Sexta, 03 Fevereiro 2023 10:17

 

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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(Para Fernando Freitas

Vanessa Clementino Furtado
Profa. Departamento de Psicologia - UFMT
doutoranda UFRN
Militante Antimanicomial

A eugenia foi um tema que voltou a ser debatido criticamente no processo da pandemia no Brasil. Afinal, os processos de ausência de políticas de enfrentamento e os recortes entre aqueles mais atingindos pela mortalidade descortinaram questões de classe, raça/etnia, gênero/sexo e regionalidade. 
As ideias eugênicas, sejam tais e quais foram explicitadas nessa conjuntura pela primeira vez em rede nacional por Arnaldo Lichtenstein, continuam sendo cruciais para desvendar características fundamentais do movimento bolsonarista e seu ódio aos processos democráticos. Assim, é preciso chamar as coisas pelo nome que elas têm para se entender o processo evidenciado no Brasil com a eleição de Lula.

Entre tantas formas de expressão do elitismo e do ódio de classe, muitas das formas do autoritarismo moderno constituíram a eugenia como uma das características mobilizadoras, aglutinadoras e operativas da sua violência, constituindo com o belicismo, o pseudonacionalismo e o discurso anti-comunista a fim de desenvolver meios de higienização social, pressionando parcelas exploradas e oprimidas para às margens da sociedade, eliminando, patologizando e vilipendiado corpos, identidades e grupos.

A repulsa atual, extremada após os resultados das urnas de outubro de 2022, tem ênfases diferenciadas, mas se deu desde o primeiro mandato de Lula, em 2003. Naquela época muitos dos que se opunham a ele alegavam que ele era "um analfabeto" e por este rótulo muitos outros estigmas apareciam: era pobre; sem modos ou educação para se portar em espaços de tanta cerimônia e protocolos; não sabia falar outros idiomas (como o sociólogo, ex-presidente a quem o sucedera) e por aí seguiu em seus 8 anos de mandatos. 

Contudo, e fundamentalmente o ser "um analfabeto" o colocava no lugar de alguém do povo. E como povo, nordestino, operário, sindicalista ascendeu ao cargo máximo da administração pública. Mas, aos olhos de uma sociedade elitista como a nossa, o incômodo pairava: como é possível alguém do povo (e não da elite) ocupar este cargo? Pois a culpa recaiu sobre o regime político: a Democracia! 

Curiosamente, mas não por acaso, este mesmo debate tomou conta das pautas políticas na Alemanha do início do século XX (pré-Hitler), na onda de protestos populares e proletários pela queda do império (Reich) e a instauração de um regime democrático, muitos intelectuais eminentes da época se levantaram contra o povo. Sob o discurso empolado e científico das recentes descobertas das ciências naturais, mais precisamente a teoria da evolução de Darwin (ou o que fizeram dela com o darwinismo social) e a genética mendeliana, bem como a biometria de Galton ergueu-se um coro de cientistas contra o regime democrático e contra o proletariado. 

Um desses homens da ciência que se levantou veementemente contra o regime democrático foi Emil Kraepelin, médico, pesquisador que fundou, a partir da Psicologia Experimental de Wundt, as bases do que hoje conhecemos por psiquiatria. Considerado o pai da psiquiatria moderna, Kraepelin criou um sistema de classificação de doenças psiquiátricas e tratou de relacionar os comportamentos criminais com psicopatologias, orientando a área da psiquiatria forense até os dias atuais. Desconsiderando as questões sociais, para ele o comportamento criminoso, bem como, o desenvolvimento de alguma psicopatologia era algo da ordem da biologia, ou seja, era herdado biologicamente por meio da lei da hereditariedade. 

Nesse sentido, então, Kraepelin defendia que traços de comportamentos eram herdados desde os mais remotos ancestrais e que qualidades ou "degenerações", inclusive de caráter, eram também fruto dessa herança. Por este motivo, ele compreendia que a Democracia era algo ruim, pois por meio dela, pessoas da classe operária (gente do povo) poderia ascender ao poder. Em suas palavras: 

A ascensão de certas classes a posições confortáveis e importantes na vida deve ter dependido desde o início de que elas provassem sua coragem na luta por existência (Dasein Kampf. A luta garantiu-lhes uma posição superior em seu ambiente. Além disso, pode-se supor que seus traços positivos foram herdados e, portanto, que as gerações posteriores de uma antiga linhagem familiar que defendeu sua posição ao longo dos séculos manteve, até certo ponto, aquelas características que uma vez facilitaram sua existência Por outro lado, parece óbvio que os ancestrais daqueles pertencentes às classes mais baixas não possuíam, em geral, características que os equipassem para realizações extraordinárias e, portanto, não poderiam transmitir tais características. (Kraepelin, 1919 p. 181 apud Engstrom, 1991 p. 131)

Foi, portanto, que em minhas pesquisas na área de Saúde Mental pude, então, fortalecer a constatação de que os movimentos antidemocráticos que se instauram no país têm uma característica EUGÊNICA!. Tal qual como Kraepelin (e outros cientistas da época) acreditavam que não era possível ao povo ascender ao poder, o movimento bolsonarista expressa, em termos de ideais e de representatividade, as mesmas ideologias e se enraivece com a ideia de que o povo brasileiro é majoritariamente o povo preto, os povos indígenas, as mulheres trabalhadoras, as pessoas nordestinas, é, sobretudo, um povo plural muito distante da ideia da branquitude sudestina com descendência europeia. 

A escalada violenta e golpista não é resultado de uma patologia. Não há um diagnóstico para o que está acontecendo, não é loucura ou demência, diferentemente do que muitos têm alegado por entenderem erroneamente que a loucura é a quebra com a realidade. O processo anti-democrático é, sobretudo, EUGÊNICO! E, se guarda qualquer semelhança com a psiquiatria hegemônica, a semelhança é esta: ambas são compostas por ideias e ideais eugênicos! 

Em tempos de crise, não foi incomum que a violência e o moralismo se mascarassem de rigor científico para conjugar uma ideologia de classe supremacista sob o argumento de enfrentar "problemas sociais" e melhorar a sociedade. Foi neste sentido que, segundo de Souza (2012): 
O cientista britânico Francis Galton empregou a palavra eugenia, em 1883, para definir a ciência da hereditariedade humana. Suas idéias sobre o aperfeiçoamento das características raciais se associariam intimamente às discussões sobre evolução e degeneração, progresso e civilização, conceitos fundamentais na formulação de concepções científicas e sociais na passagem do século XIX para o XX. De maneira geral, pode-se dizer que a eugenia foi um movimento científico e social que se relacionava ao debate sobre raça, gênero, saúde, sexualidade e nacionalismo, apresentando-se frequentemente como um projeto biológico de regeneração racial. (p. 01-02)

Já no Brasil, do início do século XX, as ideias eugênicas foram amplamente propagadas por Renato Kehl (1935) que enfatiza: "(...) a eugenia esforça-se pelo constante e progressivo multiplicar de indivíduos 'bem dotados' ou eugenizados." (p. 46 apud Boarini e Yamamoto, 2004 p. 05). 
Para este fim, os eugenistas entendiam que diversos traços de comportamento humano eram/são herdáveis a partir do aparato biológico, o que hoje chamamos de herança genética. Assim, seria possível produzir indivíduos geneticamente melhores para que se pudesse regenerar a sociedade de suas mazelas como o alcoolismo, por exemplo. Esta é a idéia que Kraepelin também defendeu, isto é, que a melhoria genética iria paulatinamente eliminar as mazelas sociais, que as pessoas pertencem a determinada classe social não por questões de desigualdade, racismo, misoginia, etc. mas sim porque nasceram com aparato biológico que as colocam nessa condição. 

As descobertas das ciências naturais de fato revolucionaram a forma de se pensar a própria criação dos seres humanos, os estudos de Darwin e Mendel, ajudaram a derrubar os mitos das vocações divinas atribuídas a determinados sujeitos privilegiados que eram os escolhidos de Deus para fazer parte da monarquia, dos altos cargos da administração do Estado, ou da "high society". Contudo, a imperativa escolha divina de outrora, fora substituída pelas heranças biológicas, genéticas de agora e a eugenia tomou posse dessas ideias para justificar, então, as diferenças entre as raças/etnias, os gêneros e as classes sociais. 

