Terça, 04 Dezembro 2018 16:48

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza*

 

A parcela do fies de Benedito, que se formou em administração de empresas e está sem trabalho, tá atrasada e é maior do que suas contas de luz e de água. E é uma dívida que lhe será companhia por uns bons anos, pelo menos até 2024. E nós estamos apenas em 2018.

E ainda tem filha pequena pra criar. Mônica, de seis anos.

Benedito agora é um devedor e terá que percorrer essa extensa linha de crédito. Ele voltou a estudar, fisgado pela tentação de se tornar uma mercadoria um pouco melhor, mais valorizada, mais apresentável na prateleira do mercado de recursos humanos, no saldão do comércio de gente.

Devido ao atraso, ele agora está fichado. O SPC, o Serasa e o Cadim lhe puseram as mãos e as amarras. E o mantém preso a seus bancos de dados. Todas as lojas e todos os bancos sabem que ele, no momento, não é confiável. Mas não é só isso. O fiador do FIES, que é seu antigo patrão, dono da distribuidora de gás onde ele trabalhava, também foi atingido por sua falha e é essa a parte que mais lhe consome.

Anda pensando em vender sua moto. Ou os móveis da casa. Mas é aconselhado pela mulher, Bernadete, a todo momento, a não fazê-lo.

- Onde já se viu querer vender a moto, que comprou com tanto sacrifício? Com ela você pode arranjar um trabalho, ser entregador, cobrador, essas coisas. Pode até alugar.

- Mas com nome sujo é que não quero ficar. Ainda por cima sujei o nome dos outros.

Benedito é magoado principalmente por ter entrado nessa devido aos estudos, coisa de que ele falava tão bem e em que tanto acreditava.

- Queria me formar pra dar uma vida melhor a minha família – relembra.

Antes da dívida, trabalhava entregando gás, na moto Honda 2008 que alugava pra distribuidora e faturava um extra. Ganhava pouco, gastava o sol, corria as ruas, mas não devia a ninguém. Era limpo na praça e gostava de estufar o peito ao dizer isso, o que lhe conferia um pouco de honra e lhe consolava as faltas, as injustiças e a pobreza.

O estudo lhe consumiu o nome, a coisa que ele mais prezava, e o tornou um homem taciturno. Vai ter que se reinventar, agora que entrou na categoria de desempregado e refém dos órgãos de proteção ao crédito.

E veja como são as coisas! Antes do gás, Benedito trabalhou numa empresa de cobrança. Andava na mesma Honda. E sabe muitas histórias de gente endividada como ele. Histórias que se juntam a sua e o impedem, por uma questão de princípios, de voltar à trabalhar na empresa de cobrança que lhe mantém as portas abertas.

- Como é que um velhaco tem moral pra cobrar de outro? – brinca.

Benedito tem a dívida regida pela matemática do sistema francês de amortização - a tabela Price, que lhe foi apresentada, pela primeira vez, justamente na faculdade. Um modelo de controlar dívidas pensado bem longe dele mas que lhe imprime o ritmo, as regras e lhe atinge tão perto. Uma matemática, inventada no outro lado do oceano, a lhe gritar, ali naquele bairro pobre e esquecido, o valor da ousadia de querer estudar. O modelo matemático que ele curtiu aprender na faculdade,  que lhe foi apresentado como inofensivo e neutro, agora se tornou incômodo e doloroso,  lhe fez de vítima, lhe manchou o nome e lhe tirou a liberdade.

A colação de grau, sonho que lhe ocupou a existência por muito tempo, se deu já em meio ao desemprego, à incerteza do futuro e à certeza da dívida volumosa. Ouviu o hino nacional, os discursos das autoridades e a chamada de seu nome já sentindo um gosto cinzento e um ar turvo de dúvidas. Manteve o olhar distante durante toda a cerimônia. Sorriu apenas o indispensável.

E despido de qualquer romantismo com o curso superior, sacou o diploma e adornou o currículo com o título de graduado em administração de empresas.  E mantém a esperança de que isso, em algum momento, seja validado em algum mercado, compense o investimento e o vexame, e o diferencie dos demais miseráveis que não conseguiram, sequer, cair na armadilha da linha de crédito do FIES.
 

*Aldi Nestor de Souza
professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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Sexta, 23 Novembro 2018 13:57

 

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Por Aldi Nestor de Souza*

 

Expulsaram Tuca e seus dois irmãos da rodoviária. Os três vendiam Pipoca e Jujuba por lá. Cada um carregava seu próprio tabuleiro, lotado dos produtos, rente ao umbigo e preso ao pescoço por uma cinta de pano velho. Tinham entre 12 e 15. Pelo cansaço, pareciam estar ali há 30. Trajavam calções, camisetas e chinelos de dedo. Invadiam a noite. Bocejavam.

"poca é 10, juba é 10 ;  poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10. Moço, compre uma jujuba pra me ajudar!”

cantavam ao longo do dia, em todos os recantos da rodoviária. 10 centavos a unidade. O dia inteiro, todos os dias, de segunda a sábado. 100 jujubas vendidas, por exemplo, significava um faturamento de 10 reais, cinco de lucro. Mesma coisa com a pipoca. Às vezes almoçavam um milho cozido. Ás vezes uma tapioca. Às vezes, jujuba com pipoca. Às vezes esqueciam.

No domingo desapareciam. Descansavam.

