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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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Quem já acumula algumas décadas de vida tem acompanhado a trajetória de Regina Duarte. Antes, pela jovialidade e meiguice, tornou-se a “namoradinha do Brasil”. Talvez, apenas Lucélia Santos, com a escrava Isaura, tenha ameaçado o posto de Regina. Todavia, Lucélia foi secundarizada nas telas, pois se tornou sindicalista da categoria.
De sua parte, a alienada Regina foi só ganhando personagens marcantes, como, p. ex., a viúva Porcina e Malu Mulher. Todavia, falarei de Madalena, personagem do livro São Bernardo (1934) de Graciliano Ramos, adaptado como Caso Especial (1983) pela Globo.
Madalena e Paulo Honório (José Wilker) são os protagonistas do livro citado. Sem se conhecerem, casam-se; porém, ente ambos, só divergências e desentendimentos: Honório incorpora a lógica capitalista de ser-e-estar no mundo; assim, faz atrocidades para obter a posse de uma fazenda e das pessoas, principalmente a posse de Madalena, que simboliza uma visão comunista da existência.
Como as diferenças explicitam-se logo após a “união”, o casal passa a empreender brigas, que só se intensificam.
Pelas posses e influência, Honório tinha sempre em casa os poderosos locais, incluindo um padre, que chega a dizer ao protagonista que não se preocupasse com pessoas (no caso, Madalena) de ideias comunistas, pois “isso” não pegaria em um país que acreditava em Deus.
No epílogo, Madalena, em uma capela, estabelece diálogo de despedida de Honório, que, insensível, não percebe a intenção. Depois, ela sobe ao quarto e se envenena, vindo a óbito.
Antes de subir, por segundos, Regina dá à Madalena um olhar enigmático à lá Capitu, personagem de Dom Casmurro de Machado.
Sobre Capitu, sempre residirá a dúvida da traição ao companheiro. Sobre Madalena, jamais. Embora houvesse desconfiança por parte de Honório, Madalena, ao contrário de Capitu, não tinha os "olhos de cigana oblíqua e dissimulada". Por isso, o olhar de “ressaca” à Madalena comprometeu a essência da personagem e derrubou o trabalho de Regina, que “matou” Madalena antes da hora exata.
Pois bem. Essas lembranças voltaram após a entrevista de Regina à CNN, dia 7. Seu ódio aos que querem a sociedade mais humanizada – pretensão de Madalena –escancarou-se.
Nunca Regina se distanciou tanto de uma personagem sua. Embora em seu direito, anticomunista como é, nunca, de forma repugnante, Regina foi tão Honório, para quem a morte do outro não tinha a menor importância, principalmente se isso lhe ajudasse a manter o status.
Regina é insensível e debochada à dor alheia. Sobre as mortes pela COVID-19, incluindo a de Aldir Blanc, desdenhosa a um talento tão raro, disse não ser obituário; que mortes ocorrem a toda hora.
Mas o ápice de sua miserável existência foi quando começou a cantar “Pra frente, Brasil”, hino do tricampeonato da Seleção, usado em 70 pela ditadura militar. Com saudosismo, Regina perguntou: “não era tão bom quando cantávamos isso?”.
Para idiotas que se pensavam patriotas, sim. Aos que viviam/compreendiam a tragédia de uma ditadura, não.
A desprezível criatura foi contraposta no mesmo instante; por isso, Regina, a megera, se descompensou. Os entrevistadores se indignaram com aquele papel tão verdadeiro e chocante da atriz, que passa a ser também mais uma inominável, assim como o seu “mito”.
Náusea – e sem a flor de Drummond – à entrevista de Regina.
Mas aquela “dor assim pungente não há de ser inutilmente”, pois “amanhã vai ser o outro dia”, e tudo isso “vai passar”.
“Desesperar, jamais”.
“MITO” ENCURRALADO - Roberto Boaventura
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Longe já se vai o 1º de maio deste atípico ano. As dificuldades rotineiras dos trabalhadores estão potencializadas por conta da COVID-19; pois, mesmo nesse cenário, Jair Bolsonaro ignorou a data.
Todavia, no último dia 3, em outro ato inconstitucional/antidemocrático, portanto, criminoso, em frente ao Planalto, perante milicianos vestidos à lá bandeira, Bolsonaro defendeu a volta ao trabalho, contrariando a OMS e o próprio Ministério da Saúde. Com naturalidade cruel, disse que “infelizmente muitos serão infectados pelo coronavírus, e que muitos perderão suas vidas”.