Então, se não era mais a providência divina que nos dava atributos, na quadra histórica moderna, o argumento passa a ser a herança biológica como o determinante de nosso comportamento, de nossas habilidades e sobretudo capacidades intelectuais e comportamentais. A partir do império da biologia, outra ciência passa a ser fundamental para as ideias eugênicas da biometria de Galton que fundamentará, na psicologia, a área da psicometria. Em essência, as habilidades ou o desenvolvimento das funções psicológicas estariam sujeitas, também, à herança genética e seria possível medir quanto de capacidade psicológica ou, como queiram, intelectual uma pessoa seria capaz de possuir ou possui a partir de sua herança genética. Daí que se deriva a ideia dos testes de Q.I., por exemplo. Assim, se fortalece convicções cientificistas como se a genética estivesse na base de todo desenvolvimento psicológico, onde a partir do momento que se herda tais caracteres, todo ser humano estaria fadado àquela condição ad aeternum.  

E como a ciência é também política, mesmo as ciências naturais e ou exatas, e mesmo na medição galtoniana há ideais políticos, a eugenia também serve de argumento para o movimento fascista pois, em sua essência está "(...) o desprezo pela democracia eleitoral e pela liberdade política e econômica, a crença numa hierarquia social natural e no domínio das elites (...) (Bruinjé e Oliveira, 2021 p. 39 - grifo nosso). 

Por este motivo, entre tantos outros, para os fascistas bolsonarista a Democracia é também ruim, pois se os gestores são escolhidos a partir do voto e não por meio de sua suposta superioridade, as chances de se eleger alguém inábil para o cargo seriam grandes. Esta é justamente a ideia que se expressou na base do movimento anti-democrático na Alemanha após o II Reich e que culminou, ao final da I Guerra Mundial na ascenção do partido nazista ao poder e o resto da história todos nós já sabemos, a perseguição a população preta, lgbtqia+, povos judeus, povos ciganos, etc. 

As ideias eugênicas foram bases para diversas atrocidades e seguem vivas em nossa sociedade atual, seguem vivas na base do movimento anti-democrático financiado e executado por pessoas que se julgam superiores, mas que no fundo repetem uma ideologia que se expressa em preconceito, racismo, xenofobia, misoginia e lgbtqia+fobia. Mais ainda, se expressa na forma da Necropolítica que como afirma Mbembe (2018) está para além do "deixar morrer" é a efetiva ação do Estado em matar/exterminar determinados corpos. 

Foi a despeito da eugenia que Hitler perseguiu e matou diversas pessoas que por ele não eram consideradas superiores, foram as ideias eugênicas de melhoria da raça humana que o fizeram acreditar na possibilidade de uma raça humana superior - a ariana, foram as ideias eugênicas incutidas em toda a população que, sobretudo, sustentaram o governo narzista no poder por tantos anos, além do providencial financiamento do capital. 

A Ditadura cívico-militar em toda América Latina, que não perseguiu apenas pessoas ligadas aos partidos de esquerda, mas matou muitos jovens nas periferias das grandes cidades fora das mobilizações políticas organizadas, que ao conceder terras a agricultores concedeu também o direito a invasão territorial e massacre dos povos indígenas que nessas terras habitavam, também têm em sua base os ideais eugênicos. 

Para além do negacionismo evidente, das bravatas aparentes, dos escândalos mascarados de delírio, das mentiras que surgem nas ruas e calçadas dos quartéis e redes sociais, é preciso aprofundar as questões onde imperam os fundamentos da intolerância, do autoritarismo, do preconceito. Não é só a caricatura moralista e irracionalista que busca a realização golpista, mas toda racionalidade que não rompeu com o conservadorismo e permanece distante da luta contra as desigualdades, mantém fundamentos que não se dissociam de lógicas opressoras como aquelas que abraçam a eugenia e os princípios antidemocráticos.

Por isso, é preciso defender a Democracia Sempre, para que ela esteja viva entre nós, é preciso lembrar e relembrar sempre que a despeito da ideologia eugênica nas ciências se ergueram regimes como o Nazismo, o Fascismo e as Ditaduras da América Latina que subjugaram pessoas, povos, etnias à condições subumanas. Portanto, é preciso chamar as coisas por seu nome o movimento antidemocrático é eugênico e por isso fascista, racista, xenofóbico, misógino, violento e opressor. Não por acaso e de forma brilhante, a Ministra Anielle Franco em seu discurso de posse enfatizou: "Como nos lembra a Coalizão Negra por Direitos, composta por mais de 200 organizações negras no país: enquanto houver racismo não haverá Democracia!" 

Referências Bibliográficas
BOARINI, M. L. e YAMAMOTO, O. H. Higienismo e Eugenia: discussões que não envelhecem. In: Psicol. rev ; 13(1): 59-71, maio 2004.

BRUINJÉ, A. T. e OLIVEIRA, R. Classe Trabalhadora E Racismo Durante A Pandemia: Eugenia E Fascismo No Governo Bolsonaro. In: Revista Resistência Litoral (Matinhos PR), Vol. 1 N. 1 p. 29 – 44, jan/jun de 2022. ISSN: 2764-3174 DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rrl.v1i1.79294

De SOUZA, V. S. AS IDEIAS EUGÊNICAS NO BRASIL: ciência, raça e projeto nacional no entre-guerras. In:Revista Eletrônica História em Reflexão: Vol. 6 n. 11 – UFGD - Dourados jan/jun 2012

ENGSTROM, E. Emil Kraepelin: psychiatry and public affairs in Wilhelmine Germany.In:Hist. Psychiatry. 1991 Jun;2(6):111-32. doi: 10.1177/0957154X9100200601. PMID: 11613214.

FRANCO, A. Discurso de Posse Ministerial: Ministério da Igualdade Racial. Brasil, 2023.
MBEMBE, A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 

 

Sexta, 16 Dezembro 2022 12:08

 

 

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Ao final do governo ultraconservador, parlamentares tentam mais uma investida contra a vida das mulheres e de pessoas que têm útero. Estão retomando na Comissão da Mulher na Câmara a discussão do "Estatuto do Estuprador", um projeto de Lei que prevê, entre outras aberrações, que o estuprador tenha o "direito" de convívio com a criança e seja responsabilizado por pagar pensão, além disso, dificulta ainda mais o acesso a meios abortivos seguros, em caso de estupro, como previsto por Lei. Uma aberração machista e torturadora dos corpos das pessoas que têm útero. Sendo que, a maioria dos deputados a favor do Estatuto na comissão das mulheres da câmara são homens.


Há algum tempo, na primeira tramitação do projeto, escrevi esta crônica denunciando e ilustrando os processos adoecedores e traumáticos desse tipo de imposição às pessoas que t6em útero. Agora, com as discussões afloradas novamente na comissão, compartilho o texto e aproveito para convocar a todas e todos contra mais esta aberração legislativa proposta pelo senador bolsonarista Eduardo Girão (CE).


Abaixo o texto que produzi e publiquei no portal Mad In Brasil.
 


 

Profa Vanessa C Furtado 
Departamento de Psicologia
Originalmente publicado em: https://madinbrasil.org/2022/06/a-lei-dos-homens/
 

 

           - Doutor, o senhor já foi assaltado? 