Nenhum dos três conheceu o pai. E não sabem do paradeiro da mãe. Foram criados pela tia que não teve o que lhes oferecer, exceto os tabuleiros e um crédito na mercearia do bairro pras jujubas e pipocas. Era assim que funcionava: toda manhã eles prestavam conta do dia anterior, realimentavam os estoques e chispavam pra rodoviária.  

"poca é 10, juba é 10 ;  poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10. Moço, compre uma pipoca pra me ajudar.” Insistiam, com olhar em lugar nehum.

Quando o time deles ganhava, uma alegria lhes conferia dignidade e um certo brio, temperado com desdém, lhes dava a possibilidade e a disposição para zoar com os outros comerciantes e com os demais trabalhadores do recinto. Sonhavam ser jogadores de futebol. Sonhavam até ser soldados de polícia ou bombeiros. Mas quase todo sonho era interrompido pelo dever de cantar as pipocas e as jujubas e para atender aos imprescindíveis clientes.

Sonhavam se livrar dos tabuleiros.

Às vezes arriscavam olhar pra uma menina bonita, dessas arrumadas pra viajar. E teciam lá seus comentários e sorrisos, típicos da idade das espinhas. Mas não ousavam além disso. Era só mesmo a voz dos hormônios e a flor da meninice que não resistem aos encantos da beleza e que ignoram tabuleiros, calções puídos e chinelos de dedo. Era só mesmo um grito do amor que dá em todos, que transcende e estar acima de qualquer miséria humana. 

A primeira expulsão foi do local de embarque. E aconteceu sem que eles recebessem qualquer aviso prévio. Na época os meninos estavam acostumados a atravessar a catraca e ir ter dentro dos ônibus de motores ligados, prestes a darem a partida. E ficavam por lá até o último minuto, negociando com o motorista,  esgueirando-se entre poltronas, malas e passageiros: “ poca é 10, juba é 10;  poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10”. Insistiam. Numa segunda feira, sem perder muito tempo, o moço da catraca lhes avisou. Não pode mais!

Não havia a quem reclamar. A gerência era coisa distante de mais dos tabuleiros. Até tentaram, em vão, subornar um vigilante ou outro. E acabaram reduzidos ao resto da rodoviária. Pelo menos estavam livres dos olhares de chateação dos motoristas e dos passageiros e não precisavam mais equilibrar os tabuleiros em cima de suas cabeças.

Com uma reforma, que mexeu na estrutura do comércio inteiro, veio a sentença definitiva: nenhum ambulante é permitido e só alguns dos comércios antigos, os que conseguiram se adequar, sobreviveram . A rodoviária se encheu de tecnologia, de vigilantes jovens, soturnos e de coturnos, e de comércios de donos desconhecidos: subway, bob’s, robert’s, mcdonald´s e vários outros apóstrofos, mostrando o alcance, a frieza e as consequências da intermitente globalização. Agora é preciso pegar senha pra comprar pipoca e jujuba e aguardar a chamada numa tela fria.

Desapareceu o cantar dos meninos. Não se ouve mais, nem de longe, o "poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10, poca é 10, juba é 10". Ninguém sabe do paradeiro deles. Nada, como da vez das catracas, lhes disseram sobre mais essa novidade. Não lhes deram um novo local de trabalho. Não lhes deram qualquer explicação. Apenas lhes comunicaram, numa segunda feira qualquer: Não pode!

Talvez, como sonhavam, tenham finalmente conseguido se livrar dos tabuleiros.

 

*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática/ UFMT-Cuiabá
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Quarta, 14 Novembro 2018 16:25

 

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Por Aldi Nestor de Souza*

 

E assim, sem nenhum pudor, sem nenhum remorso, sem nenhum acanhamento, sem nenhum luto, a pobre escola mandou plantar, na parte mais visível de seu pórtico, uma imensa faixa, de letras decididas e compenetradas, com a seguinte informação: primeiro lugar no ideb.

Nenhuma dúvida: a escola mostrou-se decidida a descer ao mais profundo dos confins da lógica do mercado e do consumo e apresentou seu preço, do mesmo modo como o fazem a alcatra, o sabonete, o papel higiênico, a goma de mascar. E como se estivesse numa prateleira das mais comuns, grita: primeiro lugar no ideb!  É a pechincha final.

Despudorada, a escola agora, pelo menos por uns dias, anda com sorriso largo, de nariz imponente e pode entrar pela porta da frente, a exigir respeito, da secretaria que lhe impõe regras e rédeas e respira o ar árido da glória meritocrática, alcançada ao custo de uma subserviência enlatada, como se fosse puro.

Primeiro lugar no ideb! É o que esbraveja a faixa de medidas largas, ecoando para toda a comunidade à sua volta os louros por ter cumprido à risca a determinação do distante ministério que nem lhe reconhece o linguajar, nem os costumes, nem as medidas, nem a cor, nem as feições, nem a história.

Primeiro lugar no ideb foi a morte a que se reduziu a antiga e simpática escola, dona de saudosa história de eventos comunitários, de festas, de jogos, de quermesses. História essa que, aos poucos, anda se desfazendo e sendo trocada por treinamento rigoroso para atingir o tão propalado e degradante pódio.

Ocupada com o êxtase do exame e de suas consequências, nem percebe o mugido da educação à distância, que se aproxima a passos largos e que já ameaça trinta por cento da presença física,  na escola, de sua juventude mais verdejante. Também não lhe sobre tempo pra discutir a excrescência do silêncio, imposto pelo projeto que ameaça amordaçar a liberdade de cátedra de seus professores.