Em seguida, Bolsonaro “caiu nos braços” de bajuladores; e falou até “pelos cotovelos”. Dos discursos inseridos no arcabouço das teorias conspiratórias, passou à retórica da ameaça.
Em outras palavras, o “mito” extrapolou os discursos que veem como comunistas até as araras vermelhas, passando a disseminar uma narrativa terrorista de extrema direita. Consoante resumo do Estadão, “Bolsonaro disse que as ‘Forças Armadas” estão ao lado do seu governo e que pede a Deus que ‘não tenhamos problemas nesta semana’ porque ele ‘chegou no limite’ e ‘daqui para frente não tem mais conversa’ e a Constituição ‘será cumprida a qualquer preço’. Desespero.
Essa fala surgiu após dois fatos: 1) o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu a nomeação de Alexandre Ramagem para a Polícia Federal; 2) o ex-ministro Sérgio Moro prestou depoimento em ação que tramita no STF; a ação já investiga se Bolsonaro tentou interferir na PF para ter acesso ilegal a inquéritos sigilosos, conforme disse Moro, pois há inquéritos que podem acertar alguns “mitinhos” do clã.
A reação a tudo isso foi imediata e contundente. Até o ministro da Defesa, contrariando a ameaça de Bolsonaro, disse que as "Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade". Disse também ser "inaceitável" a agressão a profissionais da imprensa, como as que ocorrerão naquele ato antidemocrático. Tomara.
O desespero de Bolsonaro, que quer livrar o clã de problemas com a Justiça, bem como sair ileso dos pedidos de impeachments, vai lhe deixando cada vez mais encurralado; daí sua atitude de tentar ganhar no grito uma luta contra a lógica que estrutura a República.
Mesmo que dificilmente venha a ter êxito nessas bravatas de discursos antidemocráticos, o clima, em si, é de desconforto. Ouvir ameaça do retorno aos tempos de chumbo é inaceitável. E foi nesse clima que o país ainda perdeu uma de suas vozes mais importantes. Por conta de complicações advindas da COVID-19, o cantor, compositor e escritor Aldir Blanc faleceu no dia 4.
Sobre a importância de Blanc, seu grande parceiro musical, João Bosco, disse:
"Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão para viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui para fazer o espírito de Aldir viver. Eu e todos os brasileiros tocados por seu gênio".
Ao dizer que continuará cantando as canções que fez com Blanc, Bosco reforça a necessidade de que “o show tem de continuar”, pois o autoritarismo herdado do golpe de 64 está sendo invocado, agora, por criaturas inomináveis. Por isso, “os brasileiros tocados pelo gênio de Aldir”, e de tantos outros resistentes, precisam acreditar, como propôs Ivan Lins, “No novo tempo”:
“...Apesar dos perigos// Da força mais bruta// Da noite que assusta// Estamos na luta// Pra sobreviver...”.
E sobreviveremos.
ÓPERA DE MALANDROS - Roberto Boaventura
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Há poucos dias, Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro, pediu demissão, após saber da exoneração do diretor-geral (delegado Maurício Valeixo) da Polícia Federal (PF), que, por conta de investigações em andamento, não deveria livrar o presidente e três de seus filhos de constrangimentos, que poderão advir da eventual confirmação de alguns crimes; por isso, Bolsonaro tentou intervir politicamente na PF.
Nesse panorama, lembrei do delegado Chaves da “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, escrita em 1978, baseada em adaptação à “Ópera dos Mendigos”, de John Gay, e à “Ópera dos Três Vinténs”, de Brecht e Kurt Weill.
No que tange ao seu tempo cronológico, tudo se passa na década dos anos 40, cujo pano de fundo era a legalidade de contravenções, como o jogo do bicho, a prostituição e o contrabando.
O enredo da ópera de Chico gira em torno da cafetinagem de Duran e de sua mulher Vitória. A filha desse casal apaixona-se por Max Overseas, que vive de golpes e da contravenção, tudo feito em conchavos com o chefe de política, o delegado Chaves, amigo de infância de Max.
Nesse universo da malandragem, surgem outras personagens, como os camaradas e as amantes de Max, as prostitutas (“Las muchachas de Copacabana”) e Geni, a travesti que “é feita pra apanhar...”.
Mas por que dessas lembranças?
Por conta da foto em que estão juntos – no réveillon 2019 – Carlos Bolsonaro e Alexandre Ramagem, ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência, e que chefiou a segurança de Bolsonaro na campanha/2018. O delegado Ramagem é o amigo íntimo da família que Bolsonaro nomeou (depois foi obrigado a desfazer o ato) para a direção-geral da PF.