           Foi esta pergunta que ela lhe fez, ainda com a voz embargada, quase afogada pelas lágrimas, enquanto sua internação era admitida, e a gestação em curso constatada. O médico da internação lia sua AIH (autorização de internação hospitalar) cuja hipótese diagnóstica que justificava o pedido era: F 60.3 (impulsividade, agressividade, auto mutilação, instabilidade emocional). 
           Esta AIH fora preenchida quando, aos berros, ela agrediu a equipe do hospital onde buscou atendimento quando descobriu a gestação. Nesse hospital, recusaram-se a dar encaminhamento ao seu processo de aborto, atropelando, assim, a decisão que ela havia tomado, de interromper aquela gestação.
           - Doutor, o senhor já foi assaltado? Tomando fôlego e interrompendo aquelas explicações que mal conseguira decifrar uma só palavra. 
           O médico parou, olhou para ela, respirou profundamente e respondeu:
           - Quem nunca, é o preço que se paga por morar numa cidade como essa e ter condições de comprar coisas boas. Coisa boa é cara e ladrão só quer saber de coisa boa, de gente que trabalha para comprar. 
           - Alguma vez o senhor sentiu medo? Insistia ela.
           Ele, então, estranhou a pergunta, mas contou que recentemente sua mulher havia sido assaltada, com arma na cabeça "Aqueles vagabundos!" fizeram ela de refém durante 12 horas e até hoje ela tem tremedeira e crises de ansiedade ao sair de casa, não consegue mais passar pela rua onde tudo aconteceu e, para falar a verdade, pouco estava saindo de casa. O carro foi encontrado no dia seguinte, agora está na casa da mãe dela, porque ela não suportava olhar para ele de novo. Dizia que ao entrar no carro era capaz de sentir o cheiro daquele homem, misturado com de sua própria urina que ela não pôde conter diante de tantos gritos, armas na cabeça e ameaças a sua vida. A roupa que usava naquele dia, foi toda posta em saco preto direto para o lixo. "Esses vagabundos! Olha, se eu pego um sujeito desse, sei nem o que eu faria! Só eu sei os dias de tensão e sofrimento que temos passado em casa com minha esposa, ainda bem que agora está medicada!". 
           Conforme o médico ia contando, ela foi se arrumando na cadeira, as lágrimas já haviam parado de escorrer e ela já conseguia falar sem se sentir sufocada. Quando ele terminou a história, olhou para ela e perguntou:
           - Mas porque mesmo estamos falando disso? Bom, vamos ao que interessa: você será mamãe, está pronta para isso? Nós vamos garantir sua integridade para que a gestação ocorra dentro dos conformes. Terá que ter muito juízo agora, cuidar de você e desse pequ…
           - Doutor, eu quero tirá-lo! Não quero essa gravidez! Eu não planejei isso, não é justo comigo! - Disse ela de um grito e forte tapa na mesa, interrompendo o médico que insistia em ignorar o seu pedido inicial. 
           Ele fechou o semblante de imediato e disse que ela precisava dos documentos para isso, que ele não seria conivente com esse crime. Explicou que poderia até pedir um dinheiro do governo para custear a vida da criança e a encaminhou para a assistência social. 
           - O que adianta dinheiro se terei que conviver com o fruto da violência todos os dias da minha vida? Se terei que olhar para essa criança que não pediu para nascer e lembrar daquele dia, daquele homem, de sua voz, seu cheiro e toda a sua sujeira?! Por que tenho que ser "A louca" aqui? Enquanto o Sr e sua esposa sequer conseguem olhar para um mero carro na garagem, por causa de um assalto…  Por acaso seria loucura minha o fato de eu não ser capaz de gerar, parir, criar uma criança e ainda amar algo que me fará lembrar e reviver aquele dia? O que eu só quero é esquecer! Seria eu louca por ter sido vítima de uma vi-o-lên-cia, doutor! Ficarei presa nisso, diariamente vivenciando essa violência que rasgou meu corpo. O senhor precisava ver como eu estava quando cheguei ao hospital geral, dilacerada física e psiquicamente, minhas pernas mal podiam ficar fechadas e o sangue escorria... 
Com a voz vacilante o médico sussurrou:
- Mas é uma vida!
- E a MINHA VIDA? - Gritou ela aos prantos e trêmula: -  O senhor seria capaz de criar e amar o homem que assaltou sua esposa? Ela seria? Porque eu devo ser obrigada, condenada a conviver diariamente com essa representação da violência que sofri? E ainda mais presa aqui… 
O médico balançava a cabeça em sinal de negativa e franzia a testa, explicitamente irritado com aquela conversa e ela, como uma metralhadora, continuava a questioná-lo:
- O senhor sabe o que isso vai custar da minha vida? Não vou poder continuar minha faculdade, não terei condições de conseguir um emprego melhor, com salário melhor e que me dê condições de vida melhores. E a minha vida, doutor, como fica? E a minha vida?
Caiu no choro! Enquanto o médico preenchia um calhamaço de papéis entre prontuário, receitas e encaminhamento, alguém a consolava: dizia que há males que vem para o bem, que Deus escreve certo por linhas tortas, que uma vida é sempre sagrada, por isso ela ficaria ali, internada, para garantir a dignidade e integridade daquela vida que carregava no ventre e que, quando saíssem, ainda teria a bolsa de ajuda e que ninguém ali poderia ir contra a lei divina…
O médico, entregando os papéis, levanta da cadeira e  completa:
- Isso. E nem a lei dos homens… além disso, você receberá um auxílio, não é muita coisa, mas é bem… bem vindo. Ou entregue a criança para adoção!
Ela ficou ali, atônita, enojada, enjoada... gerando uma repulsa, martelando os velhos ditados em sua mente, sentido a Lei dos Homens marcada em seu corpo e no seu espírito a certeza de que há bens que vem para males.

 

Segunda, 28 Junho 2021 10:56

 

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Profa. Vanessa C Furtado
Depto de Psicologia da UFMT
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Quando Guy Debord escreveu "A Sociedade do Espetáculo" (1967), imagino eu que ele não tinha em mente, o que são hoje, as redes sociais, aqueles eram tempos da televisão onde um pequeno e seleto grupo de humanos e humanas tinham a chance de mostrar a sua imagem para milhares de pessoas. Contudo, Debord, analisando o fenômeno do espetáculo desde sua aparência até sua essência e apreendendo sua dinâmica, escreveu o seu livro, que eu vou chamar de "profético". Porque, olhando com os olhos de hoje, onde estamos cada vez mais imersas na internet, ao passo que vamos tentando fazer de nossas vidas individuais um espetáculo consumível por tantas pessoas quanto a internet for capaz de alcançar, ou melhor engajar; também vamos ficando cada vez mais sedentas de conteúdos que possam ser espetacularizados e, portanto, consumíveis.


Assim, Debord já no início de sua obra afirma: "O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. (...) Ele é a afirmação omnipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo" (p. 09).


Para este autor, todas as formas de espetáculo servem à lógica do consumo, inclusive a informação. E esta, se antes chegava em horários específicos, pela televisão, escritas em jornais impressos diários ou semanais, hoje ela está ao alcance de nossas mãos 24 horas por dia sendo repetida e atualizada. E o mesmo tema toma conta das pautas de diversos sites, com chamadas ("chapéus" como se diz na gíria jornalística) cada vez mais criativas e que aguçam nossa curiosidade para nos fazer, então, clicar. Se a TV se vende e nos vende, chamando a gente de audiência, a internet disputa nossos cliques ou likes, e aí vale toda a criatividade de quem escreve para chamar seu público ao clique/consumo.


Ao fim e a cabo é mais uma das expressões da alienação, que coisifica seres humanos e nos reduz ao produto a ser vendido, como explica Mészáros:
"A alienação caracteriza-se, portanto, pela extensão universal de ‘vendabilidade’, a transformação de tudo em mercadoria, pela conversão dos seres humanos em ‘coisas’, para que eles possam aparecer como mercadorias no mercado." (Mészáros, 2006, p.39 )


Este é o movimento que estamos assistindo há duas semanas com a chamada "Caçada de Lázaro", classificado pela polícia e a mídia como um todo como "serial killer". O termo em inglês não é por acaso, pois justamente nos remete aos espetáculos fílmicos hollywoodianos que nos acostumamos a consumir, onde uma pessoa passa a cometer crimes em série, em geral com doses de suspense sobre a identidade do criminoso e terminam com ação contundente da elite da polícia. E, claro, não se pode esquecer que nas histórias da telona, o tal serial killer é sempre uma pessoa com algum diagnóstico psicopatológico e, por esta razão, dono de uma mente misteriosa a ser investigada, despido de sentimentos de empatia para com o outro, insensível à morte de suas vítimas, cruel, por um lado, mas absolutamente inteligente e genial, por outro.


Os roteiros fictícios, sempre vão costurando uma narrativa que nos faz sempre questionar *Como pode um ser humano ser cruel assim?". E explicam tal comportamento sempre de forma metafísica e, desta forma, associam à cultos satânicos, a possessão demoníaca, que, infelizmente, não raras as vezes, são colocados quase que em pé de igualdade a um diagnóstico psicopatológico ou é o próprio diagnóstico que é tomado como justificativa dos comportamentos considerados bizarros, estranhos. E, não por acaso, todos esses elementos de narrativa, podem ser notados também nas diversas matérias que cobrem a chamada "caçada à Lázaro". 


