Sexta, 08 Julho 2022 11:05

 

 

O pedido foi indeferido pela Justiça Federal de Ponta Porã (MS) nessa segunda-feira (4); o caso não está concluído, mas, por ora, os indígenas receberão “proteção integral” conforme a decisão. Foto: Guarani Kaiowá

 

Em uma decisão histórica no estado de Mato Grosso do Sul, a Justiça Federal de Ponta Porã indeferiu, nessa segunda-feira (4), um pedido para despejar os Guarani e Kaiowá da retomada de Guapo’y, em Amambai (MS). A solicitação (medida de urgência) foi feita pelo proprietário da fazenda que ocupa, atualmente, a região – ou parte do território indígena, considerado sagrado para os Guarani e Kaiowá.

No texto da decisão, o juiz explica que “o indeferimento da medida de urgência de modo algum implica a resolução do caso”. Mas, por ora, “não se vislumbra a existência de elementos que descaracterizem o movimento de disputa por terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas diante da completa ineficiência estatal em resolver a questão”.

“Na situação dos autos foram colhidos elementos mais do que convincentes a respeito da relevância da discussão promovida pela comunidade indígena, o que justifica pelo menos que recebam a proteção integral e atenção às suas reivindicações, oportunidade a partir da qual poderão ser impelidas a se retirarem do local tomado”, acrescenta o magistrado.

A audiência, realizada de forma telepresencial, contou com a participação do advogado dos Guarani e Kaiowá e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no estado de Mato Grosso do Sul, Anderson Santos, de representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério Público Federal (MPF) – entre eles um antropólogo –, da Defensoria Pública da União (DPU), da União, da comunidade indígena de Guapo’y e do advogado do proprietário da fazenda.

De acordo com o advogado e assessor jurídico do Cimi, Anderson Santos,  a pessoa representante do proprietário da fazenda se esquivou “em responder de onde surgiu a ordem para que a Polícia Militar atuasse no território, promovendo o despejo e a morte do indígena Vitor Fernandes”.

“Tivemos uma decisão rara no estado de Mato Grosso do Sul. Agora, o juiz irá aguardar o andamento do processo para ter melhor fundamentação quanto à reivindicação feita pela comunidade”, afirmou o advogado.

Proibido despejo
Santos lembrou ainda que, além da Justiça Federal de Ponta Porã a necessidade de ampla proteção dos Guarani Kaiowá, uma determinação do determinação do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), também prevê que os indígenas devem ser resguardados.

Em maio de 2020, a Corte determinou a suspensão de todos os processos que tratem de disputa territorial envolvendo territórios indígenas que possam resultar na anulação de demarcações ou no despejo de comunidades indígenas. A decisão do ministro Fachin é válida até o fim da pandemia de Covid-19 ou até o término do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – caso ele ainda não tenha sido concluído quando a crise sanitária for considerada encerrada. Apesar da decisão do STF, as medidas estão sendo burladas e desrespeitadas por juízes e forças de segurança.

Além disso, na última semana, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, prorrogou até o dia 31 de outubro de 2022 a suspensão de despejos e desocupações, em razão da pandemia de Covid-19. A medida também poderá resguardar os indígenas até – pelo menos – o prazo estabelecido por Barroso.

Caso Guapo’y
Na manhã do dia 24 de junho, logo após os indígenas chegarem à Sede da fazenda construída sobre Guapo’y, território indígena localizado em Amambai (MS), os invasores – policiais militares – entraram na área com intuito de expulsar, por meio do uso da força, os indígenas, mesmo não havendo ordem judicial. O caso ficou conhecido como o “Massacre de Guapo’y”.

Esse episódio ficou marcado pela morte de Vitor Fernandes Guarani Kaiowá, de 42 anos, assassinado a sangue frio e em plena luz do dia por agentes da polícia. Além de Vitor, dezenas de pessoas ficaram feridas pelos disparos com arma de fogo e bala de borracha por parte das forças armadas. 