Como item complementar, a Folha diz que “a investigação da PF, conduzida pelo Supremo Tribunal Federal, aponta Carlos Bolsonaro como o mentor das fake news contra os ministros da Suprema Corte”.
Aqui, vale lembrar da aproximação dos Bolsonaro com milicianos. Dessa amizade, eclodem as rachadinhas de Flávio Bolsonaro; por consequência, surgem outras contravenções, como a que noticiou o The Intercept Brasil (25/04/2020):
“Rachadinhas de Flávio financiaram prédios da milícia”.
Para os investigadores, os dados mostrariam que o senador receberia o lucro do investimento.
Saindo dessa perspectiva de contravenções concretas e observando as de obsessão ideológica, mais crimes cometidos pelo clã Bolsonaro, como os ataques à democracia, toda vez que invocam o retorno da ditadura/AI-5. Desses crimes, Jair Bolsonaro chegou a fazer discurso em ato público no dia 19.
Insanidade?
Não. Ousadia, testando os limites da democracia, mesclada com esforços que podem estar visando, por algum tipo de “arte maligna”, se perpetuar no poder. O clã já tem ciência dos imensos problemas que enfrentarão. Afastamento e/ou impeachment do presidente já estão no horizonte, uma vez que dificilmente haveria a nobreza da renúncia.
Para encerrar, de novo, Chico Buarque. Desta vez, em sua “Homenagem ao malandro”, eis a constatação de que aquela saudável malandragem da Lapa, “Agora já não é normal”, pois, ela dera lugar ao “...malandro regular, profissional/ Malandro com aparato de malandro oficial/ Malandro candidato a malandro federal/ Malandro com retrato na coluna social/ Malandro com contrato, com gravata e capital/ Que nunca se dá mal…”.
Sem saudosismos dos governos anteriores, torço para que o último verso transcrito esteja errado, pois espero ver muitos brasileiros “já ir se acostumando” com a ideia de um “tchau, querido”.
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Há pouco mais de um mês, Paulo Brondi, promotor de Justiça em Jataí-GO, adjetivou o presidente, seus filhos e seu grupo de cafajestes. A Bolsonaro, em especial, disse que “não há outro adjetivo que se lhe ajuste”.
Mesmo sempre atendo ao noticiário, só agora soube desse artigo-desabafo de Brondi. A AGU disse que o processaria.
Diante desse embate, recordando das crônicas A um jovem, de Drummond, eu poderia acatar o primeiro “anti-conselho” que o poeta oferece, ali, ao jovem Alípio:
“I – Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar”.
Como já não sou mais um jovem, continuarei a escritura deste artigo. Assim, já imerso na desobediência, destaco o terceiro de seus anti-conselhos:
“III – Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo”.
Ao que tudo indica, Brondi teve certeza de seu “cafajeste”; não passou pelo dilema que, por vezes, experimento: machadianamente falando, encontrar o adjetivo tipo “a mão e a luva” para determinados seres e/ou situações.
Sempre que começo a pensar no melhor adjetivo, seja para o que for, Drummond vem à mente; por isso, a casos e/ou a circunstâncias que extrapolam a lógica, tenho preferido dizer que se trata de um ser ou de algo “inominável”. Este termo tem sido a saída para minhas perplexidades.
Em “inominável” cabe tudo que o leitor quiser. Também pode não caber nada, mas aí o problema não é de quem escreve; pode ser o conforto da solução de quem lê.
Voltando ao desabafo de Brondi, mesmo abominando as ações de Bolsonaro e asseclas, mas liberto de “igrejas”, quero reflexionar sobre duas de suas afirmações:
1ª) “nem todo bolsonarista é canalha, mas todo canalha é bolsonarista”;
2ª) “aquele tio idiota do churrasco, aquele vizinho pilantra, o amigo moralista e picareta, o companheiro de trabalho sem-vergonha... reflete à perfeição aquele lado mequetrefe da sociedade”.
Mesmo não discordo, indago: o “lado mequetrefe da sociedade” é exclusivo de bolsonaristas? Se for, ótimo. Se não, e penso que não seja, temos de tratar das diferenças entre mequetrefes.
Já reflexionando, no dia 19/04, tivemos alguns elementos que diferenciam os mequetrefes da Pátria. Dos elementos, destaco a defesa da volta da ditadura/AI-5 e os fechamentos do Congresso e do STF feita por grupelhos de bolsonaristas, incluindo o próprio presidente, a quem Carlos Luppi encontrou a antonomásia perfeita: “Apóstolo da ignorância”.
