Sábado, 13 Abril 2019 15:54

ENSAIO SOBRE A MAGNÍFICA MÁQUINA DE MOER GENTE: PARTE 4 - Paulo Wescley

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Paulo Wescley M. Pinheiro

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Recorrência

 

Toda segunda

A saudade do domingo

Todo segundo

O desespero da chegada do minuto perdido

Toda minuta

Tudo aquilo que é permitido e não mais se escuta

 

Todo primeiro

Dia do mês sendo miragem e esperança

Toda primeira

Vez no dia que minha alma reluta e cansa

 

4.1. Saúde mental na universidade: entre a luta por uma política social, a responsabilidade institucional e a construção de uma nova cultura

 

Nas reflexões que fizemos nos textos anteriores fica evidente que o processo de adoecimento mental extrapola as questões individuais e também ultrapassa a própria universidade. Por isso, defender uma política de saúde mental que supere o moralismo, o fisiologismo, a percepção normalizadora, disciplinadora, centrada no diagnóstico, na medicalização e na perspectiva manicomial é passo fundamental para o enfrentamento efetivo desse fenômeno amplo e complexo.

Dentro dessa perspectiva, pensando a política de saúde mental, é preciso que a universidade abarque a compreensão de todo o arcabouço social que produz o sofrimento mental das diferentes parcelas de indivíduos que estão inseridos na classe trabalhadora, não reproduzindo questões isoladas, individualizantes e subjetivistas. O desenvolvimento do conhecimento científico consolidado nas vias hegemônicas e a reprodução da formação de profissionais, não somente na área da saúde, mas em todos os âmbitos, não tem conseguido aprofundar no campo majoritário uma percepção mais complexa e rigorosa dos fatores díspares das entranhadas dessa questão.

Na atual crise, a classe hegemônica constrói sua (contra)reforma social e moral não mais amparada pela convenção fordista-keynesiana, mas norteada pelo aprofundamento do viés neoliberal, direcionando os mais diversos segmentos sociais à esfera mercadológica e referendando apenas às políticas reativas e insipientes. A decadência ideológica dos últimos anos mergulha ainda mais nessa perspectiva, num eclipse ideológico entre práticas protofascistizantes de um Estado Penal com um viés ultraliberal na economia. Isso influencia diretamente a forma de produzir ciência, seu financiamento e a atuação profissional, bem como a lógica, a direção, a qualidade e as possibilidades dentro das políticas públicas e sociais como nas áreas da educação e da saúde.

A construção de relações subjetivas numa sociedade repleta de cisões é elemento-chave para a compreensão do adoecimento mental, suas formas de tratamento e o que esta mesma sociedade compreende sobre saúde. As diversas expressões da questão social atravessam os sujeitos, demarcam seus limites e possibilidades, apresentam alternativas a partir de sua classe, raça/etnia, gênero/sexo, orientação sexual, origem e geração. Mais que questões somente físico-químicas, elementos genéticos e neurológicos o aprofundamento de relações coisificadas e de uma lógica desumanizada mergulha a formação subjetiva nas intempéries do seu tempo histórico.   

Numa sociedade da padronização e normalização do ethos hegemônico, a intolerância diante da diversidade, a reafirmação do combate a diferença e a invisibilização das divergências estimulam a dimensão socialmente construída diante do sofrimento mental intenso e daquilo que é representado como loucura. A ideia centrada na periculosidade, no fisiologismo e no tratamento voluntarista se reverberam no mesmo momento histórico onde se exaltam o poder bélico, as práticas de tortura e a comiseração moral.

Dentro da universidade somos imbuídos por um cotidiano de crises, surtos, urgências e tantas expressões agudas de sofrimento mental, adoecimentos, casos de violências e tantas outras questões que se apresentam, alargando dilemas éticos,, confusões de papéis, dúvidas sobre o que fazer e aumento da cobrança entre a responsabilização individual, o voluntarismo, a condescendência, a banalização, a insensibilidade e a inabilidade diante de um aparente caos.

É preciso lembrar que o fortalecimento de uma política efetivamente pública, universal, de qualidade e, mais que humanizada, humanizadora, além de ser direito constitucional, fruto de uma luta histórica, se fosse um processo realmente materializado, muito do peso das experiências adoecedoras na academia, que hoje estão nas costas dos/das discentes, dos/das professores, dos/das demais trabalhadores/as e também da instituição, estariam sendo tratadas de outro modo, por outros âmbitos institucionais e com outros processos.