Não! O ideb parece ser o grande fim. Ocupar a primeira posição, e narcisisar-se com isso, é a meta. Cumprir a meta numérica, e apregoá-la ao alcance dos olhos dos míopes, é o que interessa. Disputar os parcos recursos do ministério, às custas do preço alcançado no exame, é o fim da educação.


O que essa pobre escola tem a dizer pro estudante que também  viu seu nome apregoado no alto da avenida, num outdoor flamejante, a anunciar “primeiro lugar em medicina na federal” ? Como vai orientar esse pobre jovem, também precificado e exposto ao mais visível e mortal dos relentos? Como pretende  fazer resistência ao violento comércio da educação?

Primeiro lugar no ideb! Comemora a escola, agora vencida pelas ordens dos organismos internacionais que colonizam o pensamento e escravizam pais, alunos e professores e os submetem ao vexame de atingir esse tão disputado lugar nenhum.

Nenhuma diferença existe entre ela, a primeira colocada, e a outra escola, do mesmo bairro, das mesmas condições, e que se deu mal no exame. Mas, ambas cegas, apenas desfilam suas alegria e dor na mesma intensidade, e não criticam, nem resistem, nem analisam os ditames do exame que as mortificam.

E nesse rito, as escolas, como um todo, vão se degenerando e se transformando num lugar inóspito, oco, vulgar, pragmático e triste. E, a galope, vão perdendo o sentido e nada tem a oferecer à humanidade que, ao vê-las, precifica-se também, perde a dignidade e entrega-se à gula dos mercadores ferozes e insaciáveis.

Agora rastejantes, as escolas se igualam as ervas daninhas, rentes ao chão, sem conseguir olhar nada muito alto, nada muito longe, nada muito belo, nada muito poético, nada muito artístico. Ficam ali, a danificar as frutíferas, as comestíveis, as medicinais, as livres. Sobrevivem como um incômodo, um incômodo que pode ser carpido a qualquer momento, sem nenhum grito de compaixão, sem nenhuma defesa.

Talvez as escolas sejam reflexo do que fazem os cursos de graduação das universidades, que seguem a mesma sina, também tem seus preços afixados nos pórticos e cumprem lá suas corridas na mesma direção, a direção do reinado das ervas daninhas.

Talvez as escolas, assim como as universidades, não tenham entendido direito sua função junto à sociedade. E igualam-se às empresas mais rudes, buscando metas que se medem com números vulgares e resultados entendíveis até aos pés de capim e as ervas cidreiras.

Talvez as escolas, assim como as universidades e as ervas daninhas, não tenham percebido o risco que estão correndo e não veem a roçadeira no braço do capinador a mirar-lhe o tronco e, de um só golpe, tirar-lhe a vida.  

Talvez as escolas, assim como as universidades, tenham se afeiçoado ao reino das ervas daninhas e acostumaram-se a ser de pouca serventia, numa existência de mato vadio, sombra pros rastejantes mais peçonhentos.
 

*Aldi Nestor de Souza

Professor do departamento de matemática - UFMT/Cuiabá

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Sexta, 26 Outubro 2018 14:54

 

 

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Por Aldi Nestor de Souza
 

Estou, nesse momento em que escrevo, dentro de uma sala hermeticamente fechada, uma sala que sequer tem portas. Só paredes, piso e teto reforçados. É uma sala sem ar, sem água, sem móveis, sem luz, sem decoração, sem nada. É uma sala distante de tudo, alheia a qualquer tipo de relação. Essa sala é o lugar onde vivem os antipetistas fundamentalistas.

Claro, esse tipo de sala é o mesmo onde vivem os fundamentalistas em geral, só escolhi os antipetistas devido ao calor da hora. É claro também que os petistas fundamentalistas vivem numa sala igual.

Pra eu entrar nessa sala, evidentemente, tive que optar por morrer primeiro, entendendo que só a morte poderia me proporcionar peripécias tais como atravessar paredes instransponíveis e achar que eu não tenho nada a ver com o que ocorre no mundo, com as mazelas da sociedade em geral.

Pois, pelo menos a meu juízo, é exatamente isso o que ocorre com os antipetistas fundamentalistas: a sensação de viverem num mundo à parte, num mundo sem relações, num mundo idealizado, num mundo hermético, num mundo só deles. E aqui estou falando de todos os antipetistas fundamentalistas. Todos: dos intelectuais aos hipopótamos.  

Uma característica bem visível de um antipetista fundamentalista é que ele não consegue falar, como um todo, dos governos petistas. E isso é compreensível, até bem natural, de quem se julga fora do processo, fora do embate, dentro de uma sala hermeticamente fechada.

Por exemplo, o combate à fome, o bolsa família, raramente entra na sessão de argumentos de um antipetista fundamentalista. E não entra por um motivo também evidente: não se pode falar contra, com desenvoltura, de um programa que tirou , segundo a ONU, pela primeira vez nos últimos 500 anos,  o país do mapa da fome. A fome é difícil de medir, ela é singular demais pra caber na pena ou na bile de um sujeito enfurecido e alheio às relações que determinam a vida em sociedade. A fome desconcerta qualquer argumento. A fome é a fome e ponto final.

Também não se fala do lado positivo da expansão de universidades e de institutos de ensino públicos nascidos ao relento e espalhados país afora. No lugar disso, como é óbvio, é muito mais confortável centrar força na precariedade da expansão.  