Assim, ser idiota, moralista, picareta, sem-vergonha pode revelar (e revela) um lado mequetrefe da sociedade, mas não diz tudo. Ser alguma coisa disso tudo ou, pior, tudo, dessas coisas, junto, é para lá de comprometedor, social e politicamente falando. Todavia, é inominável se essas criaturas, que já carregam tais “defeitos de fábrica”, ainda forem antidemocráticas.
Diante de atos pró-ditadura e congêneres, apoiados por Bolsonaro, espero que o STF, provocado pela PGR, dê as respostas que o país precisa sobre as responsabilidades de seus inomináveis organizadores e financiadores.
Enquanto seguem as investigações, encerro com mais reflexões de Drummond, agora, de O avesso das coisas:
1ª) “O ditador não precisa atrasar o relógio; ele mesmo atrasa a História. Se os ditadores não tivessem algo de fascinante, ninguém pensaria em imitá-los. A diferença entre o ditador e o Presidente é que o primeiro costuma governar mais tempo”;
2ª) “... Resignamo-nos ao mau tempo, que é periódico, mas não nos acostumamos com os maus governos, que também o são...”
SEMPRE COMO DANTES... - Roberto Boaventura
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Neste tempo de (quase) isolamento social, muitos têm profetizado que sairemos melhores – como seres humanos – após a experiência COVID-19. Será?
Diante de tantas manifestações positivas sobre o porvir, confesso que, de início, quase que nelas acreditei. Essa minha quase crença se deu pelo fato de eu desejar muito ver a espécie humana, de fato, mais humana.
Um outro fator que me influenciou na quase crença desse futuro refinamento da humanidade foi a arte, sempre sublime. Nunca como antes compartilhamos tanta arte. Nunca como antes trocamos tantos poemas e músicas, todos importantes para o enfrentamento da quase solidão das horas... Talvez, a “live” de Bocelli, cantando na vazia Catedral de Milão, tenha sido o ápice disso tudo.
E as aulas de danças que nos enviam!? Tudo isso junto vai nos dando a sensação de pertencimento – mesmo sem saber exatamente a que – poucas vezes experimentada.
E as experiências de solidariedade?! De receitas culinárias a exercícios físicos e relaxamentos mentais, há um pouco de tudo. Insiro nesses espaços as campanhas para ajudar a matar a fome de tantos que, mesmo em condições “normais” de vida, já não têm como se alimentar no cotidiano feroz de diferentes sociedades.
No mesmo clima de positividade sobre o porvir estão as manifestações de agradecimentos a profissionais indispensáveis, com destaque aos da área da saúde. A eles, aplausos e emocionantes homenagens são vistos mundo afora. Tudo muito lindo e verdadeiro! Tudo muito humano! Enfim, um mundo novo desejado...
Mas, pergunto: desejado por quem?
Por quem já é minimamente humano; por quem já enxerga o outro como um ser que merece respeito; por quem já tem a vida humana acima de tudo; por quem já tem o privilégio de conseguir apreciar boas manifestações artísticas; por quem já é solidário desde sempre; por quem sempre quis ver a humanidade, de fato, mais humana.
Todavia, nem só desse tipo – tipo o trigo no meio do joio – foi “criada” a humanidade; aliás, eu diria que a “criação” da humanidade é bem mais cheia de estranhamentos do que poderíamos supor; portanto, na contramão desses tipos realmente humanos estão o que sempre estiveram, quais sejam: os que não enxergam o outro, a não ser que o outro lhe seja cópia fiel; os que nunca puseram a vida humana, principalmente a dos outros, acima de tudo; os que nunca conseguiram apreciar boas manifestações artísticas e, tampouco, ser solidários, a não ser com seus interesses; os que, por meio de seus espelhos embaçados, acreditam que a humanidade atingiu o apogeu, estando acima de todos, quiçá, só abaixo de um deus, em que pensam e juram acreditar, talvez porque nunca o enxergarão por aqui.
Como exemplos desses tipos, cito as lideranças políticas que, hoje, desrespeitando o conhecimento científico, atuam para desmontar as recomendações de cuidados sociais que visam a preservar vidas.
Cinicamente falando em nome da salvação de economias, tais “mitos” políticos incentivam uma legião de cegos e odiosos seguidores, mesmo alguns escolarizados, como aquele empresário, e tesoureiro do PSL de um munícipio mato-grossense, que atrai para a janela de seu carro um morador de rua, oferecendo-lhe dinheiro e, ao invés disto, quando o rapaz se aproxima, lhe dá um covarde murro no rosto. Desumanidade.