Como matéria de jornal, no entanto, lida com a realidade, o que não faltam são vozes de "especialistas" em "personalidade criminosa" para explicar o comportamento de alguém que consideram ser "psicopata”. Alguém que estes "especialistas" sequer viu alguma vez na vida, sequer conversaram com ele e sequer avaliaram seu comportamento frente a frente, mas ainda assim, são uníssonos em dizer que seu comportamento é "incorrigível". Traçam seu "perfil psicológico" e, como místicos que apontam características de personalidade a cada signo; os tais especialistas da área Psi, sob o signo então do diagnóstico escolhido no catálogo disponível de doenças, distribuem características de personalidade ao sujeito, de quem só ouviram falar pelas manchetes de jornal. É a irracionalidade da racionalidade burguesa. 


Como diz Debord, todo esse espetáculo: "É o coração da irrealidade da sociedade real."


Todavia, do lado real dessa história, que não foi imaginada, que não está sendo atuada com falas decoradas e marcações de cena, mas vem sendo roteirizada pela mídia tal qual uma série policial, estão as pessoas reais que sofrem com toda essa tragédia, das vítimas de Lázaro às vítimas dessa narrativa preconceituosa, racista e desumanizadora. 


Ao longo da última semana, veio a público denúncias de abuso de poder cometido pelos policiais que atuam na "caçada", líderes religiosos dos terreiros de religiões de matriz afro que ficam próximos onde o suspeito possa estar escondido, denunciam práticas de agressão física, verbal e desrespeito com seus símbolos sagrados. Locais que foram fotografados e tidos como sendo onde Lázaro supostamente praticava rituais. Colando, então, a imagem dele com rituais chamados pela mídia de satânicos, quando na verdade representam rituais de adoração e manifestação da fé dos povos de terreiro e sequer tinham qualquer ligação com o suspeito.


A este fato, somam-se os depoimentos de pessoas que moram na região e que denunciam que suas casas estão sendo invadidas, portas arrombadas, métodos violentos de interrogação, com agressões físicas e verbais, a fim de encontrarem quaisquer pistas que possam levar a captura do suspeito. Coisas que a gente achava que eram práticas apenas da polícia de determinados estados quando invadem favelas. A constante exposição das vítimas, da família do rapaz, de seu histórico de vida tem composto o espetáculo midiático dessa trágica história que, de informação para a população nada tem de útil, pois só tem servido para propagar racismo religioso, preconceito e medo. 


Medo direcionado a determinadas pessoas que possam expressar características semelhantes às que estão sendo atribuídas ao homem suspeito, escondido na mata: homem, pobre, negro e supostamente com alguma psicopatologia. Essas são características que, de forma generalizada, na dinâmica de produção e reprodução cotidiana, acabam sendo associadas às pessoas em sofrimento psíquico. E nesse discurso, explicitamente desumanizador, a desumanização do sofrimento psíquico, seja nos discursos de periculosidade seja nos da genialidade da "loucura'', contribui para ideologia dominante justificar sua necropolítica. Que para Mbembe (2018) é mais do que matar as pessoas, mas é expor elas a condições que as deixe mais vulnerável à morte. 


A expressão da soma de todos esses elementos da narrativa midiática sobre o caso Lázaro: no dia 17 de junho (sexta-feira), um jovem maranhense (23 anos), em sofrimento psíquico e que fazia acompanhamento psiquiátrico desde criança, teria publicado mensagens de "apoio a Lázaro", policiais civis, então, invadiram sua casa e, na frente de seu avô, atiraram e o mataram.


Mistificar, glamourizar ou patologizar são verbos comuns no teatro das sombras que criam narrativas rasteiras em tragédias tão mais graças e complexas.O que aparenta ser objetivo, científico e circunscrito ao processo descritivo de um único sujeito serve como combustível para opressões históricas, atalhos retóricos. A espetacularização da violência e a reprodução do reducionismo sobre a loucura são munições que caminham juntas no show da barbárie que banaliza a vida, a morte e o que supõem ser ciência e justiça.  
 
*Texto enviado ao espaço aberto em 25 de junho 2021 Originalmente publicado em Mad In Brasil, em 23 de junho de 2021: https://madinbrasil.org/2021/06/a-fuga-de-lazaro-e-a-loucura-como-espetaculo/

Referências:
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018.
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.
 

Sexta, 26 Fevereiro 2021 11:26

 

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Vanessa C Furtado - Profa do Dpto Psicologia da UFMT
Paulo Wescley Maia Pinheiro - Prof Depto de Serviço Social da UFMT

 

Desde 2017 assistimos a série de medidas da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde que visam o desmonte de uma política construída coletivamente, calcada nos princípios democráticos e, principalmente, em práticas de atenção às pessoas em sofrimento psíquico pautadas no cuidado humanizado e em liberdade. Estas sempre foram bandeiras inegociáveis no movimento de Luta Antimanicomial, incluindo debates e estudos acadêmicos que respaldam a eficiência dessa forma de cuidado em detrimento das práticas de aprisionamento, super medicalização, contenções mecânicas (quem aqui, hoje em dia é capaz de olhar para uma “camisa de força” sem associá-la a um instrumento de tortura?). 


Nessa esteira, a nomeação do novo coordenador de saúde mental, ocorrida no dia 18 de fevereiro de 2021, concretiza mais um ato de aprofundamento dos ataques dentro da política de saúde mental, avançando a desumanização naturalizada que referenda o projeto político em curso. A medida não é menos grave, mas muito capciosa, se pensarmos que uma de suas principais defesas é relativizada por parte de setores críticos ao modelo manicomial. 
Esta nomeação que fora noticiada pela mídia hegemônica destacando que o novo coordenador é defensor da prática de Eletroconvulsoterapia - ECT - causou, por um lado, não apenas uma grande discussão e movimentou os coletivos da Luta Antimanicomial, como era de se esperar. Mas, por outro lado, levantou o debate da e-fi-cá-cia da ECT. E qual não foi nossa surpresa ao vermos companheiras/os da luta em defesa dessa eficácia? Pessoas que historicamente estiveram ativamente defendendo a Luta Antimanicomial, as práticas de Redução de Danos e todas as bandeiras do movimento. 


Diante da situação, o sentimento imediato foi de consternação, mas lá no fundo fomos mesmo abatidos pela sensação da progressiva falência das possibilidades de luta.


Desculpem o aparente fatalismo pelo qual esse texto se envereda, mas, por vezes, é preciso boa dose de fatalismo para levantar das entranhas do cansaço que o árduo cenário político do Brasil tem nos imposto, para buscarmos as raízes desse derrotismo. Para isso, é fundamental reconhecer a situação em que se encontra o processo da Luta Antimanicomial brasileira para além do campo das aparência. Tomado como exemplo, o que este debate sobre ECT tem nos mostrado, é que não basta apenas creditar este retrocesso ao Golpe de 2016 somado à ascensão do bolsonarismo, mas é estratégico que possamos nos questionar “Como chegamos até aqui?”. [Para ler na íntegra clique: https://madinbrasil.org/2021/02/a-eletroconvulsoterapia-uma-pratica-possivel/ ]
 

Segunda, 18 Maio 2020 14:12

 

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Profa. Vanessa C Furtado
Depto de Psicologia 
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Hoje é 18 de maio, dia da Luta Antimanicomial, luta esta construída por pessoas em sofrimento psíquico, seus familiares profissionais da saúde que ousaram imaginar e ousaram fazer uma sociedade sem manicômio.. Romper com os manicômios é estratégia fundamental para lidar com o sofrimento psíquico.
 
Talvez agora, ouso eu imaginar, não seja mais tão difícil de compreender quão sofrido é ficar limitado a um único espaço quando nos vemos obrigadas a ficar em casa e/ou limitar nossas saídas. Somada às nossas próprias experiências com o período necessário desta quarentena, outro fato que denuncia os prejuízos e sofrimento psíquico que o isolamento causa é o volume das chamadas "lives" sobre Saúde Mental e Quarentena, bem como, o aumento de oferta de acolhimento psicológico on-line. Então, devemos perguntar: Por que uma prática de isolamento social é defendida como tratamento para o sofrimento psíquico?
 
A respostas não é simples, mas, longe de querer ser simplista, o que podemos dizer, baseada numa análise histórica das ciências médicas, psiquiátricas e dos manicômios em nosso país é que a lógica angular dessa prática foi a Eugenia. Essa mesma palavra que andou circulando nas redes sociais, quando o médico Lichtenstein diretor técnico do Hospital das Clínicas denuncia essa mesma lógica por trás das ações anti-quarentena.

