Terça, 28 Abril 2020 18:41


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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Clark Mangabeira*

Enfim, sobrou tempo. Muito tempo. Em meio ao necessário e fundamental isolamento social, o tempo tornou-se, por um lado, filho pródigo que retornou com ânsia de permanência quando achávamos que já o tínhamos perdido para sempre, condenados a procurá-lo. Por outro lado, ironicamente, agora impõe sua vontade à nossa revelia: o que fazer com esse montante inesperado, aparentemente exagerado, dessa coisa chamada tempo que agora escorre como se inesgotável por entre nossos dedos?

 

Isolados, acabamos nos tornando os corpos que sempre fomos. Corpos que se movem, comem, defecam, bebem, dançam, dormem, pensam. Corpos: carne, mente e alma, trindade una flutuando entre o futuro do presente e o do passado. E, como corpos que sempre fomos, percebemos que esbarramos naquele tempo. Andamos com ele. Por dentro dele. Independente de qualquer variação filosófica, fiquemos com o óbvio – um exercício que hodiernamente parece excelente: temos tempo, queremos fazer algo com ele, mas nossos corpos=mentes=almas se escoram no antigo hábito de nunca o ter, de sempre persegui-lo, cachorros correndo atrás do próprio rabo.

Corpos e tempos. Tempos que subjetivamente variam de corpo a corpo. É comicamente triste ver publicações nas mídias em geral que encerram piadas sobre a quantidade de tempo, corpos prostrados e desesperados pelo excesso. Porém, é triste também fingirmos nunca nos termos dado conta da falta, de quanta falta o tempo fazia: na aclamada lucrativa correria do dia a dia, durante a qual muitos ansiavam pelo fim de semana ou alguma atividade qualquer, faltavam horas e dias. Esvaíamo-nos.

Então, veio o agora e mudou tudo. O agora mesmo, inescapável. Presos em um agora elástico, o que fazer? Como fazer? Que tempo, dentre todas as antes maravilhosas possibilidades, queremos usufruir? Nunca se fez tão necessária as Artes em nossos corpos=tempos. “Sempre” e “nunca” se fundiram em uma encruzilhada na qual a desgastada imaginação bamboleia-se em torno do próprio eixo, sem a necessidade do tempo futuro na qual viria a fincar-se, já que o agora, bem, é agora, e as Artes dão o tom dos começos e finais dos tempos.

Paralelamente, não nos esqueçamos, Artes e corpos=tempos inscrevem-se politicamente. Quais tempos são passíveis de serem usufruídos artisticamente e artesanalmente, ou não? Quais corpos podem usufruir de quais tempos e Artes? Quais corpos=tempos devem ser excluídos? Estes e muitos outros questionamentos delimitam a lógica objetiva mais ampla – cruel – de estabelecimento de tempos específicos para corpos específicos, em uma agonia da qual resvalam gritos dos excluídos, e às favas com as qualidades subjetivas artísticas e corpo=temporais. Corpos desolados. “Corpos matáveis”, nas palavras da filósofa Judith Butler, mas também tempos matáveis, cruéis, açougueiros a retirar a carne das mentes e almas para servir de alimento a outros. Corpos=tempos esvaziados.

No inefável desse momento-instante atípico, enfim, o que nos resta? Volta-se ao “tudo” e ao “nada”, unificados. Não faço a menor ideia do que fazer e/ou viver. Sobra tempo? Inegavelmente. Mas que outros pensem sobre ele. Estou (estamos?) com o corpo cansado e, infelizmente, sem tempo. Defender o óbvio – que clichê! –, de fato, cansa. Mas, por favor, fiquem em casa. 

Texto publicado anteriormente na Revista Matapacos (do Coletivo Coma A Fronteira) e  site iMato Grosso.   

*Clark Mangabeira,  escritor e Prof. Dr. do Departamento de Antropologia da UFMT