Por tudo isso, que pode infectar bem mais do que o próprio novo corona-vírus, infelizmente, digo que as relações humanas e as desumanas continuarão, basicamente, como dantes nas terras dos abomináveis e boçais mitos.
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O título deste artigo reflete um absurdo: o antagonismo entre os que apostam no poder da ciência e os que creem nos labirintos da ignorância, movida por achismos, paixões e crenças em lendas e mitos criados por uma legião de ignaros. Por falar deles, Bolsonaro, em 06/04, sugeriu que demitiria o ministro da Saúde, Luiz Mandetta. Não demitiu, pelo menos por enquanto. Também pelo menos por enquanto, Bolsonaro foi enquadrado por outros governistas.
De minha parte, destacarei a atuação pontual de Mandetta; porém, para não ser confundido como integrante da legião, relembro que o ministro da Saúde, em recente passado, fora financiado politicamente por planos de saúde. Ele também é investigado por fraude à frente da Secretaria de Saúde de Campo Grande (MS); logo, o jaleco do SUS não fazia parte de seu guarda-roupa.
A bem da verdade, Mandetta opunha-se ao Mais Médicos. Para ser indicado ao Ministério, teve aval da Frente Parlamentar da Saúde, que reúne representantes dos interesses privados dos planos de saúde, santas casas e organizações sociais de saúde. Só faltava um item biográfico: declarar-se cristão...
Não sem lamentar por tudo isso, hoje, Mandetta, mesmo forjado no ninho bolsonarista, aparenta ser pedra no caminho de seu chefe; e isso não é questão menor diante da magnitude do problema de saúde pelo qual passa o Planeta. Sem aqui pregar a absolvição de eventuais pecados capitais de Mandetta, o fato é que: ruim com ele, pior sem.
Digo isso porque, enfim, um bolsonarista federal defende a ciência. Não fosse essa postura, acompanhada da orientação do isolamento social, os números da COVID-19, no Brasil, seriam absurdamente maiores.
Pois bem. Em seu discurso do “dia do Fico”, Mandetta foi didaticamente sofisticado, o que também é raro em seu habitat político. Além de ironias, citou o “Mito da Caverna” (Livro VII de A República) de Platão, que, dialeticamente, explora os conceitos de escuridão e ignorância, luz e conhecimento.
No “Mito da Caverna”, é descrito que, desde sempre, alguns homens encontram-se aprisionados em uma caverna, de onde não conseguem se mover, pois vivem acorrentados. De costas para a entrada da caverna, veem apenas o seu fundo, mas, atrás deles, há uma parede, onde existe uma fogueira. Por ali passam homens transportando coisas, mas como a parede oculta seus corpos, apenas as coisas transportadas são projetadas em sombras e vistas, pelos prisioneiros, sempre de forma distorcida.
Certo dia, um dos acorrentados escapa e vê uma nova realidade. Todavia, a luz da fogueira, bem como a luz externa à caverna, agride seus olhos. Esse homem tem a opção de voltar e manter-se como até então, ou encarar a nova realidade. Optando pelo novo, ele ainda podia voltar para libertar os demais, dizendo o que havia descoberto; contudo, correria o risco de não ser acreditado, já que a verdade era o que conseguiam perceber da sua vivência na caverna.
Uma das possibilidades interpretativas desse texto é a de que o senso comum, que dispensa a reflexão/ciência, é representado pelas impressões aparentes, vistas pelos homens “por meio de sombras”. Por sua vez, a ciência, baseada em comprovações, é representada pela luz.
No discurso de Mandetta, o “Mito da Caverna” tinha alvo: seu chefe, visto como mito por seguidores. Todavia, esse mito tupiniquim ainda estaria acorrentado na caverna; daí a distorção de seu olhar sobre a realidade.
Ao final de seu discurso, outra preciosa citação de Mandetta: “Tocando em frente” de Almir Sater.
Até quando?
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Em que pese o tom mais ponderado na fala de Bolsonaro, ontem (31/03), o que vimos no domingo (29) foi um presidente – isolado até por aliados – fazendo um “tour” por locais de Brasília e cidades satélites: audácia ou irresponsabilidade?
A dúvida tem sentido por diversos motivos. Deles, destaco que, no dia anterior (28), o ministro da Saúde, Luiz H. Mandetta, pedira à população que respeitasse o isolamento, dada a periculosidade do COVID-19; que, quando saísse, que fosse por motivos indispensáveis, e com os cuidados devidos. Pediu ainda que acreditássemos na ciência; subjetivamente, que duvidássemos de seu chefe.
