Sexta, 10 Fevereiro 2017 17:32

 

O suicídio de uma funcionária da maior agência de publicidade do Japão gerou nova onda de debates sobre as mortes relacionadas ao excesso de trabalho naquele país. Há meses Matsuri Takahashi, uma funcionária da Dentsu, vinha fazendo mais de 100 horas extras mensais, e relatava nas redes sociais uma rotina exaustiva de pressão no trabalho e poucas horas de sono.

André Campos | 20/01/17

Em dezembro de 2015, Matsuri pulou do alto do dormitório da Dentsu onde morava. O caso veio à tona apenas oito meses depois, quando uma investigação do governo federal enquadrou seu suicídio como mais um episódio de “karoshi” — termo cunhado pelos japoneses para designar as mortes causadas por jornadas extenuantes.

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Trabalhador exausto no metrô de Tóquio. Foto: Coal Miki/Flickr

Para o presidente da Sociedade Japonesa de Pesquisa em Karoshi, Koji Morioka, uma das principais causas dessa realidade são as leis trabalhistas japonesas. Elas permitem que empresas e sindicatos negociem horários de trabalho para além do limite legal de oito horas por dia – justamente uma das mudanças que o governo Temer quer implementar no Brasil. Em entrevista à Repórter Brasil, Morioka alerta: “se o governo e o Parlamento brasileiros fizerem reformas que permitam jornadas prolongadas, as horas extraordinárias serão em breve mais longas, e as mortes por excesso de trabalho aumentarão”.

O governo federal enviou à Câmara dos Deputados em dezembro sua proposta de reforma trabalhista por meio do PL 6.787/16. Ele estabelece diversos pontos e que acordos coletivos entre sindicatos e empregadores passariam a ter força legal. A jornada de trabalho é um deles, ficando apenas limitada a um patamar máximo de 220 horas mensais. Não há, por exemplo, a previsão de um limite diário para as horas trabalhadas. Tampouco está claro como seriam contabilizadas as horas extras.

No Japão, foram registrados 1.456 pedidos formais de indenização por karoshi nos doze meses anteriores a março de 2015. Trabalhadores nas áreas da saúde, assistência social e construção civil estão entre os maiores atingidos.

Como mudar essa realidade? Para o pesquisador, ao invés de o Brasil seguir o exemplo japonês, o Japão é que deveria adotar parâmetros similares aos previstos na lei brasileira: jornada regular de oito horas e acrescidas de, no máximo, duas horas extras por dia.

Leia a entrevista na íntegra:

Qual é o tamanho do problema quando falamos das mortes relacionadas ao excesso de trabalho no Japão?

As mortes incluem não só “karoshi” no sentido estreito, que são as mortes por doenças cerebrais e cardíacas. Há também os casos de “karojisatu” — suicídios ligados a doenças mentais provocadas pelo excesso de trabalho e pelo estresse no trabalho. Não há estatísticas oficiais exatas do número de óbitos. Geralmente, utilizamos dados do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar sobre os pedidos de indenização relacionados aos falecimentos por trabalho excessivo. Esses números, no entanto, são só a ponta do iceberg. Muitos familiares desistem de solicitar compensação quando se deparam com karoshi e karojisatsu.

Os episódios afetam principalmente trabalhadores jovens, entre 20 e 30 anos

O problema tem aumentado em anos recentes?

De acordo com o Ministério, os pedidos de indenização por doenças cerebrais e do coração duplicaram entre 1999 e 2007. Já os casos relacionados a doenças mentais se multiplicaram por dez de 1999 a 2015. Os episódios de karojisatsu afetam principalmente trabalhadores jovens, entre 20 e 30 anos. O aumento dos casos reflete a frequente ocorrência de assédio moral nos ambientes de trabalho japoneses, além do estresse e do excesso de trabalho.

Quantos trabalhadores japoneses estão em risco?

