Terça, 04 Julho 2023 09:43

 

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Juacy da Silva*

 

O 3 de julho é o dia nacional de combate à discriminação racial. A data foi escolhida em 1951, quando o Congresso Brasileiro aprovou a Lei 1.390 que tornava contravenção penal a discriminação racialPor tudo isso, o Dia Nacional contra a Discriminação Racial no Brasil tem o dever de reforçar a pauta que reafirma a necessidade de criar novos paradigmas de conhecimento histórico, político e cultural da população negra, de forma efetiva para que estremeça os alicerces que sustentam o racismo estrutural no país”.

“O Ministério da Igualdade Racial, órgão da administração pública federal direta, tem como atribuição elaborar políticas e diretrizes destinadas à promoção da igualdade racial e étnica; políticas de ações afirmativas e combate e superação do racismo; políticas para quilombolas, povos e comunidades tradicionais, entre outras. A pasta foi fundada em janeiro de 2023, após 20 anos do início das políticas de promoção da igualdade racial no Brasil”.

O preâmbulo da Constituição Federal de 1988, deixa bem claras as bases da organização e das relações sociais, econômicas, culturais e políticas que devem ser respeitadas em nosso país, ao estabelecer que “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

E em seu artigo terceiro está escrito “IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Todavia, já são passados praticamente 35 anos e boa parte dos direitos estabelecidos e reconhecidos constitucionalmente ainda permanecem apenas “letra morta” e continuam fazendo parte da agenda das lutas por direitos, não apenas das minorias, mas da maioria, como no caso dos direitos das pessoa afrodescendentes (negras, pretas, pardas) como podemos perceber na luta contra a Discriminação Racial, na luta contra a violência em relação `a mulher, principalmente contra a mulher afrodescendente, a mulher negra/preta; o feminicídio, contra o tratamento desigual, não apenas em relação aos homens, mas também em relação `a mulher branca.

Por isso nós, como cristãos, como cidadãos, como eleitores e como cidadãos e cidadãs, vivemos em uma determinada realidade política, econômica, cultural, social e religiosa. Somos feitos de corpo e alma/espírito, por isso não podemos nos alienar em relação `as teias de relações concretas em que estamos inseridos diariamente.

De outro lado, no que concerne aos aspectos da realidade concreta, do cotidiano os países e sociedades, fruto dessas teias de relações acabam dando origem a diferentes formas do que algumas pessoas denominam de “arranjo social”, ou a formação de camadas, classes, categorias e segmentos diferenciados, enfim, o que também é denominado de estrutura social ou pirâmide social.

Do ponto de vista religioso, principalmente para os adeptos das religiões monoteístas, somos ensinados, desde a mais tenra idade a “aceitar” e repetir, muito mais de forma abstrata do que concretamente, que existe um princípio universal, não importa o nome deste princípio, no caso dos cristãos, por exemplo, Deus; o Criador, de todas as coisas que integram o universo, inclusive o ser humano.

Daí surge a ideia ou o conceito de um Deus como figura Paterna, o Pai. E se todas as pessoas, independente da cor da pele, da origem étnica, do sexo ou da orientação sexual, de todos os aspectos físicos e situação familiar, são filhas e filhas de um mesmo Pai, então a conclusão não pode ser outra a não ser de que “todos somos irmãos e irmãs” e merecemos ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos universais e inalianáveis para podermos viver com dignidade e respeito.

Todavia, não é bem isso o que acontece. Ao longo da história e ainda em parte, de forma dissimulada, na atualidade mundo afora, inclusive no Brasil, na base dos sistemas econômicos, sociais e políticos está a ESCRAVIDÃO, fundamento da acumulação de capital, de enriquecimento que favoreceram as minorias, em detrimento da imensa maioria que são os pobres, os famintos, os excluídos, os discriminados, os injustiçados e os violentados e também fundamento do poder.

Se volta e meia falamos que existe uma “FAMILIA HUMANA, fica difícil explicar para uma criança negra, uma criança pobre, uma criança deficiente, uma criança que vive nas periferias urbanas em casebres, em meio a esgoto e lixo a céu aberto, debaixo de uma lona na beira da estrada, numa criança que não tem acesso aos serviços de saúde, de educação, aos bens culturais, uma criança que fica nos sinais de trânsito implorando por uma moeda, uma criança que passa fome, anda descalça, cuja expectativa de vida e oportunidades jamais as levarão a mudar de vida, que a mesma é irmã ou irmão de outra criança que frequenta locais requintados, escolas de ótima qualidade, que podem ter inúmeros pares de sapato, de tênis, que possuem guarda-roupas lotados de roupas de marcas, muitas que as vezes jamais são usadas.