Grasso modo, de acordo com o dicionário da língua portuguesa: Eugenia se caracteriza por uma técnica que visa à seleção nas coletividade humanas baseada na genética. Na prática, foi essa técnica utilizada por Hitler para produzir a raça pura ariana e é com este espírito nazista que as ideias eugênicas entram no Brasil, com o objetivo de embranquecer a população, castrar doentes mentais, eliminar os "depravados" e produzir, assim, seres humanos que chegassem perto da ideia de raça pura e superior, essencialmente branca baseada na estética européia, em suma, no ethos burguês.
Portanto, a Luta Antimanicomial é e deve ser, uma luta anti-racista, num contexto como o do Estado de MT, por exemplo, onde a grande maioria da população dos hospitais psiquiátricos é negra.  Não por pura coincidência histórica, o primeiro manicômio no Brasil data de 1852, quando começam a ganhar força os movimentos abolicionista. Sob a falácia do cuidado, os manicômios se tornariam, então e até hoje, mais uma forma de aprisionamento do povo preto.

Contudo, compreendo o processo saúde e doença como fruto de múltiplas determinações e diretamente influenciada pelas condições do meio, objetivas e materiais e por isso, também não se trata aqui de negar que a população negra está submetida, em sua maioria, a condições que serão marcadores determinantes no processo de sofrimento psíquico e devem dispor de condições dignas de atenção à sua saúde, consideradas suas particularidades.. São condições objetivas e materiais, por exemplo, quando no meio desse período de quarentena a população do Complexo do Alemão no RJ é surpreendida com uma chacina do BOPE, onde 13 pessoas foram assassinadas, moradores do complexo tiveram seus carros destruídos pelo "caveirão" e as suas casas marcadas de bala, violência e desespero. Onde, sob orientação de isolamento social, famílias vizinhas se viram obrigada a se aglomerarem juntas em único cômodo pra se protegerem das "balas perdidas".

A luta Antimanicomial, não tem a ver só a ver com o método de "tratamento" psiquiátrico, ela está relacionada com as entranhas de uma sociedade construída sobre opressões, ela é combate, enfrentamento dessas opressões. Quando a jornalista Daniela Arbex relata no livro "O Holocausto Brasileira" a realidade do manicômio de Barbacena-MG, ela conta histórias de mulheres que foram violentadas dentro e fora do manicômio. As que foram violentadas fora, estavam lá justamente pelas consequências da violência, adolescentes que ficaram grávidas em estupros, mulheres cujos maridos as internava mesmo sem laudo médico… As que foram violentadas dentro, das inúmeras violações que sofreram, a sexual e o roubo de seus bebês (frutos da violência sofrida) gerou um "comércio" de adoções. Por isso, a luta Antimanicomial deve ser uma luta contra o patriarcado e o machismo.

Machismo que historicamente tratou as psicopatologias como uma doença feminina, a doença que vem do útero - Histérica! Que se popularizou no vocabulário cotidiano como forma de deslegitimar e desqualificar o discurso de uma mulher, mas também como forma de desumanizar e desvincular do machismo estrutural de nossa sociedade o ato de violência sexual frequentemente cometida por homens.

No esteio dessa vulgarização do sofrimento psíquico, nas interpretações esotéricas e mágicas dos fenômenos psíquicos, nas romantizações da loucura ou nas soluções simplistas para cuidar da saúde mental instaura-se um jogo perverso onde o misto de vontade de ajudar ao próximo movido pela caridade cristã e a banalização do sofrimento sob a ditadura da felicidade individualizam e, culpabilizam apenas o sujeito por seu adoecimento seja por sua constituição genética seja por sua falta de fé e positividade. E mais, deslegitima-se o processo de acúmulo histórico de construção do conhecimento sobre este fenômenos, este fazer científico que desenvolve um conjunto técnico-operativo para tratar pessoa em sofrimento psíquico que prescinda do manicômio. Esta realidade já deixou, em algumas regiões do país, de ser uma utopia a ser alcançada, para se transformar em ações concretas que ao longo dos últimos 20 anos vêm demonstrando sua eficácia, e que são apoiadas em um referencial que é técnico, construído também a partir da prática de profissionais que lidam cotidianamente com pessoas em sofrimento psíquico. O modelo de atenção psicossocial emplementado no Brasil é hoje uma das principais referências mundiais. Esta prática em Saúde Mental se torna referência porque suas ações se demonstram efetivas na atenção às pessoas em sofrimento psíquico e seus familiares.
 
Desconsiderar todo esse acúmulo de experiências e conhecimento é, em última instância, acobertar o quão desumanizante é a forma de viver em uma sociedade onde eu, você, nossa força de trabalho, nossa saúde são só mais uma mercadoria. Onde se enxerga no adoecimento um mercado a ser explorado e extraído lucro. A psiquiatria é repleta de "cloroquinas" e, os anseios de uma pílula mágica que leve todo mal como que por um milagre ou decreto, já são nossos velhos e conhecidos fantasmas. 
 
A luta Antimanicomial, portanto, é resistência à mercadologizaçao da vida, a humanidade em nós, pois, agoniza nos sintomas da psicopatologia, transborda desesperada na tentativa de subverter a lógica ainda que seja a psíquica e resiste a não ser explorada, excluída, suprimida, coisificada. A luta Antimanicomial quebra a lógica de sujeitos objetos e descartáveis, ela não só deve analisar e se relaciona com as entranhas de nossa sociedade mas resgatar sua capacidade de sacudir suas estruturas, denunciar a insistência em nos desumanizar e deve somar esforços na tarefa árdua e cotidiana de continuar ousando uma sociedade sem manicômios em outra forma de organização social. 

Muitos me dizem louca por ousar sonhar, imaginar, pesquisar e agir para construir uma sociedade sem manicômios e uma outra forma de sociabilidade, mas irracionalista, pq não vou chamar de loucura, é quem me diz que é normal e naturaliza a sociedade do fetiche da mercadoria.
 

 
 

Quinta, 11 Outubro 2018 08:48

 

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Vanessa C. Furtado

Departamento de Psicologia - UFMT

 
Qual o cenário que temos pela frente? O da luta! Respondo prontamente, este foi, é  e será o caminho para conquista e garantia de direitos da classe trabalhadora. Não importa quem vença o pleito eleitoral a luta é a nossa única alternativa para barrarmos as reformas neo-liberais. O que podemos escolher neste momento é se elas virão de forma bruta, com violência e violação de direitos ou de forma serena, alisando a nossa cabeça.


É importante ressaltar, o projeto de política para o Brasil já está posto e, para nossa categoria docente, a privatização da universidade pública é o horizonte não tão distante. Bolsonaro anunciou, em seu pronunciamento do domingo, o enxugamento da folha de pagamento, responsabilizando os/as servidoras/es públicas/os pela oneração da conta do Estado. E nós, docentes federais, somos alvo direto dos governos, vocês já pararam para olhar sua folha de pagamento? O que e quanto efetivamente é o seu salário? Retirem dessa folha os auxílios alimentação, retribuição por titulação, auxílios creche (quem recebe), auxílio assistência à saúde (quem paga plano de saúde) e observem qual o real valor do seu salário? Pois bem, são todos esses “penduricalhos”, chamados benefícios que estão em jogo. A privatização da educação pública superior no Brasil é projeto de longa data, já iniciada nos de FHC, petistas e aprofundada no governo ilegítimo de Temer, com todos os pesos possíveis da liberação da terceirização das atividades fins. E nossa carreira, mais do que nunca, está sendo ameaçada!


Portanto, não há diferença em quem ganhar as eleições presidenciais? Sim e não. O que está em jogo neste cenário eleitoral é a ascensão de um discurso protofascista, que catalisou os discursos de ódio e preconceito tão presente em nossa sociedade. A sua ascensão e vitória no primeiro turno foi o desvelamento das raízes conservadoras da sociedade brasileira, algo que os movimentos sociais (negro, lgbt) vem denunciado e não é de agora. O que está em jogo são nossas liberdades civis e quando um candidato à presidência afirma que colocará “um ponto final em todo tipo de ativismo político no Brasil”, ele anuncia que tempos duros estão a caminho e que não haverá possibilidade de lutar contra projetos políticos com os quais não concordamos, a não ser de forma clandestina: 1964 bate à nossa porta! Isto é o que demarca fortemente as diferenças entre um e outro candidato.