Quase uma em quatro empresas admitiram, em uma pesquisa recente englobando 1.743 companhias, que parte de seus funcionários fazem mais de 80 horas de horas extras mensais [limiar adotado pelo governo japonês onde a perspectiva de morte torna-se passível de qualificada como karoshi].

Mas o que a lei diz sobre isso? Quais são os limites de horas trabalhadas no Japão?

De acordo com as leis japonesas, se os empregadores assinam um acordo com um sindicato organizado pela maioria dos trabalhadores, ou mesmo com uma pessoa que represente essa maioria, as jornadas laborais podem ser estendidas ilimitadamente. O Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar estabelece limites para as horas extras — 15 horas por semana, 45 horas por mês e 360 horas por ano [assim como no Brasil, a jornada normal japonesa é de oito horas diárias]. Mas essas diretrizes não são obrigatórias. Os acordos sobre horas extraordinárias têm isenções especiais que permitem aos empregadores exigir horas extras ilimitadas.

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Sede da Dentsu, em Tóquio, onde funcionária vinha fazendo mais de 100 horas extras mensais. Foto: divulgação/Jerde

Os acordos são comuns?

A maioria das grandes corporações possui acordos permitindo mais de 80, 100 ou até 150 horas extras mensais. Ou, ainda, mais de 800 ou 1.000 horas extras por ano. Algumas empresas têm acordos sancionando 15 horas extras por dia. Isto significa 24 horas de trabalho seguidas — as oito horas normais acrescidas de 15 horas extraordinárias e de uma hora de intervalo.

Algumas empresas têm acordos sancionando 15 horas extras por dia. Isto significa 24 horas de trabalho seguidas

Essa é uma das principais causas da crise de karoshi no Japão?

As horas extras — incluindo casos em que elas não são remuneradas como tal — são o motivo mais óbvio para as longas jornadas de trabalho no Japão. Desregulamentações no controle de jornada foram frequentes nos últimos 30 anos. A globalização, a informatização e a “financeirização” da economia também tiveram um grande impacto na ampliação das horas trabalhadas.

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‘Negociado sobre legislado’ permite que japoneses trabalhem até a exaustão. Foto: Divulgação

Você acha que as leis trabalhistas japonesas devem ser alteradas para prevenir adoecimentos e mortes?

Em um primeiro momento, deveríamos demandar o cumprimento obrigatório dos limites de horas extras máximos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar. E então, num futuro próximo, deveríamos alterar a lei para restringir horas extras a duas por dia, oito por semana e 150 horas por ano.

No Brasil, a jornada legal é de oito horas por dia e 44 semanais, acrescidas de, no máximo, duas horas extras eventuais. Como no Japão, a ideia é que sindicatos e empregadores negociem a jornada sem limites. Qual é o seu conselho para os políticos brasileiros que irão votar essas mudanças?

Nas relações dentro de uma empresa, o capital é sempre mais forte do que o trabalho. Se o governo e o parlamento brasileiros fizerem reformas que permitam jornadas prolongadas, as horas extraordinárias serão em breve mais longas, como ocorreu no Japão, e as mortes por excesso de trabalho, incluindo os suicídios, aumentarão.

Fonte: Repórter Brasil. Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk

Quinta, 15 Setembro 2016 13:44

 

Com o impedimento da Presidente da República e a assunção de um novo governo, um assunto tem dominado as pautas. Trata-se da famigerada reforma trabalhista, que tem em um de seus pontos a prevalência do negociado sobre o legislado. O assunto é polêmico e fixado em reformas legislativas, sem se prestar a devida atenção para como o Supremo Tribunal Federal (STF) vem decidindo a questão.

 

No início do ano de 2015, o STF julgou o RE 590.415, que ficou nacionalmente conhecido como o “Caso BESC”. O Banco do Estado de Santa Catarina, antes de ser privatizado, firmou um acordo coletivo com o sindicato dos empregados em que constava uma cláusula de quitação geral. Isto é, o empregado que aderisse ao plano recebia indenização e estaria impedido de obter qualquer diferença em processo judicial trabalhista.