Enfim, é muito difícil explicar a essas crianças, que são milhões e bilhões no mundo, que podemos construir um novo mundo, onde a igualdade, a equidade, a fraternidade, a solidariedade sejam possíveis, não apenas para uns poucos, mas para todos, para a grande maioria ou a totalidade das pessoas.

Costumo dizer que as nossas igrejas, as religiões, pouco importa se católica, evangélica ou mesmo de outras confissões são a imagem de nossas sociedades, reproduzem entre seus fiéis a estrutura social, econômica, cultural e política das sociedades em que estão inseridas concretamente.

Fazem parte de todas as religiões pessoas de todas as idades, tipos físicos, profissões e nível socioeconômico, cor da pele, origem étnica e racial e, também, os diversos mecanismos de exclusão que dão origem `a pobreza, a miséria, a fome, o racismo, a discriminação em todas as suas dimensões, inclusive a DISCRIMINAÇÃO RACIAL, que ainda na atualidade macula a chamada FAMÍLIA HUMANA.

No caso da Igreja Católica, costuma-se dizer que a mesma é Sinodal, samaritana, pobre, que faz opção preferencial pelos pobres e excluídos, que é também PROFÉTICA, pois não apenas anuncia as “boas novas do evangelho”, inclusive a ideia ou a doutrina de que “todos somos irmãos e irmãs”; mas também DENUNCIA as práticas injustas e, mais importante do que isso, as ESTRUTURAS que geram essas anomalias sociais já mencionadas.

Um dos grandes lutadores pelos DIREITOS HUMANOS no Brasil, Dalmo de Abreu Dallari, no mesmo ano em que foi promulgada a Constituição Cidadã e dos cinquenta anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU, escreveu um livro denominado “Direitos humanos e Cidadania”, cuja leitura ainda permanece sempre atual, principalmente para quem integra a luta por direitos humanos, inclusive contra a discriminação racial, para quem seja agente de pastoral social, ambientalista ou defensor do meio ambiente e da ecologia integral.

É importante transcrever o artigo primeiro da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, cuja origem remonta a séculos de luta por igualdade, reconhecimento e garantia dos direitos humanos universais, onde pode-se ler “Todos os homens (gênero humano, homens e mulheres) nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Ou seja, se somos filhos e filhas de um mesmo Pai, a conclusão é que somos irmãos e irmãs e nesta condição não tem sentido a exploração, a escravidão, a discriminação, a pobreza, a miséria e muito menos a violência que provoca tanto sofrimento e morte na “FAMÍLIA HUMANA”.

Dalmo de Abreu Dallari em seu pequeno livro, já mencionado, elenca ou seja, destaca, 13 tipos de direitos que derivam dos DIREITOS HUMANOS, entre os quais mencionamos: Direito `a vida; Direito de ser pessoa; Direito `a liberdade real; Direito `a igualdade de direitos e oportunidades; Direito `a moradia e a terra (a partir de onde o Papa Francisco enfatizou seus três “Ts”: Teto, terra e trabalho); Direito ao trabalho em condições dignas, no que eu acrescento, com salário digno e não salário de fome que acaba sendo complementado com migalhas dos orçamentos públicos e pela caridade das pessoas ou outras formas de manipulação política eleitoral, muito em voga no Brasil); Direito `a participar das riquezas (e dos frutos do desenvolvimento e do crescimento econômico dos países); Direito `a educação (pública, universal, inclusiva e de qualidade); Direito `a saúde (também universal, humanizada e de qualidade); Direito a um meio ambiente sadio (e de qualidade, extensivo, inclusive `as futuras gerações); Direito de participar do governo (das estruturas de poder e não apenas escolher os governantes, mas acompanhar e fiscalizar o uso do dinheiro público, cuja origem são os impostos e outros encargos que recaem sobre os ombros da população, inclusive dos pobres e excluídos que também sofrem com uma imensa e extorsiva carga tributária que mantém, não apenas os gastos públicos, mas também, os privilégios e diversas mutretas que beneficiam os donos do poder e as camadas dominantes); Direito de receber/ter acesso a serviços públicos (universais, de qualidade e com celeridade, não de forma paquidérmica como estabelece a burocracia insana que limita tal acesso); e, por último, Direito `a proteção dos direitos (todos os direitos que as Constituições e todo o ordenamento jurídico estabelecem, como direitos trabalhistas, previdenciários, do consumidor e os direitos dos diversos segmentos, camadas e classes que estão na base das sociedades, inclusive da sociedade brasileira.