O clima de insegurança e desconfiança já existe, recebo notícias e diversos relatos de pesquisadoras/es que têm suas bases teórico-metodológicas questionadas e deslegitimadas (eu sou uma dessas pessoas) enquanto ciência; de pessoas que, por medo do comunismo (como se o PT fosse comunista ou mesmo socialista) viram amigos, familiares se afastando; pais que aconselham filhas/os a não se aproximarem de pessoas com ideias “meio comunistas”, o que o protofascismo conseguiu foi, justamente, instaurar esse clima 64. As ideias plantadas pelo “Escola sem partido” já adentraram as salas de aula da universidade, estamos assistindo a ascensão da ignorância!


Por isso, o que não pode ser diferente, ganhe quem ganhar as eleições presidenciais, é a nossa luta, com um senado e congresso onde grande parte dos eleitos são militares, devemos estar em estado permanente de luta! A cooptação e institucionalização dos movimentos sociais, só o fez garantir o seu papel (do Estado) de gerente do Capital. E o que não devíamos ter deixado arrefecer era a luta, a pressão popular em efetivar direitos e acesso a eles. Portanto, o estado permanente de luta é essencial, ganhe quem ganhar!


O PT, durante os anos que esteve no governo, no que tange a política de educação cumpriu exemplarmente a agenda neo-liberal, destruiu nossa carreira em 2012 com a fundação de seu sindicato (PROIFES) e assinando, apenas com este, o acordo que destroçou a carreira docente. Sem contar nos cortes de verbas das universidades públicas cujos impactos sentimos agora seja na escassez de recurso para a assistência estudantil, seja no anúncio da UFMT em não comprar mais tinta para suas impressoras. Contudo, eu prefiro derrotar o projeto neo-liberal petista nas ruas, do que ter nossas liberdades individuais cassadas. Há luta companheiras e companheiros!

 

Quinta, 04 Outubro 2018 11:26
 
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Profa. Vanessa C Furtado
Departamento de Psicologia - IE/UFMT
 
  
Antes, eu, sinceramente estava radicalmente contra as aulas de empreendedorismo na UFMT, mas com o tempo fui mudando meu modo de compreender a necessidade de empreender. Por curiosidade, fui ler o que significa empreender e esta palavra está diretamente ligada com a capacidade de fazer, realizar coisas que são difíceis. A partir daí, entendi que o que faço, cotidianamente, para poder realizar meu trabalho é puro empreendedorismo!!
 
Vejam vocês, coordeno um grupo de extensão e realizamos um seminário anual sobre Saúde Mental, evento este que foi vencedor de editais para sua realização. Com o financiamento garantido, convidamos pessoas de renome e reconhecido trabalho científico na área que prontamente se dispuseram a vir. Toda a burocracia para realização do evento (reserva de espaço, solicitação de apoio de infraestrutura, certificados, etc) fora realizada.
 
Vamos ao evento!
 
Ao chegar no espaço reservado, por “sorte” as cadeiras estavam lá para o público se sentar, mas não havia caixa de som nem microfones para a palestra; não havia mesas para colocar no palco, não havia água para beber. Então, eis que vi na dificuldade uma grande oportunidade de por minhas habilidades empreendedoras em ação: realizamos o seminário! Contudo, foi exigido uma enorme capacidade empreendedora, pois como se não bastasse todas as faltas que já citei, no último dia a luz acabou! E, embora a universidade dispusesse de dois eletricistas para reparar o dano, não podiam dirigir o carro da universidade e não puderam fazê-lo. Haja resiliência! Diante do público inscrito, dos eminentes convidados, tivemos que encarar esta situação e, contando com a boa vontade de servidoras desta Universidade, conseguimos outro auditório para continuar nosso evento. E continuamos!
 
Fora as questões relacionadas ao evento, descobri, após minha pesquisa, que as atividades laborais docente são marcadas de atitudes empreendedoras, quem de nós nunca teve sua aula prejudicada porque não havia equipamentos necessários ou se eles existiam funcionavam de forma precária ou nem mesmo funcionavam? Quem de nós nunca deixou o seu próprio livro (comprado com parte de seu salário, sem qualquer custeio da instituição) na Xerox ou usa seus próprios computadores para dar aula? Ou vive dando jeitinhos para conseguir realizar seus projetos: seja uma parceria com empresas privadas, seja num contato amigo que libera o carro pra uma aula de campo fora do edital?
 
Logo, acredito que as aulas de empreendedorismo são fundamentais para que possamos fazer dessas adversidades oportunidades. Hoje defendo que elas sejam ampliadas ao corpo docente, porque entendi que esta habilidade nos será cada vez mais exigida a medida em que os projetos neoliberais avançam na universidade pública e a precarização está dada como projeto para Educação! Por outro lado, isto também está relacionado a pauta mais corrente na universidade: Saúde Mental!
 
Foi e é paradoxal discutir Saúde Mental na UFMT diante de tanta desvalorização do trabalho empreendido na universidade, por esta professora e todos os demais colegas, para realizar um evento científico e totalmente gratuito; diante da falta de respeito para com as pessoas que aqui estavam para prestigiar o evento; diante da violência que sofremos pelas péssimas condições estruturais para a realização de um evento nesta Universidade.
 
O processo de adoecimento mental se dá justamente nestas condições, em que individualizamos questões que são de cunho coletivo, culpabilizamos os sujeitos e os expomos enquanto incompetentes por não conseguirem resolver problemas, por não terem feito limonada dos limões que a vida lhe dá. E quando retiramos não culpabilizamos os indivíduos, limitamo-nos a jogar pra causalidade ou pro pensamento supersticiosos (sorte ou azar daquela pessoa) ao passo que exaltamos o empreendedorismo daqueles que, resilientes, enfrentam estas adversidades com criatividade! Nem um nem outro processo é menos enlouquecedor/adoecedor que o outro!
 
As ausências de infraestrutura básica para que exerçamos nossa atividade profissional nos impõe uma urgência em empreender. Num contexto em que as universidades tiveram um impacto real de 28% (número emblemático na UFMT) de cortes orçamentários, empreender deve mesmo ser a lógica para a realização de nosso trabalho docente. Venderemos, para o fórum de graduação, nossos standers às empresas privadas que virão decorá-los; venderemos nossas pesquisas de empresa em empresa para que consigamos os recursos necessários para desenvolver nosso trabalho; em breve, até os estágios curriculares obrigatórios deverão ser vendidos para termos financiamento de uma visita a comunidade, salas para atendimento, equipamentos que nos possibilitem a desenvolver a atividade... Numa sociabilidade em que tudo se transforma em mercadoria, seria incoerência nossa querer que a ciência não fosse tratada da mesma forma. Portanto, “ao empreendedorismo e além!” com o processo de desmonte da universidade pública brasileira e adoecimento de seus/suas servidoras/es e discentes.
 
 
 
Sexta, 22 Junho 2018 14:33

 

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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Vanessa C. Furtado e
Paulo Wescley Maia Pinheiro

Docentes da UFMT

 

Na última segunda-feira aconteceu uma reunião do CONSEPE, onde foi aprovado retorno do calendário acadêmico. Agora a PROEG solicita aos colegiados de curso que encaminhem propostas de calendário, porém na quarta-feira estudantes, em ampla MAIORIA, aprovaram a manutenção da greve, portanto, A ESTE DOCUMENTO da PROEG SÓ HÁ UMA RESPOSTA...


Não cabe à administração superior universitária ditar as pautas e/ou início ou fim de movimentos que se insurgem contra suas imposições. O movimento de greve é instrumento legítimo de luta, de resistência e, obviamente de subversão da lógica da ordem dada. E, neste caso, decidida em assembleia com ampla maioria de votos da categoria estudantil.