 

A questão chegou ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) e, por apertada maioria, os Ministros entenderam que a cláusula de quitação era nula, eis que genérica, e que os empregados poderiam, sim, discutir judicialmente os valores das parcelas pagas para apuração de eventuais diferenças.

 

Mediante a interposição de recurso ao Supremo Tribunal Federal, o Banco conseguiu reverter a decisão, ficando assentado no STF, em célebre voto do Ministro Luís Roberto Barroso, que a cláusula era válida, tendo sido afirmado, em apertada síntese, que (i) a Constituição Federal prestigiou a autonomia coletiva da vontade como mecanismo pelo qual o trabalhador participará da formulação das normas que regerão a sua própria vida, inclusive no trabalho, bem como, que (ii) os acordos e convenções coletivas são instrumentos legítimos de prevenção de conflitos trabalhistas, podendo ser utilizados, inclusive, para redução de direitos trabalhistas.

 

Destaca-se no julgado a clareza mediante a qual se firmou a tese de que o sindicato é legalmente um legítimo representante dos empregados e suas decisões devem ser respeitadas. Parecia que o STF queria dar amplitude à decisão para que uma nova direção fosse dada aos litígios envolvendo instrumentos coletivos.

 

Como se tratava do primeiro caso decidido na Suprema Corte, sobre essa temática, o julgamento não repercutiu nas instâncias trabalhistas como deveria. Continuou-se, mesmo depois do posicionamento do STF, a se decidir que “os sindicatos não têm legitimidade de fato”, “acordo coletivo não pode diminuir direito, apenas aumentar” e outros argumentos nessa linha para anular cláusulas de instrumentos coletivos.

 

Outrossim, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) firmou entendimento no qual a negociação coletiva não abrange direitos assegurados por preceito de lei. Desta forma, tendo em vista que as horas in itinere estão asseguradas no artigo 58 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o seu não pagamento não poderia ser transacionado.

 

Agora, o Supremo Tribunal Federal decidiu inovar novamente. O STF publicou decisão no dia dia 13 de setembro de 2016 no Diário de Justiça Eletrônico, da lavra do Ministro Teori Zavascki, que proveu um recurso extraordinário (RE 895.759) e reformou decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que havia anulado uma cláusula de acordo coletivo que excluía o pagamento das horas in itinere. No caso, o sindicato e a empresa haviam negociado essa exclusão em troca de outros benefícios mais vantajosos financeiramente aos empregados.

 

O ministro, nessa nova decisão, fazendo remissão ao caso BESC, ressaltou que “não se constata, por outro lado, que o acordo coletivo em questão tenha extrapolado os limites da razoabilidade, uma vez que, embora tenha limitado direito legalmente previsto, concedeu outras vantagens em seu lugar, por meio de manifestação de vontade válida da entidade sindical.” Em outras e diretas palavras, assentou que deve se respeitar o negociado, mesmo que se limite direito legalmente previsto.

 

Enquanto a reforma trabalhista permanece estagnada no Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal (STF) assume legítimo protagonismo e corrobora a prevalência do negociado sobre o legislado. Essa é uma realidade que parece não se querer enxergar.

 

Tais decisões provocarão o amadurecimento dos entes sindicais, na medida em que os próprios trabalhadores representados pela categoria terão maior consciência na hora de eleger os seus representantes e decidir o seu futuro.

 

Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga – Sócio do Corrêa da Veiga Advogados; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB); Conselheiro da OAB/DF.

 

Luciano Andrade Pinheiro – Sócio do Corrêa da Veiga Advogados; Professor universitário de Direito Autoral e Responsabilidade Civil.



Texto publicado originalmente no portal do Estadão: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/stf-inova-e-decide-que-vale-o-negociado-sobre-o-legislado-no-ambito-trabalhista/

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