Um anos antes da promulgação da Constituição Federal, em 1997, a CNBB – Regional Leste, publicou também um livreto muito importante que foi o Manual de Direitos Humanos e Cidadania, para contribuir na formação de agentes pastorais, atuantes nas pastorais sociais/ dimensão sociotransformadora.

Reporto-me a tudo isso, para fazer uma ligação entre a Ação Sociotransformadora da Igreja Católica, que ainda representa a grande maioria da população brasileira, mais de 65% do total de nossa população, com as características estruturais e conjunturais já mencionadas e a LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, contra o RACISMO ESTRUTURAL que ainda existe e está bem presente no cotidiano de nossas relações, cuja data foi estabelecida há décadas no Brasil e tem “avançado” ainda de maneira muito tênue, constituindo-se em um desafio permanente, tanto para a definição de políticas públicas, de ações afirmativas buscando as transformações para que a discriminação racial, a violência racial e a exclusão da população afrodescendente seja algo de um passado que vem de décadas de ESCRAVIDÃO e praticas racistas em nosso país.

Por todas essas razões, neste 03 de Julho de 2023, quando é “celebrado” o DIA NACIONAL DE COMBATE `A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, precisamos refletir de uma forma mais profunda, crítica para que os princípios da Igualdade, da solidariedade, da fraternidade e do respeito `as diferenças estejam na base quando da definição de políticas públicas, mas também em nossas ações individuais e coletivas, como pessoas, enfim , integrantes da FAMILIA HUMANA.

A luta pela igualdade racial e contra a discriminação racial tem avançado razoavelmente no Brasil, mas muito mais em termos jurídicos e legais do que em termos de mudanças estruturais, políticas, econômicas e culturais, razões mais do que suficientes para que continue na agenda tanto das discussões públicas quanto das LUTAS SOCIAIS.

A luta contra a discriminação racial não deve ser apenas da população afrodescendente, dos negros, negras, pessoas pretas; mas de toda a sociedade brasileira, inclusive de brancos, brancas, enfim, de todas as pessoas, principalmente nós cristãos, católicos, evangélicos, quem professa outras crenças e até mesmo de agnósticos e ateus, afinal, compactuar com as injustiças, com violência, com a exclusão social e econômica de amplos segmentos populacionais é uma afronta tanto aos DIREITOS HUMANOS fundamentais quanto com a ideia de Estado democrático de direito, chavão muito em voga, até mesmo entre segmentos que contribuem para a perpetuação de uma sociedade injusta e desumana.

No dia 20 de Julho de Abril de 2010, há praticamente 13 anos, o então (e hoje novamente) Presidente Lula, sancionou a Lei 12.288; que passou a ser denominada de ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL, que desde então tem balizado a luta contra a discriminação racial no Brasil.

Vejamos o que estabelece esta Lei “Art. 1o  Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

Parágrafo único.  Para efeito deste Estatuto, considera-se:

I - discriminação racial ou etnicoracial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada; II....”
Mesmo que algumas pessoas possam imaginar que uma reflexão com poucas páginas seja algo exagerado, creio que seja importante, primeiro que as pessoas possam ler e refletir sobre todos os dispostivos legais, constitucionais ou infra constricionais que garantem direitos `a população afrodescendente, que representa 55% da população brasileira, e, também conhecer a agenda das lutas afirmativas e contra a discriminação racial em nosso pais.

Neste sentido, transcrevo, nesta oportunidade, dois artigos do Estatuto da Igualdade Racial, sobre os quais gostaria que pudéssemos refletir mais profundamente neste dia da Luta contra a discriminação racial.

“Art. 2o  É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Art. 3o  Além das normas constitucionais relativas aos princípios fundamentais, aos direitos e garantias fundamentais e aos direitos sociais, econômicos e culturais, o Estatuto da Igualdade Racial adota como diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade etnicorracial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira.

Art. 4o  A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:

I - inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;
II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;
III - modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;
IV - promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais;
V - eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada;
VI - estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades étnicas, inclusive mediante a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos;
VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.