Aqui, na sala onde estou, fala-se aos gritos desses males. Nesse momento, por exemplo, uma pessoa não para de erguer os braços, de gesticular com ferocidade e de bradar as mais terríveis palavras de repúdio ao campus da Federal que brotou lá no meio da caatinga nordestina, lá onde só tinha pedra, xiquexique e gente, lá onde não tinha nada. Mas o brado é porque tá faltando alguns ingredientes pra um laboratório e grana pra se fazer aula de campo. Quase todo o resto tá funcionando, tem gente se formando, tem gente trabalhando, a cidadezinha de merda prosperou, o xiquexique floresceu, a pedra deu experimento. Mas nada disso vale, quando se vive numa sala hermeticamente fechada.

Mas a coisa preferida mesmo dos antipetistas fundamentalistas, pelo menos é a mais badalada aqui na sala e a grande geradora de ódio, é a execrável corrupção. A corrupção é sedutora demais, levanta até a moral dos velhinhos sem saúde. E a corrupção tem a vantagem de já vir pronta, não precisa explicação, o censo comum basta.

Mas a corrupção, inevitável no modo de produção capitalista, não faz nem cócegas nos problemas sérios do Brasil. Por exemplo, segundo a polícia federal, após mais de quatro anos de investigação, o famoso Petrolão, muso inspirador de jornalistas e articulistas de pena pesada, desviou 42 bilhões da Petrobrás. Uma fortuna, realmente. Inaceitável. Essa fortuna gerou uma infinidade de assustadoras manchetes de jornais e artigos de opinião, segundo os quais a empresa petroleira brasileira, em função disso, havia quebrado.

Perto da avalanche sobre o escândalo do Petrolão, a notícia de que cinco brasileiros, exatamente cinco, tem a mesma renda de metade da população mais pobre, virou apenas uma reles notinha de pé de pagina. Uma coisa que, de tão nanica, quase ninguém lembra mais.

Por outro lado, segundo o jornal correio brasiliense, de 19/05/2018, em uma semana de greve dos caminhoneiros, greve que ocorreu em maio, a Petrobrás teve um prejuízo de 118 bilhões de reais. Ou seja, quase três Petrolões em apenas uma semaninha e a empresa segue firme, vendendo normalmente seus pedaços de pré sal pro mercado internacional. Esse Prejuízo, no mundo das narrativas antipetistas, sequer foi comparado ao Petrolão.

Outra coisa que os antipetistas fundamentalistas não levam em conta é a simbologia, para a classe trabalhadora, do ex metalúrgico, aquele de dedo torado no torno. Aqui a coisa fica mais complicada. Falar desse ex metalúrgico é como tocar num ponto nevrálgico, de dor cortante.  Para os antipetistas fundamentalistas, o ex metalúrgico não é um ex metalúrgico, não é um ex retirante nordestino, que almoçava do marmitex da empresa e guardava a carne pra janta, não é um degustador de cachaça, não é um sujeito que engole plurais.

Não. Nenhum desses símbolos, símbolos estes que caracterizam a enorme maioria da classe trabalhadora brasileira, é levado em conta. Nenhum. Na briga de narrativas, para um antipetista fundamentalista, mesmo para aqueles que são trabalhadores, valem apenas as coisas óbvias: as “irrefutáveis”, as “apuradas” em investigações, as denunciadas pelos ex companheiros, as “julgadas” pela justiça, as que horrorizam o componente moral.

Por fim, um antipetista fundamentalista, de tão certo, parece capaz de se submeter à barbárie, de deixar fraquejar a democracia, de deixar fraquejar os direitos humanos, de não maneirar no julgamento nem na pena, mesmo diante da catástrofe, e de fazer crítica pesada, repetida e requentada, ao partido e ao ex metalúrgico, mesmo estando todos nós à beira do abismo e de uma tragédia bem maior, tragédia que poderá tirar, até dos mortos, o direito de pensar livremente e de opinar.
 

*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática. UFMT/Cuiabá.
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Terça, 23 Outubro 2018 16:21

 

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Por Aldi Nestor de Souza*
 

A mãe de Adelina sabia tudo do algodão. Mas tudo mesmo, do plantio ao feitio das roupas. Até o solo pra receber e gestar as sementes ela sabia preparar. Plantava, cultivava, colhia, descaroçava, fiava, tecia, fazia até linha de costura e costurava. Era isso: de uma sementinha de algodão e o conhecimento adquirido dos pais, avós, bisavós e etc, ela conseguia fazer uma blusa, uma saia, uma calça, uma rede.

E tudo isso se dava ali, no sossego do roçado ao redor da casa, no alpendre ventilado e na sala espaçosa. Era uma fábrica sem pressa, sem hora marcada, que conseguia dar conta de tudo, da matéria prima ao produto final, e que funcionava de portas abertas, de chinelo de dedo, de calção cerzido, de saia de chita, às vezes pra empurrar o tempo. Era uma fábrica muito engraçada, uma fábrica que nem era fábrica.

Adelina, que agora vive muito longe dali, se pegou pensando nessas habilidades da  mãe ao dobrar uma blusa de algodão, feita artesanalmente, e muito parecida com as que a mãe fazia. Ela estava numa casa, de pessoas completamente desconhecidas, prestando seus serviços de arrumadeira de mala de viagem. Um aplicativo da internet a levou até ali.