Se a responsabilidade por uma política de saúde mental perpassa as esferas municipais e estaduais, com uma Rede de Atendimento Psicossocial ainda distante de concretizar práticas efetivamente constituída em valores emancipatórios, cabe a todos nós, dentro e fora da universidade, a capacidade de produzir conhecimento, formar profissionais, pressionar o poder público e desenvolver parcerias que apontem para o sentido emancipatório. Nós que construímos a universidade temos a responsabilidade de fazer ciência, de pensar práticas, desenvolver formas que superem os modelos arcaicos e reducionistas que se perpetuaram nessa questão.

No entanto, se não é de responsabilidade da Universidade a política de saúde mental, esta tem sim parcela de dever no cuidado dos sujeitos que estão dentro dela. Os casos de adoecimento de discentes, docentes e técnicos/as não são fatos isolados e estão atingindo diretamente a qualidade da produção e os resultados pedagógicos cotidianos.

É fundamental que exista uma política institucional forte nessa área, que não fique somente em promoções de campanhas, eventos ou em medidas reativas diante de crises. É fundamental que não se naturalize o sofrimento mental e nem se reproduza uma lógica voluntarista, que joga para os colegas de sala ou professores/as a responsabilidade de lidar com questões que se multiplicam.

A política de assistência estudantil precisa ter uma concepção ampla e constituir ações profissionais estruturadas, longe do espontaneísmo e rigorosa no campo de atuação diante de questões psicossociais importantes. Não pode caber ao professor/a em sala de aula ou aos coordenadores de curso e chefias de departamento o trato de coisas que precisam de acompanhamento profissional especializado, com encargos diretamente imbuídos para isso e com uma estrutura planejada para o acolhimento, acompanhamento e encaminhamento necessário.

Aos/às professores/as e técnicos-administrativos é preciso a mesma atenção. O cuidado com a saúde dos/das trabalhadores/as perpassa por uma estrutura adequada diante de sofrimento intenso, mas também pelo combate ao assédio e pela necessidade do fortalecimento de condições de trabalho adequadas. Assim, lutar contra a terceirização e retomar as condições de contratação via concurso público para todas as atividades, inclusive aquelas que já se encontram nessa lógica, é também algo fundamental.

Superar aquilo que nos adoece é ultrapassar os alicerces do estranhamento humano. Não é aceitável que nós mesmos sejamos o combustível da máquina que vai nos moer. Uma outra universidade precisar ser possível para além de formar pessoas que não terão emprego, produzir conhecimento que a sociedade não terá acesso, elaborar formas de ministrar aulas para quem não ver sentido. Buscar uma formação diante de perspectivas tão sombrias de futuro parece ser a tônica de um tempo histórico desumanizado e contra isso precisamos construir um outro horizonte acadêmico.

Na era exacerbação da violência a partir do moralismo e da falsificação da realidade, o fortalecimento do conhecimento científico crítico nunca foi tão necessário. Se todo esse emaranhado de questões são potencializadas num tempo histórico marcado pela intolerância e pelo conservadorismo é precisamos criarmos um pacto de resistência coletiva, desenvolvendo ações de solidariedade, autocuidado e fortalecimento dos sujeitos que lutam por outra universidade, por outro tipo de formação, de produção de conhecimento e de sociedade. Para isso, repensar nossas relações e construirmos mutuamente o exercício de coerência é mais que urgente, é questão de salubridade e de sobrevivência.

 

As primeiras partes dessa reflexão estão no Espaço Aberto n.41/2019, no Espaço Aberto n.43/2019 e no Espaço Aberto n.45/2019:

 

http//www.adufmat.org.br/portal/index.php/component/k2/item/3767-ensaio-sobre-a-magnifica-maquina-de-moer-gente-parte-1-paulo-wescley

 

http://www.adufmat.org.br/portal/index.php/component/k2/item/3777-ensaio-sobre-a-magnifica-maquina-de-moer-gente-parte-2-paulo-wescley 

 

http://www.adufmat.org.br/portal/index.php/component/k2/item/3795-ensaio-sobre-a-magnifica-maquina-de-moer-gente-parte-3-paulo-wescley

 
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