Pois bem. Logo após, medindo forças com Mandetta, Bolsonaro foi às ruas: caminhou e conversou com trabalhadores, muitos informais, dos quais, inocentemente, vieram pedidos semelhantes aos dos pequenos e médios empresários, promotores de recentes carreatas realizadas alhures.
Detalhe: nas carreatas, os “ativistas engravatados”, que pediam aos trabalhadores o retorno às empresas, permaneceram dentro de seus carros, muitos deles blindados, inclusive contra a pobreza e a miséria dos empregados, cinicamente tratados como “colaboradores”.
Sobre esse panorama, numa conclusão da Folhapress (29/03), depois de uma tentativa de produzir discursos menos divisionistas, aquela “postura (desrespeitosa e isolada) de Bolsonaro diante do COVID-19 foi gerada pelo receio de perder apoio do setor empresarial e de trabalhadores autônomos, pilares de sustentação de seu mandato”.
O receio apontado teria sido inflado por seus filhos. “Para convencer o presidente, foram mostradas a ele previsões do desemprego nos EUA diante da pandemia”.
Isso posto, começo chamando atenção para o fato de Bolsonaro ter dito que fez o teste para COVID-19, e que o resultado fora negativo.
Ótimo, mas alguém viu isso?
Por ser Bolsonaro o presidente, ele não poderia ter apresentado o resultado à nação?
Garantido o meu direito de duvidar, se não for verdade sua, no domingo passado, o presidente pode ter distribuído mais vírus do que afagos àquelas pessoas.
A despeito de qualquer intensão, o “tour”, em si, afrontou o ministro Mandetta, que, na condição de médico, poderia ser mais enfático contra as “receitas” dadas pelo presidente Bolsonaro que, mesmo nesta condição, não tem autoridade para desrespeitar profissões, tampouco a Medicina.
Mas a propósito, até quando as próprias elites engolirão um presidente tão limitado?
Pergunto isso porque a elite empresarial já entendeu que articulações da equipe econômica do governo, liderada por Guedes, são para lhes favorecer, antes de tudo e de todos. As medidas que já estão sendo aprovadas pelo Congresso comprovam isso.
De qualquer forma, aos incrédulos, serei didático: peço que prestem atenção em anúncios recentes de transnacionais e de megaempresas nacionais. Dentre os que já vi, cito o comercial em que OI, VIVO, CLARO e TIM se uniram em torno do discurso cada vez mais internacionalista, aliás enunciado até por Trump: ‘Stay at home and save lives’.
Bondade empresarial?
Não. As empresas só passaram a expor esse comportamento humanista após anúncios das medidas governamentais que, antes de outras vidas quaisquer, salvarão – com incalculáveis recursos públicos – as vidas das próprias empresas, mantendo intactos seus exorbitantes lucros; e isso em diversos países!
Sendo assim, se Bolsonaro entendeu essa jogada, precisamos reflexionar mais sobre os porquês daquele seu rolezinho no meio do proletariado.
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“De repente, não mais do que de repente”, um mundo doente. Um mundo “malade”. Um mundo “malato”. Um mundo “pocho”. Um mundo “sick”. Um mundo “krank”. Um mundo “Болен” (bolen). Um mundo “病気です”(Byōkidesu)... um mundo “病人” (bìng rén).
No princípio, em Wuhan, embora invisível, um ser bem vivo fez-se presente. E na terra de meu deus, e também na de Yu Huang Shang-ti, como tudo tem de ter nome, os humanos, mesmo atônitos, batizaram-no de COVID-19.
Não olvidando a existência de seus virulentos ancestrais, o recém-nascido “19”, que já poderia ser incorporado às demais “Pragas do Egito”, só é novo porque é 19; porque surgiu no ano da graça (ou nem tanta...) de 2019.
O nascimento desse ser invisível tem servido para muitas coisas, inclusive para desnudar a arrogância dos seres – por excelência – da aparência, que se sentem sempre superiores aos demais víveres do Planeta.
Chegando até aqui, registro que poucas vezes tive tanta dificuldade de escrever um texto. Motivo: nunca tive tanto tempo para apreciar uma avalanche de criatividade em torno de um tema (o COVID-19) e de um momento específico (a quarentena). Muitas vezes, rio; em outras, me emociono.
Dito isto, longe de pretender ser inédito, resgato a música “O mundo”, de André Abujamra, que até o momento, pelo menos em meu celular, ainda não chegou como algo que pudesse servir a reflexões.
“O mundo” coube no álbum “Vagabundo”, gravado em 2004 por Ney Matogrosso e Pedro Luís e A Parede. Desde que o conheci, tive a certeza de que se tratava de um daqueles textos que sabem dialogar com o seu tempo: um tempo difícil de ser compreendido e vivido.
