para o norte do mundo e a produção pobre, o lixo produtivo, vem para o sul do mundo. As indústrias mais poluentes, mais destrutivas. O país das commodities. Nós produzíamos minério, vimos a tragédia de Mariana. A tragédia de uma morte anunciada. Teremos outras. O etanol que destruiu inúmeros espaços de agricultura familiar e que cria um proletariado rural que vive o vilipendio mais intenso. Lá na Unicamp, nós temos uma publicação em série chamada “A riqueza e a miséria do trabalho”. Já publicamos três livros, também pela editora Boitempo, e estamos agora preparando o quarto e o quinto números. Em São Paulo, a produção média de um trabalhador ou de uma trabalhadora no corte da cana de açúcar é de dez a doze toneladas por dia - que cada trabalhador corta. Depois de alguns anos você pode imaginar o corpo destroçado e a sua dimensão psíquica completamente vilipendiada. Depois de anos, muitos deles fabricam a destruição do próprio corpo produtivo, do próprio corpo reflexivo, da sua dimensão material e simbólica, da sua dimensão manual e espiritual, trabalhando por produção para melhora um pouquinho o salário, ao mesmo tempo em que produzem a riqueza para o agronegócio.

 

AD: Movimento Escola Sem Partido. O que ele representa?

 

RA: É a expressão da direita, da contrarrevolução em curso no Brasil e em vários outros países do mundo. Nós estamos vivendo um estado onde houve um golpe, com o processo de deposição da Dilma, e iniciou-se um processo de um golpe parlamentar com certas ressonâncias judiciais, que configuram um estado de exceção. Eu não faço a mais remota defesa do governo Dilma. Não é que ela era um ótimo governo popular e caiu por isso. Longe disso. A Dilma foi parte de um governo, como o de Lula, que serviu às classes dominantes. Usaram e abusaram dele até a hora que ele se mostrou inútil. Agora eles querem um governo terceirizado à la Temer. É um governo terceirizado. Eles põem lá uma marionete que faz o que comanda o capital financeiro. Não é por acaso que o Meireles foi chamado para ser o homem da economia. E, pasme, o mesmo Meireles que foi chamado para ser o homem central da economia no governo temer, era o homem da economia central do governo Lula, porque era o presidente do Banco Central. O que mostra que há continuidades entre eles. Nós temos no plano ideológico, uma luta contra o direito da mulher definir o aborto, uma luta contra aqueles que não praticam relações afetivas nos moldes do padrão patriarcal. Então eles são brutalmente vilipendiados. Lembre-se que recentemente houve um massacre nos Estados Unidos, para não falar dos nossos aqui. Do estupro à jovem, no Rio de Janeiro. São vilipêndios de vários tipos, e um desses vilipêndios mais brutais é querer que o professor seja um boneco neoliberal pago pelo capital financeiro como um palhaço, para usar o grande escritor inglês, Charles Dickens, no seu livro Tempos Difíceis, são os “economistas utilitaristas”. Aqueles palhaços que são pagos pelo capital financeiro neoliberal para dizer o que o estudante tem que estudar. A bíblia número um desses palhaços do mercado financeiro é ensinar a criança a ser, desde cedo, poupadora, enriquecedora, que combata o outro, competitiva, egoísta. E a Escola Sem Partido é uma aberração levada ao seu plano mais abjeto, como o PL 4330 da Câmara, hoje PLC 30/15, que propõe a terceirização total. Nós estamos numa era ofensiva do Capital no Brasil e em várias partes do mundo. É vital. As lutas sociais, das trabalhadoras e dos trabalhadores, dos movimentos sociais, dos sindicatos, dos poucos partidos de esquerda que não se curvam a esse pântano, das periferias, da juventude que está ocupando as escolas, dos movimentos dos sem teto, dos sem terra, contra as barragens, pelo passe livre, é dessa amalgama das lutas sociais, populares e sindicais que nós haveremos de resistir a essa onda regressiva, conservadora, autocrática, neoliberal. As universidades públicas têm um papel muito importante nisso, porque é o intelectual público que pode, junto com as lutas sociais, refletir sobre que país queremos. E não o intelectual privado, que não é intelectual. É um fantoche privado que repete uma lógica onde o enriquecimento é para 1%. Nós temos uma dilemática mundial, que o occupy wall street nos indicou, que os levantes e rebeliões do oriente médio e a luta do povo grego, espanhol, italiano, francês mostraram. Hoje há uma rebelião na França contra um governo “socialista”. Meu amigo Michel Levy diz “é um governo de extremo centro.” É ótimo [risos]! É um governo fantoche de extremo centro. A classe trabalhadora francesa e a juventude realizam uma greve de grande proporção contra uma legislação social precarizadora do trabalho. Nós haveremos de ter uma resistência forte na luta contra a terceirização e uma das primeiras medidas que o governo Temer quer fazer, uma verdadeira temeridade, é nos impor a terceirização. Essa Escola Sem Partido é um vilipêndio contra a escola republicana e pública. É a escola do privatismo neopentecostal da bíblia lida pela sua vertente mais nefasta. É a aparência da neutralidade para se consolidar um dogma onde a mulher não pode decidir o aborto, um homem não pode amar outro homem, uma mulher não pode amar outra mulher, porque foge o padrão “tradicional de homem e mulher”, e a escola deve ser um puro canal mercantilizado e mercadorizado reprodutor de um país do sul do mundo, cujo lixo produtivo é o seu destino. Nós temos que nos rebelar.