O serviço dela consiste apenas de arrumar mala de viagem. É o seguinte: alguém um dia percebeu que poderia ser um bom negócio, assessorar as pessoas que viajam e que costumam esquecer de colocar na bagagem os pertences necessários para tal. Daí nasceu a figura do Personal Organizer, com especialização em arrumação de malas, que é o caso de Adelina.

Para se tornar um profissional como esses, você precisa primeiro fazer um curso de Personal Organizer, que é uma formação geral, e depois se especializar. Pode ser em arrumação de malas, como a Adelina, mas pode ser em arrumação de gavetas, em arrumação de interiores de casa, arrumação de armário de banheiro, arrumação de quarto de criança, pode ser apenas especialização em dobrar roupas. Sim porque tem gente que até consegue colocar as roupas no guarda roupa ou na mala, mas não sabe dobrá-las.

Para contratar os serviços de Adelina, o cliente precisa saber: para onde está viajando, quantos dias vai ficar lá, se é viagem a negócio ou a passeio, se no lugar tem pontos turísticos e quais, se tem praia, etc. Com tudo isso informado no aplicativo, Adelina segue até o destino e faz seu trabalho. Uma nota pelo aplicativo, sela a qualidade do serviço prestado.

Adelina, ao lembrar da mãe,  lembrou também da fábrica sem pressa e de quando brincava de fazer nuvem com a lã do algodão. Ela tinha inclusive um céu inteiro, todo cheio de nuvem no seu quarto. Tinha nuvem escura, pintada de carvão, que era pro tempo de chuva. E tinha nuvem escassa, nuvem de tempo limpo.

Adelina abandonou suas nuvens para ir pra cidade estudar. Hoje ela é formada em administração de empresas. Sabe até falar língua distante. Mas com o desemprego, acabou indo parar na onda tecnológica e no empreendedorismo. Agora ela é uma micro empreendedora individual. Não tem patrão, o aplicativo é quem dita as regras. Mas é um aplicativo que ela carrega dentro da própria bolsa, no seu próprio celular, é tudo de casa, portanto.

A mãe de Adelina, que sabia tudo do algodão, que sabia preparar o solo, que sabia plantar, que sabia cultivar, que sabia colher, que sabia descaroçar, que sabia fiar, que sabia tecer, que sabia fazer linha de costura, que sabia costurar, nunca foi à escola.

A fábrica sem pressa não existe mais. Não existe mais tempo vadio nesse mundo. A fábrica, o roçado, o alpendre, a sala e as nuvens, não resistiram a exatidão do aplicativo.


*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática UFMT/Cuiabá
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Terça, 09 Outubro 2018 10:38

 

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Por Aldi Nestor de Souza*
 

Planejei submeter um relato de experiência para o congresso de educação, SEMIEDU, que acontecerá aqui na UFMT, no mês de novembro desse ano.  O relato trata de uma experiência que fiz em sala de aula, de uma disciplina de Álgebra, aqui do curso de licenciatura em matemática da UFMT, na qual Paulo Freire e sua Pedagogia do Oprimido se fizeram presentes e transitaram no meio da abordagem axiomática da teoria dos Anéis e Corpos de que trata a citada disciplina. Chamei a experiência de Álgebra do Oprimido.

Eu até cheguei a escrever o relato. Num wordzinho, como esse que aqui escrevo, num total de 6 páginas, estava tudo pronto e relatado: as leituras freireanas, as aulas de álgebra, a linguagem abstrata da teoria matemática em questão, os debates sobre: a serviço de quem estão estas palavras abstratas?, de quem são mesmo as palavras que constam dos livros de Álgebra?, quem lê livros de matemática?, é a Matemática, em particular, a Álgebra, uma concentradora de conhecimentos e que tem a linguagem como o grande gargalo?

A ideia de usar Paulo Freire foi justamente a de discutir, à luz de sua educação como prática da liberdade e de sua educação dialógica, o papel rígido, de certa forma indubitável das ideias e escritas matemáticas que gozam de um conforto estupendo no meio acadêmico e quase não sofrem crítica sobre sua forma de se apresentar à sociedade e, em particular, para estudantes de cursos como os de formação de professores.

Até fiz a inscrição no SEMIEDU, paguei o boleto e tudo mais. Na hora H, a de enviar o material, fui dar uma conferida nas instruções para tal submissão e parei. O conjunto de regras e normativas, coisas da ABNT, davam um total de 15 páginas. Isso só para a modalidade RELATO DE EXPERIÊNCIA, relato esse que, segundo uma das normas, deveria ter entre 4 e 8 páginas. Isso mesmo, 15 páginas de regras para a submissão de um texto com no máximo 8 páginas.

Quando eu pensei em relatar essa experiência foi com a melhor das intenções, e até mesmo acreditando estar contribuindo ou sugerindo uma possibilidade de abordagem para disciplinas, como a que relatei, marcadas por um alto grau de abstração e reprovação por parte dos estudantes. Pensei no relato como forma de mostrar pros colegas de ofício e receber deles a apreciação e críticas, tão fundamentais na construção de práticas de ensino e aprendizagem.

Mas as regras, ah, as regras, me retiraram de tal maneira a vontade da tal submissão que desisti por completo. Tamanho de letras, espaçamentos, margens, referências bibliográficas, tudo com suas medidas, tantas e tão implacáveis, que cansei até de lê-las.

Reproduzo aqui, como ilustração, um pouquinho das tais regras só para o uso de alíneas.