A você, leitor, “O mundo”:
“O mundo é pequeno pra caramba/ Tem alemão, italiano, italiana/ O mundo filé milanesa/ Tem coreano, japonês, japonesa// O mundo é uma salada russa/ Tem nego da Pérsia/ Tem nego da Prússia// O mundo é uma esfiha de carne/ Tem nego do Zâmbia,/ Tem nego do Zaire/ O mundo é azul lá de cima// O mundo é vermelho na China/ O mundo tá muito gripado/ O açúcar é doce/ O sal é salgado// O mundo caquinho de vidro// Tá cego do olho/, tá surdo do ouvido// O mundo tá muito doente/ O homem que mata/ O homem que mente// Por que você me trata mal
se eu te trato bem?/ Por que você me faz o mal
se eu só te faço o bem?// O mundo é pequeno pra caramba.../ Todos somos filhos de deus/ Só não falamos a mesma língua”.
Deste poema-musicado, destaco, primeiro, o acaso da junção poética de dois versos: “O mundo é vermelho na China/ O mundo tá muito gripado”.
Paradoxalmente, que (in)feliz coincidência! Em termos poéticos, essa construção é um daqueles achados estonteantes.
Por fim, depois da certeza de que “o mundo tá muito doente”, destaco a obviedade de que “O mundo é pequeno pra caramba”. Por isso, a debacle poderá ser tão generalizada quanto abrangente. Se for, pior do que a ação do COVID-19 poderá ser algo próximo do que canta Paulinho da Viola, em “Pecado capital”: “...quando o jeito é se virar// Cada um trata de si// Irmão desconhece irmão...”
PS.: Depois do pronunciamento do presidente Bolsonaro (24/03), registro que ele já iniciou a sentença da música “Pecado Capital”: ignorou o valor da vida humana em prol da saúde, mas da saúde econômica do país, pois, já pensando em reeleição, e com medo de sua popularidade despencar ainda mais, incitou o povo a não respeitar o isolamento social.
A partir dessa postura, que opta pela ignorância em vez da ciência, uma frase que li em um cartaz – “O Brasil não elegeu um mito; elegeu uma lenda: a mula sem cabeça” – parece ganhar muito sentido.
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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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Em algum dia de 97, quando, além das atividades acadêmicas, eu participava intensamente da vida sindical, voltando de Brasília, viajei ao lado de um então reitor da UFMT. Ele retornava de um encontro da ANDIFES (Associação Nacional de Dirigentes das Federais); eu, de uma reunião do Sindicato Nacional dos Docentes das Universidades.
Naquele período, sob a presidência de Fernando Henrique, as universidades passavam por maus bocados; por isso, eu disse ao colega reitor que não compreendia o porquê da fragilidade política da ANDIFES, uma vez que ali aglutinavam-se os reitores das federais, todos eleitos.
Na verdade, eu lhe fizera uma provocação, pois os reitores, mesmo sendo eleitos, só eram nomeados diante de uma lista tríplice enviada ao MEC. A lista era a coleira legal a que os reitores estavam presos, e contra a qual eles não se opunham. Ato contínuo, depois de nomeados, com raras exceções, todos deixavam de ser reitores, de fato, e passavam a ser meros gestores governamentais.
A artimanha da lista, criada por FHC e mantida pelos petistas, ainda vigora. Assim, todos os governos subjugaram as federais. Todos, inclusive os petistas, impuseram-nos seus projetos, em geral, populistas, que certamente levariam as universidades ao estrangulamento financeiro. Todavia, até que chegasse Bolsonaro, as coleiras não eram tão perceptíveis. Agora, tudo se escancarou por meio de cruéis cortes orçamentários.
Com isso, as pró-reitorias de planejamentos/administrativas passaram a determinar como o orçamento deveria ser realizado. A própria democracia interna para deliberações acerca da pauta orçamentária está comprometida nas federais.
Com esse enfoque, as pró-reitorias das atividades fins (ensino, pesquisa e extensão) vivem sob humilhações; não conseguem o básico para tapar o sol com a peneira. Para piorar, o governo proibiu novas contratações, de concursados ou de substitutos.
Uma vez rebaixadas a esse patamar, só restariam às universidades a força da ANDIFES e a luta contundente dos sindicatos diretamente envolvidos. Contudo, não consigo ver nem uma coisa, nem outra. Mas posso (e quero) estar errado.