 

AD: Acho que você já respondeu minha última pergunta, que era sobre as perspectivas de resistência...

 

RA: Nós temos uma miríade de lutas sociais, sindicais e partidárias. Os movimentos sociais resistem como podem, contra as barragens, as comunidades indígenas, os operários contra a terceirização e a queda dos seus salários, em defesa dos direitos; as mulheres contra o vilipêndio do sexismo; os movimentos ambientalistas são vitais. Ninguém tem, como as comunidades indígenas, um modo de viver tão em harmonia com a natureza, porque os índios sabem muito melhor do que nós, do mundo urbano, como preservar a natureza. Camponeses, operários industriais, assalariados das universidades, os bancários, trabalhadores do setor de serviços, essa nova morfologia do trabalho que vai desenvolver uma nova morfologia das lutas sociais, com novas e velhas lutas, e dessa nova morfologia das lutas sociais nós haveremos de redesenhar uma nova sociedade, com um novo modo de vida, onde o valor humano societal e socialista possa ser recolocado como um valor humano, e não um valor destrutivo, como querem nos impor. A chave é: se eu tenho um partido, ou um movimento social ou sindicato, e quero controlar a esquerda, esse projeto está aniquilado. A esquerda social, política, tem de encontrar quais são as questões vitais da vida cotidiana e fazê-las sobreviver contra a sociedade destrutiva do capital. Tem que haver uma generosidade e o ponto de partida é quais são as questões vitais: a terra, o trabalho, a igualdade de gênero, o respeito às dimensões éticas diferenciadas. Se cada um de nós quiser impor o nosso projeto para que os outros nos sigam, nós começamos errado. E a esquerda tem errado muito. Pra fechar, com um exemplo: não será participando de eleições que nós vamos conseguir. A rebelião de junho nos mostrou, em 2013, que o povo, a população em geral, repudia a institucionalidade brasileira. Nunca o parlamento foi tão degradado no Brasil como agora. Não adianta ficar pensando qual é o nosso próximo deputado. Não é isso que a população quer. Quais são as questões vitais da vida cotidiana? A lógica contra uma sociedade produtora de valores de troca, mercantil, mercantilista, mercadorizada e capitalista e destruidora, nós temos de pensar! E as esquerdas de todo o tipo devem olhar e tomar como ponto de partida as questões vitais do mundo cotidiano. Se fizermos isso, saberemos avançar.                 

           

 

 

Ler 1630 vezes