“ É possível, também, o uso de alíneas, que obedecem às seguintes indicações:

  1. a) Cada item de alínea deve ser ordenado alfabeticamente por letras minúsculas seguidas de parênteses, como neste exemplo;
  2. b) Use ponto-e-vírgula para separar as alíneas, exceto no último item;
  3. c) A lista de alíneas é separada do parágrafo de texto anterior por meia linha em branco (6pts) e do parágrafo de corpo de texto seguinte por uma linha (12pts);
  4. d) O estilo "Alínea" constante deste documento pode ser usado para a aplicação automática da formatação correta de alíneas.”

É claro que esse conjunto de regras não é um privilégio apenas do SEMIEDU. Para qualquer lugar que se ande na academia, é forte a pressão de órgãos que nos medem da cabeça aos pés, nos controlam e nos padronizam. Estamos, lembrando aqui de Herbert Marcuse,  unidimensionais, no apogeu do progresso técnico e vivendo numa sociedade cada vez mais sem oposição.

Mas qual será mesmo a gravidade estética de um espaçamento 1,5 ser trocado, por exemplo, por um de medida 1,0? Ou por outra, quão sério é uma margem superior 2,5 ser trocada por uma de 3? Mais grave do que tudo: imagine a tristeza de um avaliador do evento ao ter que conferir essas medidas. Imagine ainda dispensar um trabalho acadêmico sob a alegação de que numa referência bibliográfica, uma certa letra minúscula foi trocada por uma maiúscula.

Lembrei aqui de um artigo, no qual constava a demonstração da infinitude dos números primos e que foi feita em apenas uma linha. Segundo as normas do SEMIEDU, esse importante trabalho não teria chance de ser aceito.

Por fim, quem tem tempo de ter criatividade se uma avalanche de normas e regras rígidas tolhem a paciência, roubam o tempo e  asfixiam a liberdade de pensar sob o pretexto de, nos moldes de uma linha de montagem, padronizar os trabalhos pela escrita?

De quem são, afinal, as palavras iguais que constam dos trabalhos acadêmicos? A quem interessa tanta coisa cinza?



*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá.
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Quinta, 13 Setembro 2018 09:35

 

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Por Aldi Nestor de Souza*


E justo agora que meu corpo caiu de preço, vou ter que mudar de endereço. A Universal comprou o prédio inteiro e o puteiro vai virar casa do senhor. Isso mesmo. O Senhor tá construindo um latifúndio. Já tirou o ganha pão de um monte de gente carente, que eu sei. Acabou com o cine pornô, com o sebo, com o bar da esquina e da frente, com a igreja concorrente. Até farmácia já comprou. Que horror. Eu, hein, brigar com Deus sei que não vou, mas que parece que ele gosta de concentração, lá isso parece. Ainda bem que não aprendi a fazer prece, senão eu estaria agora pedindo pra quem? Hein? Responda. 

Vou sentir falta, por uns dias, desse meu quartinho, das minhas coisas guardadas na mala em baixo da cama. Grandes coisas essas que somem dentro de uma malinha de nada. Acho que a gente é treinado pra sentir falta do nada que não tem. Merda. Mas falta é coisa que dá e passa e esse quarto nem é meu. Ainda bem. E você, vai sentir falta de que? Hein? Responda. 

Se fosse no tempo em que eu ainda sabia sentir dor, acho que estaria desesperada, aos prantos, protestando e brigando por aí feito uma destrambelhada. Tempo besta esse, ainda bem que já passou. Com a chegada dos anos, a gente se acostuma até com a morte. Sorte? “Tristeza não tem fim, felicidade sim”. Se até um poeta disse essa besteira, que direi eu que nada sou e que não sei dizer nada? Hein? Responda. 

A essas alturas, acho que vou mesmo é pra rua. Qual é a sua? Não é possível que o senhor vá querer me expulsar até de lá, né não? Vou me deitar no chão, olhar pro tempo, pro vento, pra nada, vou me proteger com a lua, com o sol, com um lençol. Um boquete atrás de um caminhão, dezão. Dá pro bagulho. Uma transa no capim, num beco, no seco, sem leito, assim feito os animais, liberais, degredados, filhos da erva. E ai de quem se meter a besta e querer dedurar o meu jeito de não ser, de não estar, de não existir, de não sentir. Vão todos pro senhor que os carregue. E você, vai pra onde? Hein? Responda. 

E quando eu tiver a imensidão da rua ao meu dispor, e tiver uma rua diferente por dia pra dormir, e puder escolher a calçada, e puder escolher o papelão, e tiver dormindo no chão, e tiver perdido a razão, acho que vou até ficar contente e agradecer ao senhor. Vida besta essa. “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” Hein? Responda.
 

*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática - UFMT/CUIABÁ
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Quarta, 05 Setembro 2018 11:35

 

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
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Por Aldi Nestor de Souza*
 
Todos os dias, pontualmente às 10 da manhã, Tia Nanoca interrompe a aula, pede silêncio à criançada, saca seu rádio de pilha da bolsa e liga pra acompanhar a divulgação do resultado do jogo do bicho. Anota com cuidado a cabeça, a centena e a milhar, confere sua aposta, comemora ou xinga o resultado, guarda o rádio e volta pra cuidar da aula.


Tia Nanoca dá aula há quase trinta anos na mesma escola e lida na educação infantil com a turma de alfabetização. Ela ganhou notoriedade pelo ritual do rádio, mas principalmente por conseguir, na hora certa e com muita eficiência, alfabetizar a garotada sob seus cuidados. Ninguém sai das mãos dela sem saber ler e contar como convém.