Parágrafo único.  Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País”.

A democracia só pode ser realmente comemorada quando todas as classes, todos os segmentos e grupos populacionais estejam plenamente integrados à sociedade da qual façam parte. Falar em democracia ou Estado democrático de direito em um país onde a discriminação racial e outras formas de discriminação e violência generalizada como existem no Brasil soa um tanto fora do contexto.

Precisamos lutar para que o Brasil seja, de fato e não apenas “de direito”, um país politica, econômica, cultural e socialmente justo, solidário, fraterno, onde todos sejam participes desta construção coletiva e ninguém seja excluído ou excluída!
 

*Juacy da Silva, professor universitário aposentado UFMT, sociólogo, mestre em sociologia, ambientalista, articulador da Pastoral da Ecologia Integral e Coordenador de Educação Ambiental da Associação em Defesa da Bacia do Rio Cuiabá e do pantanal. Email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. Instagram @profjuacy

Segunda, 12 Setembro 2022 11:05

No dia 27 de agosto de 2022, a Adufmat-Ssind esteve ao lado de centenas de pessoas na 19ª Parada LGBTQIA+ de Cuiabá.

A Subseção da Adufmat-Ssind no Araguaia também apoiou a participação de estudantes, membros do Diretório Central local (DCE Araguaia) e do Coletivo Cores, na atividade de rua realizada na capital.

O evento, organizado anualmente em diversos lugares do mundo, remete à Rebelião de Stonewall, que ocorreu em 1969, em Nova Iorque (EUA), após a ação truculenta da polícia num bar da cidade.

Em Mato Grosso, as Paradas LGBTQIA+ começaram a ser realizadas em 2003. Apesar dos avanços conquistados nesses quase 20 anos, o estado continua sendo um dos mais conservadores do país, oscilando sempre nas primeiras posições entre as unidades da federação com maior índice de morte violenta da população LGBTQIA+ (clique aqui para saber mais).

Isso mostra o quanto ainda é essencial a realização do ato.

Confira, abaixo, o vídeo da Adufmat-Ssind que registra esse importante momento contra a LGBTQIA+fobia e todos os tipos de discriminação, preconceito e exploração.

Segunda, 03 Maio 2021 13:26

 

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Paulo Wescley Maia Pinheiro
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Professor da UFMT

 


            É próprio do individualismo burguês promover a concorrência, o estranhamento da própria vida e de suas capacidades, além da coisificação do outro e, ainda assim, cultivar a crença formal da possibilidade de superação individual dos seus problemas pela ascensão de classe. Os valores tradicionais das elites arcaicas, da burguesia nacional subsumida ao capital-imperialismo e das camadas médias antenadas com a lógica neoliberal consubstanciam o mundo míope que não enxerga humanidade nem em si e nem no outro.
            A modernização conservadora do Brasil foi um projeto de “unidade de contrários” entre a burguesia subimperialista e as elites reacionárias buscando sufocar os setores explorados e oprimidos.
            A eugenia, a “higiene social”, o moralismo judáico-cristão e o autoritarismo caminharam por décadas buscando a "europeização", num processo à brasileira, sem realização de reformas estruturais do liberalismo romântico, mas adequando a manutenção das raízes coloniais para a economia de mercado, mantendo o patrimonialismo, o racismo e o machismo sempre no centro das possibilidade de manutenção e ampliação da exploração.
            Não por acaso o preconceito regional vem sempre reproduzindo elementos de racismo e não raramente também revela a ideação das camadas médias e até de setores pauperizados de uma autoafirmação pequeno burguesa pela proximidade territorial dos setores estratégicos do sistema produtivo e das possibilidades mais amplas de acesso aos bens de consumo.
            O ethos do povo trabalhador nordestino, do povo preto, das mulheres e da população lgbt da classe trabalhadora foi patologizado, moralizado, criminalizado, existindo um processo de higienização discriminatória por décadas, que se traduziu nas periferias, nos manicômios, nas penitenciárias.
            Assim, a normalização, a normatização e o protagonismo sudestino vai pautando uma importância autocentrada e narcísica de suas questões enquanto produz reducionismos sobre o que é aparentemente alheio a si.
            E é também por isso que o Sudeste olha no espelho e tenta, em vão, enxergar todo o país. Enquanto isso, traça rascunhos e garranchos mistificando as particularidades tão diversas dos outros territórios, implicando em limites de princípios para possibilidade de um projeto de nação que propicie desenvolvimento socialmente referenciado, igualdade substantiva, autodeterminação e soberania nacional.
            Por isso, vai se produzindo a lógica de protagonismo que direciona o monólogo que sufoca a diversidade brasileira e permite também não enxergar as contradições dos seus próprios processos. Nesses reducionismos, as formas políticas e as oligarquias arcaicas são sempre aquelas distantes e nunca os conchavos dos poucos sobrenomes que batem bola na política paulista, fluminense e/ou mineira.
            As revoltas populares dos outros lugares são sempre realizadas por famintos desesperados, sob liderança espontaneísta dos fanáticos religiosos, muito diferente da forma civilizada, moderna e urbana de reivindicar. O protesto pacífico é sempre atrapalhado pela “ralé”, pelos “bárbaros”, o não-civilizado, aquele que vem de fora da cultura de cidadania macula a limpeza tão bem estabelecida pelas estruturas vigentes.
            A monocultura grita. Existe a mídia nacional — leia-se sudestina — e as mídias regionais; existe a Música Popular Brasileira — leia-se, aquela abençoada pelo Sudeste — e a música regional; existe o sotaque esquisito, o sotaque “do outro” e a forma “normal” de falar. O regionalismo é sempre do outro.
            O caldo cultural desse processo que se espalha por todas as classes fundamenta estereótipos conhecidos:

  • O/a Nordestino/a exótico/a”: estranho, pois é tido como antagônico ao padrão de civilização, rude, viril, anacrônico, mas funcional;
  • O/a “Nordestino/a batalhador/a”: que possui a bravura inata, que desculpa o resto do país da falta de acesso aos seus direitos, uma fortaleza essencial feita para carregar todo tipo de peso;
  • O/a “Nordestino/a engraçado/a e prestativo/a”: aquele/a que aceita a servidão como condição e tem seu dom natural assimilado sempre com sorriso no rosto;
  • O/a “Nordestino/a preguiçoso/a”: com a malandragem natural e a inaptidão para as regras do “trabalho moderno”, a esperteza imoral diante do contrato social iluminista.

            A deformação das representações ideologicamente estruturadas atinge as mulheres nordestinas de modo especial. Para elas essa força essencial que é atribuída vem com ideia de masculinização que, para os exploradores, as qualifica para serviços braçais, ao mesmo tempo que referenda a sobrecarga imposta entre trabalho produtivo e improdutivo no interior da classe explorada, convivendo ainda com materialização das diversas formas de violência de gênero/sexo nas relações familiares.
            A resiliência da mulher nordestina não promove espaço de ascensão social. Da feminização da miséria até a reprodução das "viúvas de maridos vivos", a reprodução da força de trabalho do campo, o trabalho doméstico e a estrutura familiar centrada na esperança imputada pela busca dos migrantes, são elementos que reproduzem o heteropatriarcado de forma peculiar.
            Um retrato mal desenhado da estrutura familiar que circunda a ultrarresponsabilização feminina frente a imigração dos homens para os centros urbanos caracteriza um falso matriarcado, existente apenas nos procedimentos cotidianos de administração e práticas familiares enquanto permanece à expectativa do protagonismo patriarcal.
            A mulher ousada, “mal educada”, atrevida é a mulher inadequada, ignorante e ignorada para o padrão familiar centrado no moralismo burguês e para a convivência urbana. A misoginia se manifesta imbricada no elitismo cultural e se fantasia no machismo naturalizado. A áurea do exótico colocada sob o povo nordestino marca mulheres no não-lugar do feminino: nem homens para o centro do poder, nem delicadas e frágeis para o lugar de invisibilidade coadjuvante que o machismo mais protocolar espera.
            A autoimagem — do “cabra macho” e da “paraíba masculina” — também reproduzida por parcelas dos/das nordestinos/as como parte de sua identidade é produto disso e é, em essência, autofágica, pois o orgulho historicamente construído pelas elites do Brasil Colônia com sua estrutura escravocrata e patriarcal é mascarada de suposta cultura identitária de rusticidade, de centralidade fálica e que referendou opressões ao longo dos tempos.
            O nordestino, antes de tudo um forte, é expressão contraditória de quem precisou e precisa ser forte para continuar existindo e resistindo, a mística que vai sendo mascarada e se mascarando de uma fortaleza forjada sobre seus ombros, no seu sangue e no suor.
            O "nordestino caboclo" é a classificação que esconde e revela, que sufoca e aprofunda a ideia de subcategoria de trabalhadores brasileiros, invisível para os estudos dos preconceitos e opressões, mas vívidos nas formas mais concretas de expressões discriminatórias. A classe trabalhadora nordestina passa a ser diferente demais para assumir as classificações existentes nas formulações sobre desigualdade, enquanto é desigual demais para não ser entendida em suas diferenças.
            O não-lugar do nordestino também faz parte do não-lugar do pardo no país e do falseamento racista, próprio do mito da democracia racial, que reverbera a fantasia de que em algumas partes da região Nordeste não existem negros, questão renovada e ideologicamente reforçada nas análises sobre racismo protagonizadas pelo sudestocêntrismo. 