Vivemos uma burocratização de nossas vidas, a própria colocação das ações universitárias em sistemas que tem data para abrir e fechar nos dá a sensação que ficamos reféns dos prazos que nós mesmos nos damos. Quebrar essa lógica é próprio da atividade humana enquanto sujeitos instituintes que somos, em última análise, instituintes de nossa sociedade como todo. E se somos nós quem instituímos a regra, a lei, a ordem, então, cabe a nós questioná-las quando essas regras se voltam contra nós mesmos como ato de insurgência e luta, neste caso, contra o desmanche da universidade pública! O que será de nós, espécies em extinção, sem estudantes no campus? Daremos aulas às cadeiras? Pois a falta de políticas de permanência estudantil vai mitigar esta instituição e por fim a universidade pública brasileira! Portanto, em defesa de nossos empregos, SÓ HÁ UMA RESPOSTA A ESSE DOCUMENTO…


Por vezes, naturalizamos as letras e números dos que vem de cima, confundimos a suposta legalidade com legitimidade e tendemos a pensar espaços e decisões procedimentais como algo normal somente por serem pintadas pela aparência da institucionalidade, ainda  que não tenham sido efetivamente dialogadas nos espaços e que surjam como artifícios para supostas resoluções de problemas.


Dessa forma, não é de se entranhar que todos nós que estejamos em cargos de coordenação pedagógica, chefia de departamento, direções de faculdades, centros ou institutos ou somente compondo os nossos colegiados tenhamos estranhado e nos perguntado em como reagir diante da aberração criada pela administração superior dentro de sua saga para deslegitimar as ações dos nossos estudantes. Como trabalhadores dessa universidade temos o dever ético de questionar ações desse teor, como educadores não podemos vilipendiar o rolo compressor em curso, seja ele nesta ação, seja em tantas outras como as manobras de supostas negociações e na conivência judicialesca. Portanto, SÓ HÁ UMA FORMA DE RESPONDER  A ESSE DOCUMENTO...


Tenhamos cada um de nós posicionamentos quaisquer sobre a tática da greve, as pautas construídas ou o tempo que ela se estende, estamos todos preocupados com os impactos  de toda essa crise em nosso cotidiano de trabalho e, principalmente, temos o dever pedagógico de desvendar o percurso nebuloso que tem caminhado nossa universidade ao tentar fingir que não ocorre algo legítimo entre os discentes. Sejamos nós favoráveis ou não ao movimento grevista é inegável que todas as suas ações foram tomadas em assembleias amplas, convocadas legitimamente e que, quando a administração superior busca atropelar uma categoria, esse ataque é,na verdade, ao princípio da convivência paritária, ética, respeitosa  entre toda comunidade acadêmica. Logo, SÓ HÁ UMA FORMA DE RESPONDER A ESSE DOCUMENTO...


O ambiente acadêmico exige de nós a garantia de maturidade política para fomentar a tradição da pluralidade de ideias, ações e, portanto, devemos bradar pela autonomia das decisões do movimento discente. No mínimo, admitir uma ação dessa natureza sem crítica é deixar um precedente que pode chegar um dia em questionamento de qualquer ordem em nossas ações como professores e professoras e sem a devida discussão e normatização.
Ademais, a pauta da volta do calendário acadêmico teve uma votação atropelada que sequer cumpriu os trâmites corriqueiros de reuniões de conselhos deliberativos. Não houve discussão e o que temos é a imposição da administração superior em retomar o calendário acadêmico, como se isto fosse decisão suficiente para definir o fim ou não da greve que é estudantil! Por isso, SÓ HÁ APENAS UMA RESPOSTA A ESSE DOCUMENTO...


Não há como prever um calendário de atividades de cursos com uma greve em andamento, tampouco, ratificar a atitude autoritária de uma reitoria que sequer respeita os conselhos deliberativos desta instituição. Para tanto, já fora protocolado processo de anulação desta reunião dada a truculência com a qual a reitora a conduziu. Atitude, aliás, que desvela a intransigência com que ela vem conduzindo esta greve, se recusando a negociar com o Comando de Greve de Cuiabá. Então, SÓ HÁ UMA RESPOSTA A ESSE DOCUMENTO….


Não cabe aos colegiados de curso dizer o que e como devemos retomar as atividades acadêmicas, principalmente, após a manutenção da greve estudantil por assembleia. A nós, docentes que não estamos com nossa categoria em greve, cabe comparecer ao nosso espaço de trabalho, mas respeitando a autonomia da categoria estudantil e apoiar o movimento estudantil é justamente dar A ÚNICA RESPOSTA POSSÍVEL A ESSE DOCUMENTO...


Não vamos referendar, nesta universidade, posturas autoritárias e ditatoriais, nem, de forma alguma,  referendar a criminalização do movimento paredista legítimo de luta por seus direitos. Portanto, a saída pedagógica que temos e A ÚNICA RESPOSTA POSSÍVEL A ESTE DOCUMENTO é: dizer que aguardaremos o julgamento do recurso de anulação da reunião CONSEPE do dia 18 de junho 2018 (segunda-feira) e que nos posicionamos em respeito a greve da categoria estudantil e, ao término desta, discutiremos calendário de atividades, o que respeita, também, os espaço democráticos de decisão desta Universidade.

Segunda, 28 Maio 2018 14:47

 

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Estudantes, não se permitam mais serem chamados de (a)lunos, alunos são seres sem luz, que necessitam que alguém os instrua, por meio do conhecimento, ou seja, alunos são seres que recebem de seus/suas mestres/professoras/es a luz, coisa que vocês têm aos milhares de lúmens. Pois bem, demonstro, em meio a um prognóstico sombrio sobre o futuro de todo um país após as aprovações irrestritas das PEC do teto de gastos, estudantes da UFMT, diretamente atingidos por essa política, insurgem-se contra os cortes nas políticas de assistência estudantil, iluminam os 3 campi desta universidade e reacendem a chama de quem sabe que é só por meio das lutas coletivas que conseguiremos mudanças efetivas. Venho acompanhando o movimento estudantil e as movimentações para a deflagração da greve agora em curso, acompanhei os debates, algumas atividades, assembléias e… Sinceramente, quanta lucidez há nas análises feitas, no projeto de universidade que desejam e na manutenção da mobilização apesar das manobras reitorais.


Notei neste movimento, algo que não havia percebido nas outras vezes, uma lúcida consciência de que a luta é coletiva! Tirando uns ou outros que talvez tenham essa luz bloqueada pelas abas dos bonés ou chapéus ou insulfim das caminhonetes, no geral, o que se vê pelo campus em Cuiabá e inteiror são estudantes em luta! E que lição! Por isso, não se permitam mais serem chamados/as de (a)lunos/as.


Quem dera eu fazer parte de uma categoria de pessoas iluminadas, sabedoras das teorias  e que percebessem a mobilização coletiva como única forma de garantia de direitos, porém, o destino (pra quem acredita) foi mais tenebroso comigo e me entocou em uma oca, digo, caverna de onde mal se pôde observar as sombras das formas daquilo que estava ocorrendo à luz do dia, debaixo dos nossos narizes. Lá de dentro, muitos representantes da minha categoria, sem conseguir enxergar, apenas ouviam dizer que alguns direitos foram cortados, que uma mudança nas regras de contrato de trabalho foram feitas, que muita gente ficará sem poder se aposentar e que, alguns/mas estudantes ficarão sem comer. E foi lá de dentro que, mesmo sem conseguir ver sequer a porta por causa das luzes queimadas, a maioria dos “meus” decidiu que não havia conjuntura para realizarmos um enfrentamento à altura dos cortes aos nossos direitos. Prevaleceu o discurso de quem, talvez, ao aproximar o balão com o qual pairava sobre a materialidade da realidade, teve suas vistas ofuscadas pelo sol mato-grossense. Por isso, estudantes, não se permitam mais serem chamados de alunos/as.


Agora, vejam só vocês, os ilusionismos da vida, uma semana depois dessa opaca análise da categoria docente eis que, na calada da noite, temos mais 28,8% de nossos direitos ceifados e a disposição para uma greve reacende. Contudo, não se iludam achando que esse corte nos fez ver a importância da coletividade, a fotografia é de um cenário bem mais denso, o obscurantismo prevalece!


Portanto, estudantes sim, alunos não, pois o brilho da universidade tem resistido pela vitalidade da pedagogia coletiva que vem sendo forjada pelos faróis das pautas concretas. Do lado de cá, infelizmente, docentes inertes, nossa luz no fim do túnel, pode ser o trem da história, nos atropelando sem piedade.