Ela até enfrenta lá algumas queixas, de pais e de colegas  professores que estranham o rádio e a contravenção explícita, mas ela tem conseguido, sem maiores traumas, superar tudo isso porque ninguém da escola, e até mesmo de sua cidade, tem desempenho superior ao seu.


Todo ano aparecem, flertando com a vaga dela, concorrentes novas, aos montes, cheias de pedagogia, de tecnologia e dispostas até a ceder na mais valia, mas até agora nenhuma foi capaz de substituí-la. E o dono da escola já explora o folclore de tia Nanoca como moeda de troca pra conquistar mais matrículas.


A sala de aula de tia Nanoca, por exigência dela, é a única da escola em que a lousa é de giz. Ela não cedeu ao fetiche do quadro branco, tampouco ao da lousa digital, que já aportou por lá em algumas salas. Ela compensa todas essas novidades fazendo, no melhor dos termos, de sua sala de aula,  uma extensão da vida e estabelece com seus alunos uma relação de confiança típica das boas relações familiares. Ela confessa aos alunos, quando é o caso, que tá morrendo de preguiça e até para a aula antes da hora quando tá cansada. Ela para e diz: “hora de não fazer nada, criançada. Vocês podem brincar do que quiserem”. Ela já chegou até a cochilar na aula. Mas a meninada não estranha, não dedura e cuida dela como quem cuida de alguém que a gente gosta muito.


E a meninada retribui confessando a ela as coisas mais inconfessáveis. Não é raro algum aluno dizer que já quer namorar ou que sentiu vontade de matar um coleguinha porque esse aprontou alguma; também é à tia Nanoca que  os alunos contam, sem maiores pudores, por exemplo, que a mãe é espancada quase todos os dias pelo pai. E tia Nanoca considera a sua função de professora como um aporte pra discutir e ajudar a criançada nesses problemas.


Tia Nanoca se nega a fazer oração no começo de suas aulas. É a única da escola a fazer isso. Ela troca a oração por canções, ou por brincadeiras antigas que andam caindo no esquecimento. Ou então ela pede pras crianças contarem a maior travessura que aprontaram no dia anterior. “Mas só vale se for uma coisa bem cabeluda ” – afirma. Tia Nanoca não esconde das crianças que nós somos uma espécie de uma incompletude sem tamanho. Não esconde nenhum dos erros que comete nem as falhas; e trabalha bem esses erros e essas falhas sem a pretensão de corrigi-los, apenas de entender a nossa humanidade a partir deles.


 Quando o resultado do jogo do bicho é um quase lá. Por exemplo, quando dá 17 e ela jogou 18,  não consegue conter um “puta que pariu!” bem alto, bem na frente das criancinhas que,  de tão acostumadas e calejadas de ouvir coisas bem mais pesadas em casa,  apenas riem aos borbotões da pobre da tia Nanoca.

* Aldi Nestor de Souza
professor do departamento de matemática - UFMT/Cuiabá
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Terça, 28 Agosto 2018 14:19

 

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Por Aldi Nestor de Souza *

 

O porte obrigatório, que começou pelas escolas, fez com que uma enxurrada de professores e professoras, que nunca haviam pego em armas, corressem para adquirir as suas. O governo, com o apoio da indústria das armas e das munições, deu subsídio aos mestres e estes puderam comprar as suas com descontos generosos e até financiar em 36 vezes sem juros.

A arma preferida pelos professores é o revólver calibre 38, pois cabe na bolsa e facilita o transporte. Mas há os que preferem coisas maiores, como as pistolas, chegando até às metralhadoras. Além da compra da arma, o treinamento para poder usá-la surgiu como demanda, o que fez com que várias escolas de tiro fossem criadas em todas as cidades.

O uso de armas pelos profissionais da educação, durante o exercício da profissão, foi uma decisão acatada pelas autoridades de ensino e tem por objetivo conter a violência no interior das unidades escolares. E a decisão é válida pra todo mundo da escola: professores, coordenadores, diretores, pessoal da limpeza, da segurança, da cozinha. Só os estudantes são impedidos de usar armas.

Além dessa medida, uma outra, na mesma direção, também foi implantada. Trata-se da revista minuciosa de todos os estudantes na entrada das escolas. Revista completa e de tudo. Mochila, bolsas, uniformes, tênis e até as virilhas. Foi preciso muito esforço no começo, até seguranças precisaram ser contratados e uma hora por dia foi acrescentada ao horário habitual para que as revistas fossem levadas a cabo.

Amplamente debatidas pela comunidade escolar e pela sociedade em geral, essas medidas, sugeridas pelo governo, contam com apoio quase unânime das pessoas, das escolas, dos pais e mães dos alunos e dos estudantes bem comportados. Aos pouquíssimos professores que não concordam, a demissão ou mudar de função são as saídas.

As medidas estabelecem ainda critérios para o uso das armas de fogo em sala de aula. Por exemplo, cada aluno que for repreendido três vezes ou mais, por qualquer que seja o motivo, poderá, a critério do professor, ser baleado.

E os estudantes bem comportados cumprem papel fundamental nessa empreitada. É graças a eles e ao serviço de delação premiada, criado em cada escola, que os motins, as tentativas de rebelião e os ensaios de greve ou de protesto são contidos a tempo.