A reserva de Amambai é a segunda maior do estado de Mato Grosso do Sul em termos populacionais, com quase 10 mil indígenas. Para os Guarani e Kaiowá, Guapo’y é parte de um território tradicional que lhes foi roubado – quando houve a subtração de parte da reserva de Amambai. Os indígenas ainda clamam por atenção e exigem proteção às suas vidas e aos seus direitos.

 

Fonte: Cimi (com edição de ANDES-SN)

Sexta, 09 Abril 2021 17:36
Vigília do povo Guarani Kaiowá em defesa da TI Guiraroka, em frente ao STF, em 2019. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu admitir o recurso do povo Guarani Kaiowá e analisar a ação rescisória, movida pelos indígenas, que busca reverter a anulação da demarcação da Terra Indígena (TI) Guyraroka, no Mato Grosso do Sul. A decisão se deu em julgamento virtual, iniciado no dia 26 de março e encerrado nessa quarta-feira (7). Os onze ministros da Corte votaram a favor da demanda da comunidade.

O caso da TI Guyraroka é simbólico na luta dos povos indígenas em defesa do direito de acesso à Justiça e contra a tese do marco temporal. Sua demarcação foi anulada pela Segunda Turma do STF em 2014, com base na tese do marco temporal e sem que a comunidade participasse do processo. Os indígenas tentaram diversas vezes recorrer da decisão, sem sucesso, e o caso transitou em julgado em meados de 2016.

Por esse motivo, em 2018, a comunidade ingressou com a atual ação rescisória, buscando reverter a decisão devido aos graves erros e violações cometidas. Ainda naquele ano, a rescisória foi negada pelo relator, o ministro Luiz Fux – que, no jargão jurídico, “não conheceu” a ação, ou seja, sequer abriu processo para analisá-la no mérito. A comunidade recorreu, apoiada pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

Foi esse recurso que, agora, recebeu decisão favorável da Suprema Corte. Inicialmente, Fux havia se manifestado contrariamente ao recurso, no que foi acompanhado pela ministra Carmen Lucia. Ainda em 2018, o julgamento foi suspenso, após pedido de vistas do ministro Edson Fachin. Retornou agora, em março de 2021, com voto favorável do ministro.

Após o voto-vista de Fachin, o relator, Luiz Fux, reviu sua posição e votou a favor da comunidade. Foi acompanhado por todos os demais ministros e ministras, fechando um placar de onze a zero em favor da demanda Guarani Kaiowá.

“O processo que anulou a demarcação já transitou em julgado, ou seja, já acabou. O que está em jogo agora é essa outra ação, rescisória, cujo objetivo é anular aquele outro processo”, explica Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e um dos advogados da comunidade de Guyraroka.

“Se a comunidade ganhar essa ação, aí sim, tudo volta à estaca zero: a portaria declaratória de Guyraroka volta a ser validada, e tanto o processo quanto a decisão que anularam a demarcação se tornam nulos”, sintetiza Rafael.

Com a decisão desta semana, o julgamento do mérito da ação rescisória iniciará, com a participação da comunidade da TI Guyraroka, e tem chances reais de reverter a anulação da terra indígena – uma luta não só das 26 famílias que vivem nela, mas de todo o povo Guarani e Kaiowá.

“Essa decisão favorável é um passo muito importante para nós, mas sabemos que vem mais coisas por aí e estamos prontos e com a expectativa de fazer parte desse processo”, comemora Erileide Domingues, jovem liderança Guarani Kaiowá do tekoha Guyraroka.

Erileide Domingues, da TI Guyraroka, em vigília do povo Guarani Kaiowá no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

 

Próximos passos


Agora, o julgamento da rescisória deve iniciar formalmente, com a citação dos réus e a abertura de prazo para as manifestações das partes. Para o assessor jurídico do Cimi, o julgamento já parte de uma perspectiva positiva para os Guarani Kaiowá.