 


Profa. Vanessa C. Furtado
Departamento de Psicologia - UFMT Cuiabá
 
 

Terça, 20 Junho 2017 13:50

 

 

Profa Vanessa C. Furtado

Departamento de Psicologia - UFMT

 

 

Quando vislumbrei a carreira acadêmica como possibilidade de atuação, muitos foram os estereótipos que permearam minha escolha: a possibilidade de realizar pesquisas que pudesse efetivamente trazer melhorias à sociedade; o trabalho em conjunto de ensino-aprendizagem enquanto processo dialético de produção de conhecimento; a integração da comunidade e universidade e a disseminação do conhecimento produzido pela universidade com a finalidade de dar acesso universal a essa produção. Hoje, cara a cara com a realidade, reconheço quão ambiciosos eram esses estereótipos que se tornaram planos de atuação quando fui convocada para assumir o cargo de professora.

 

Das condições materiais efetivas para o exercício de minha profissão dois me são ainda mais árduos   e   áridos:   a   falta   constante   de   recursos   e   profissionais   suficientes   em   meu departamento e a burocratização de meu trabalho. Um implica diretamente no outro, comecemos pela situação da falta de condições de trabalho, ou seja, de recursos. Logo em meu primeiro ano nesta universidade, participava de um curso de formação para professoras quando ouvi, da então reitora, que não deveríamos deixar de trabalhar pelo simples fato da universidade não nos dar as condições necessárias, se o problema fosse falta de data-show, então que o comprássemos com nossos excelentes salários. Na época, embora ainda engatinhando na profissão, achei a declaração absurda e me recuso terminantemente, até hoje, a comprar um data-show para dar aulas! No entanto, não me recuso a comprar livros dos quais a universidade não dispõe, não me recuso a buscar programas que escaneiam trechos de textos para disponibilizar para as turmas as quais dou aula e assim evitar que fiquem sem o material necessário, não me recuso a sair de casa com meu carro percorrer os campos de estágios (que são obrigatórios na grade curricular), às custas de parte do meu salário para abastecer o veículo, não me recuso de atravessar um prédio inteiro para utilizar os sanitários que vivem interditados por falta de água ou algum outro problema, não me recuso fazer orientações extra “PIA” para não deixar os/as discentes sem orientação, não me recuso a trabalhar três turnos e ainda finais de semana para dar conta das atividades que me são impostas. Enfim, nesta conta, o valor do data-show até que não me sairia tão mais caro!

 

Ah mas não só de sala de aula vive uma professora! Então, preciso integrar ensino-pesquisa- extensão (repetimos isso quase que como um mantra). E, para alguém como eu, que compreende a função social da universidade pública, congregar as teorias com as práticas de minha profissão e militância por uma sociedade mais justa é posto, também, como dever. Sem esquecer, é claro, que no mundo acadêmico tanto vale quanto maior for seu Lattes, portanto: PUBLIQUE! Assim, em algum momento entre todas as reuniões agendadas, aulas a serem preparadas e ministradas, trabalhos a serem avaliados, é preciso tempo para preencher os intermináveis formulários (e como se os já existentes não bastassem, criam mais um tal de REA),  que  devem  ser  “selado,  registrado,  carimbado  (protocolado)/Avaliado,  rotulado  se quiser voar”! Ou seja, TORNEI-ME UMA INEFICIENTE BUROCRATA! Alimentando os fantasmas da fiscalização do trabalho público, pois o mito da funcionária pública que não faz nada é tantas vezes propagado quanto se deseja acabar com essa espécie de serviço neste país.

 

E para que nos serve O burocratismo em uma universidade pública, onde tudo precisa de carimbos, etiquetas e protocolos? Respondo: para nos retirar do trabalho que nos é mais essencial nesta instituição: a produção de conhecimento (e aqui, leia-se: pesquisa, extensão e preparo de aulas). Quanto tempo dispomos do nosso dia-a-dia de trabalho para montar processos, carimbar folhas, levar ao local de registro, levar ao local de destino? Em meu caso, pelo menos, um turno do meu dia é ocupado por essa função, quando necessito montar um processo  para  legitimar  qualquer  ação  extra  sala  de  aula,  como  um  simples  projeto  de extensão que atenda as necessidades da comunidade matogrossense. Não são raras as vezes que eu penso em não realizar tais atividades, apenas para evitar todo esse ciclo de processos intermináveis. E não porque eu me ache incapaz de fazê-lo, mas por falta de tempo dentro daquela rotina já descrita acima.

 

Agora, o que mais me espanta e indigna é a naturalização desse processo burocrático, que atravanca os caminhos da produção e disseminação do conhecimento produzido em nossa universidade. Também não são raros os relatos de colegas que solicitam a estudantes que as auxilie nesse processo de preenchimento de formulários, usualmente atribui-se essa atividade a quem recebe bolsa, afinal precisa trabalhar. A naturalização dessa atividade é tamanha que, esquecemos que estudantes também recebem bolsa para pesquisar.

 

Para se ter ideia, apenas hoje, para correção de atividades em meu REA gastei cerca de 34 minutos (contados no relógio por pura birra) de um tempo que estava disponibilizando para preparar minhas aulas da semana. Ou seja, mais 34 minutos porque já havia gasto vários outros, em pleno feriado, preenchendo o tal do relatório com todas as atividades realizadas no semestre. E tome mais fiscalização! Como se não bastassem os imperativos do currículo lattes, do PIA, diário de classe, mais um REA. Pra meu espanto, só que não, as atividades registradas nesse  novo  relatório  ultrapassaram  as 40  horas  de trabalho  às  quais  deveria  me  dedicar exclusivamente.

 

Por um lado, achei ótimo ter uma forma de registro de atividades que chegam perto de demonstrar a realidade da atividade docente, por outro “que vantagem Maria leva?”. Estas horas-extras servirão para efeito de banco de horas ou adicional salarial? Não estranhem a pergunta,  pois  é  retórica,  contudo  necessária,  uma  vez  que,  são  estas  as  opções,  em instituições privadas, que se contrapõem ao conteúdo do e-mail que recebemos no início deste semestre, sob orientação da pró-reitoria de graduação, informando a necessidade de darmos aulas nos dias marcados, de justificarmos nossas faltas e planejarmos as reposições, caso contrário, nosso PONTO seria CORTADO! O que de fato não é um problema; entendo que faz parte de nossa obrigação enquanto funcionárias públicas, bem como, do compromisso que assumimos com discentes que necessitam das horas da disciplina para se formar. No entanto, estou tratando a questão por sua essência e não pela aparência, ou seja, muitos mecanismos se criam para regular e fiscalizar nossa atividade, porém, poucos para efetivarmos o trabalho que compreende ensino, pesquisa e extensão “aoommmmmmmm”

 

E desta forma, chegamos a meu último questionamento: a que se presta esse burocratismo fiscalizador? Qual a sua essência?

 

Pois bem, aprendi no movimento da luta anti-manicomial que, não adianta abrir as portas dos manicômios e sair das instituições manicomiais se o manicômio não sair de dentro da gente,

 

ou seja, a lógica que nos é ensinada de que a pessoa considerada “louca” é incapaz e deve ser tutelada e, de preferência, privada do convívio social se mantém. Enfrentamos, nesse âmbito, uma verdadeira resistência de se libertar da lógica manicomial “do passado” e assumir o novo modelo de  tratamento.  Transpondo essa  ideia para  nossa discussão  sobre  a  universidade pública, fizemos o contrário, paulatinamente estamos cedendo à nova lógica: a privatista, com resistências cada vez menores a cada nova leva de docentes que ingressam na universidade. O que vai deixando a “velha” lógica do trabalho docente de universidades públicas com ares de ultrapassada. Já sou capaz de vislumbrar as marchas para Brasília onde estaremos clamando por direitos tais quais os que tem os trabalhadores e trabalhadoras com regime de trabalho regido  pela  CLT  (e  sabe-se  lá  quanto  tempo esses direitos  durarão)  e  o  faremos  com as aspirações de que horas-extras e/ou banco de horas são grandes conquistas da luta para o funcionalismo público, para a carreira docente e venderemos alegre e servilmente nossa saúde ao   trabalho.   Quanto   mais   o   burocratismo   nos   retira   dos   espaços   de   produção   de conhecimento, mais privatizamos nossa sala de aula, nossa profissão e a universidade pública brasileira. “Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão” (Aldous Huxley).

 

E o que mais representa a lógica privatista do sistema se não a produção e metas? E o que mais representa essa lógica, hoje, na universidade pública do que a ilusão de que quanto mais se vale maior é o seu formulário de atividades docentes inócuas ao conhecimento, seja ele o Lattes, o REA ou quantos outros quisermos criarmos.