Qualquer aglomeração de mais de duas pessoas na quadra, nos corredores, no pátio ou mesmo nas salas de aula, é acompanhada pelos “estudantes do bem”, que é como são chamados os bem comportados, que imediatamente comunicam à direção.

Rodrigo, de quinze anos, foi vitima de uma delação. Ele era aluno do nono ano quando o professor, novato no uso de armas, foi  alertado e o flagrou pela terceira vez colando em uma prova. Para repreendê-lo, o professor decidiu dar um tiro no pé do estudante. Mas, com a falta de prática e o nervosismo, acabou acertando o coração e o garoto morreu na hora.

Os pais de Rodrigo, conhecidos defensores da ordem, da moral, da família e do porte de armas, apesar da tristeza, compreenderam ser isso o melhor pra toda a sociedade e alertaram ao filho mais novo a não repetir o erro do irmão.

Vários casos, semelhantes aos de Rodrigo, aconteceram por todo o país. Apesar deles, os relatos de contenção da violência foram tantos que conseguiram sufocar os tropeços. Além disso, outro fato serviu para animar a sociedade e dar a ela a segurança de ter feito a escolha certa. É que o desempenho dos estudantes melhorou consideravelmente. Os índices de permanência na escola, assiduidade e aprovação nos anos letivos subiram a níveis nunca antes vistos. Até em exames nacionais e internacionais as escolas melhoraram seu desempenho.

O porte obrigatório faz parte de um projeto bem maior, que pretende, progressiva e rapidamente, ser estendido para toda a sociedade.

 

*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de Matemática da UFMT/Cuiabá 

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Terça, 14 Agosto 2018 11:08

 

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Por Aldi Nestor de Souza
  

Para ajudar na renda da família, dona Cândida acaba de abrir uma universidade em sua casa. Funciona no puxadinho onde antes era o brechó, que faliu. Aposentada, ela precisa de renda extra por causa dos remédios, do plano de saúde e dos cremes pra pele, dos quais não abre mão. Dona Cândida estava em dúvidas entre vender Avon ou abrir a universidade. Optou pela última por ser mais fácil e também por causa dos filhos, que se propuseram a ajudar.

Ex aluna de uma faculdade à distância, dona Cândida cursou  administração de empresas e foi essa experiência que a levou a pensar em abrir esse novo negócio. Ela recorda que a única coisa física, a qual ela tinha contato, da universidade era o boleto bancário, que mandavam entregar pelo correio em sua casa. Lembra bem de como eram as horas de estudo, ali de frente pro computador e pras apostilas online, e brinca: “aquela aula servida fria não tinha gosto de nada, qualquer um é capaz de servir.”

Dona Cândida tem três os filhos: uma pedagoga, um formado em administração e outro em informática. Só a pedagoga trabalha na área, é professora. Os outros dois são atendentes de telemarketing.

Num final de semana, os quatro e mais alguns amigos, em mutirão, trataram da infraestrutura do puxadinho. Depois de instalar uma internet nova, mais potente, e de lavar bem o prédio, vestiram-no de uma pintura nova e instalaram uma mesinha, com um computador. Na frente da casa, esticaram uma faixa, feita pelo vizinho, Neco das Faixas, com os letreiros:

UNIVERSIDADE PARA TODOS

FAÇA SUA FACULDADE AQUI!

ÓTIMOS PREÇOS!

ACEITAMOS CARTÃO!

A universidade oferece, de início, dois cursos: Pedagogia e Administração, ambos integralmente à distância. E são os filhos de dona Cândida os encarregados de organizar a parte pedagógica. O material didático foi todo baixado da internet. Tem apostilas e links para vídeo aulas no youtube. E tem o chat, onde à noite e nos finais de semana eles tiram dúvidas.

Para compor um corpo docente e iniciar a empreitada, contaram com a ajuda de alguns amigos professores, que, em uma tarde de sábado, aprontaram os dois projetos dos cursos. A internet, brinca dona Cândida, “é uma perdição.“

Dona Cândida cuida da divulgação: distribui panfletos nas ruas, nas feiras livres e nas redes sociais. Também vai na vizinhança e nas casas das amigas convencê-las a voltar a estudar e fazer um curso superior. “Faça pedagogia, mulher! É melhor do que ficar só assistindo novela,” argumenta.

A proposta principal da universidade é o preço da mensalidade, 49,90, o menor do mercado. Mas como o negócio é um bico, e montado quase sem custos, toda grana que entrar é lucro. Lucro que é dividido igualmente entre os quatro.

Para a matrícula, eles aceleraram na propaganda, bolaram promoções e botaram até carro na rua a anunciar: “venha fazer um curso superior, super promoção de inauguração na UNIVERSIDADE PARA TODOS. Não tem vestibular, basta ter concluído o ensino médio.  Somente essa semana, fazendo sua matrícula, que custa apenas 50 reais, você participa do sorteio de um lindo liquidificador”.

Eles pensam em, no futuro, se cadastrarem pra disputar as linhas de crédito da financeira FIES. Por enquanto, capricham no argumento de que é melhor pagar pouco e não acumular dívida. Sabem bem, e exploram ao máximo, a proposta do governo de transformar o FIES numa espécie de empréstimo consignado, que será descontado em folha assim que o estudante arrumar um emprego.

Cerca de 80 alunos se matricularam em cada curso, na primeira turma. E dona Cândida, que já foi balconista de loja, recepcionista de hotel e adora blush, hoje é reitora.

 

Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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