“A falta de citação da comunidade justificou a decisão de admitir a ação rescisória. Essa é a mesma questão que está no mérito do processo”, afirma Modesto.

Outro argumento elencado pela defesa dos Guarani Kaiowá é a aplicação indevida da tese do marco temporal na decisão que anulou a TI Guyraroka – ignorando o laudo antropológico da Fundação Nacional do Índio (Funai), que detalhava a presença dos indígenas no território, inclusive na década de 1980, e o processo de violência e expulsões que atingiu a comunidade.

“Imaginamos que esses próximos passos serão rápidos, porque não haverá provas a produzir. Nossas provas já estão pré-estabelecidas, que são o laudo antropológico e a falta de citação”, analisa o assessor.

Tutela e erro de fato
Em seu voto, o ministro Edson Fachin destaca que a negação do ingresso da comunidade indígena no processo que anulou a demarcação da TI Guyraroka pode ter violado o Código de Processo Civil e afrontado diretamente o artigo 232 da Constituição Federal, “pois representou negativa de acesso à justiça aos índios”.

A Funai, “no ordenamento constitucional vigente, não detém mais nenhuma tutela sobre os índios”, salienta Fachin. Além disso, o ministro destaca que o próprio STF já definiu, no caso Raposa Serra do Sol, que o marco temporal e as demais condicionantes daquele julgamento “não se aplicavam imediatamente, com eficácia vinculante, às demais demarcações de terras indígenas pelo País”.

Em seu novo voto, o relator Luiz Fux também reconhece que a desconsideração de fatos e documentos apresentados na ação inicial pode ter configurado “eventual erro de fato verificável do exame dos autos”.

Caso simbólico
O caso da TI Guyraroka é considerado um caso simbólico devido ao conjunto de violações aos direitos indígenas que reúne – tendo sido, inclusive, levado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que emitiu medidas cautelares em favor da comunidade, após visita de uma comitiva à Terra Indígena, em 2018.

Além da negação de acesso à Justiça e da aplicação da tese do marco temporal, considerada inconstitucional, as famílias do tekoha Guyraroka vivem em apenas 55 dos 11,4 mil hectares identificados como parte de sua terra tradicional e sofrem com ameaças e os agrotóxicos aplicados nas lavouras que cercam a aldeia e já causaram a intoxicação de adultos, crianças e idosos.

Para Luís Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e também advogado da comunidade na ação, o caso de Guyraroka reflete uma realidade enfrentada por muitos povos indígenas em todo o país.

“Guyraroka é um caso clássico do que as comunidades indígenas enfrentam por todo o país, qual seja, a dificuldade de ter acesso à Justiça. Vários processos estão tramitando e decisões sendo tomadas sem ouvir os maiores interessados, justamente as pessoas que vão arcar com o peso de eventual decisão judicial”, destaca Eloy.

O julgamento da ação sobre a TI Guyraroka está diretamente relacionado com o caso de repercussão geral que tramita no Supremo e que deverá discutir, justamente, questões tratadas no processo sobre a terra dos Guarani Kaiowá – entre elas, a tese do marco temporal, considerada inconstitucional e oposta aos direitos originários garantidos aos povos indígenas pela Constituição Federal.

“O julgamento da TI Guyraroka adquire uma importância grande na atual conjuntura, mas também em relação ao julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral que também está no STF”, pondera Antônio Eduardo de Oliveira, secretário executivo do Cimi.

Com a repercussão geral, o julgamento deste recurso extraordinário terá consequências para todos os povos indígenas do país e passará a ser usado como uma referência para os futuros julgamentos.

“Nós nos alegramos com o resultado desse julgamento, porque sinaliza que os ministros podem vir a ter o mesmo entendimento com relação ao caso de repercussão geral, o que seria uma grande vitória para os povos indígenas no Brasil”, avalia.

Fonte: Assessoria de Comunicação do Cimi