            O silenciamento das contradições na unidade exploração-opressão torna a diversidade do Brasil uma abstração que se soma ao apagamento da influência da cultura indígena existente cotidiano da classe trabalhadora, além da negação de sua dimensão de ancestralidade, formando uma equação de não-reconhecimento de desigualdades vividas dentro e fora do Nordeste.
            Enquanto o racismo estrutural impõe a desigualdade sobre os negros no Nordeste, o (des)colorismo instrumentalizado vai reproduzindo uma caricatura que se centra na realidade urbana do Sudeste e desconsidera as particularidades das outras regiões e suas formas de manifestações de racismo. Na realidade, muitos dos negros nordestinos estão marginalizados nos espaços, invisibilizados na ideia tortuosa da miscigenação brasileira, naturalizando profundamente o preconceito e a discriminação.
            Os clichês retroalimentados do exótico e do arcaico caminham de mãos dadas. O Nordeste mistificado se transforma no não-lugar, no território paradisíaco onde sujeitos passarão férias, acessarão para serem servidos, podendo gozar do seu tempo livre. O Nordeste mistificado se transforma no não-lugar árido, um espaço inóspito, animalizado, sem lei, um deserto habitado por famintos onde se pode descer do pedestal desenvolvido e fazer caridade.
            A política que promove o Nordeste como um setor de serviço turístico no litoral é a mesma que solidificou a indústria da seca, que naturalizou desigualdades e que reduziu possibilidades dos “sobrantes úteis”, sendo acompanhada pela hegemonia cultural que condiciona a moral e os costumes. 
            O Brasil Oficial que amarra o que chama de Brasil Profundo é resultado da miscelânea das elites que passaram pela Colônia, pelo Império, pela República Café-com-leite, pelo Estado Novo, por JK, pela Ditadura civil-militar de 1964 e se perpetua até hoje calando a diversidade ou a reduzindo a mercadorias.
            O reducionismo de um estereótipo não é de responsabilidade do sujeito estereotipado. O rebaixamento da complexidade cultural advém não de uma cristalização de uma narrativa endógena, mas do não aprofundamento das diversas medições, valores, disputas e construções que permanecem vivas no interior da cultura dos sujeitos subalternizados. A identidade popular é contraditória, mas a prevalência de uma antítese rebelde, com expressão de potencialidade emancipatória no interior das relações dos sujeitos explorados e oprimidos, inclusive, em seus símbolos apropriados pelo mercado, são elementos reduzidos, sufocados, enquadrados e moralizados.  Todo esse processo tem base material. 
            O simplismo estereotipado vai jogando o Nordeste, em sua diversidade e complexidade, em suas contradições e potencialidades, em seus mitos construídos e resistência coletiva, como uma abstração rasa. A discriminação regional é potencializada na conjuntura atual pela xenofobia reproduzida mundialmente e aponta dentro do capitalismo brasileiro para o “tipo ideal” de trabalhador precarizado.
 
Parte 2 (de 4 seções) do "Ensaio sobre o Nordeste e o preconceito regional como expressão do ódio de classe no Brasil". A primeira seção  está no Espaço Aberto 034/2021, de 29 Abril de 2021. https//www.adufmat.org.br/portal/index.php/component/k2/item/5070-ensaio-sobre-o-nordeste-e-o-preconceito-regional-como-expressao-do-odio-de-classe-no-brasil-parte-1-de-4-secoes-paulo-wescley-pinheiro
 
*Integralmente publicado em ENSAIO SOBRE O NORDESTE E O PRECONCEITO REGIONAL COMO EXPRESSÃO DO ÓDIO DE CLASSE NO BRASIL | by Wescley Pinheiro | Medium