Não vendo isso, que seria positivo no cenário, assisto a cenas lamentáveis. Dias atrás, na UFMT, antes da explosão do coronavirus, houve a demanda da utilização do TU (Teatro Universitário) por parte da Orquestra de Câmara da UFMT (OCAM) e da ADUFMAT (Sindicato dos Professores da UFMT), que pretendia, no dia 31, realizar o ato-show “Nem cálice e nem cale-se”, contra a censura que já vem sendo experimentada no Brasil.
Como os eventos dar-se-iam em março, mês não contemplado por um perverso e mal escrito edital de utilização do TU, depois de muita pressão, a reitoria permitiu que a OCAM fizesse sua apresentação no TU. Todavia, os mesmos peso e medida não foram utilizados para a ADUFMAT, que se prontificava, inclusive, a pagar a diária àquele espaço.
Diante de uma proposta de evento artístico/político, que serviria como aula de cidadania, por meio de despacho gerencial, e não político, como deveria ser, o reitor, ou melhor, o gestor mor da UFMT – pretendendo ser candidato à reeleição e posteriormente ser nomeado por Bolsonaro – indeferiu o uso do TU. Para não demonstrar desdém completo, sugeriu – embora soubesse, de antemão, que seria recusada – a utilização do Centro Cultural, espaço sem estrutura àquela atividade.
Enfim, neste momento em que as federais estão sendo trituradas pelo governo, reitores politicamente fortes seriam bem-vindos. Gestores subjugados são desnecessários.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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Enquanto o eu-lírico de Drummond – imerso na atmosfera da II Guerra, bem como nos desmandos da ditadura de Vargas – via “uma pedra no meio do caminho”, hoje, podemos ver não uma pedra, mas uma gigantesca sombra cruzando e escurecendo nossos caminhos.
Mesmo sem saudosismos de nosso passado político, no qual incluo os governos petistas, o fato é que o atual governo federal, pelo menos aos que não abrem mão da democracia, é qualquer coisa pra lá de assustadora. E os exemplos disso são muitos.
Pois bem. Como se passar por bom cristão nunca sai de moda, biblicamente falando, afirmo: tais exemplos nascem da mesma forma e na mesma proporção que o joio no meio do trigo. Assim, pontuarei alguns dos incômodos que me inquietaram mais do que deviam.
Começo pela edição da Medida Provisória (MP) 914, de 24/12/2019: véspera de Natal, que é o ponto máximo do calendário cristão. No plano do escárnio, seria o presente de Natal às universidades? Seria o que de melhor podia o rei mago brasileiro ofertar à nossa educação superior?
Centralmente, o conteúdo da MP é destruir a democracia nas federais. Ela dispõe sobre as eleições às suas reitorias, aprofundando o que já era disposto legalmente sobre a lista tríplice, criada por FHC e, lamentavelmente, mantida pelos governos subsequentes.
Com a lista tríplice, sempre ficou mais fácil aos governos de plantão indicarem seus aliados dentro das federais, quando fosse necessário. Todavia, essa prática tão explícita não era comum. Havia certa “elegância” nos processos de cooptação. O primeiro nome da lista era invariavelmente respeitado.
Com a MP 914, Bolsonaro só respeitará o primeiro da lista se esse for de seu campo ideológico: reacionário. Mais: a MP retira as eleições a diretores de faculdades e institutos, que serão indicados pelos reitores. É o círculo antidemocrático que se fecha. É o fim da democracia interna; logo, essa MP não pode virar lei.
Mas as federais são apenas parte de uma sociedade em que a democracia encontra-se em estágio doentio, ou sob estado sombrio. Para dimensionar isso, relembro que, no mês passado, Bolsonaro, ao ser questionado sobre a obra na biblioteca do Palácio do Planalto para abrigar uma sala de trabalho para a primeira-dama, reagiu mais uma vez com críticas à imprensa; ele fez o gesto grosseiro de “banana” aos repórteres.
Nesse mesmo sentido, há poucos dias, Bolsonaro escalou um humorista para dar bananas à imprensa. Com o circo que produziu, o presidente tentava evitar perguntas sobre o menor avanço do PIB em três anos. Dessa forma, escondendo-se em um humorista, novamente agride a imprensa; assim, menospreza a democracia.
Mas grosseria pouca é bobagem a esse senhor, sem etiqueta alguma, transformado em presidente; por isso, algo pior viria contra a imprensa. E veio no episódio com Patrícia Campos Mello, da Folha de SP.
Absurdamente, o presidente disse, sem rubor, que aquela jornalista não queria dar um furo, mas “o furo”, numa alusão de cunho sexual. Estarrecedor.
“Nunca antes na história deste país”, um presidente desceu tanto. Ao tocar o subterrâneo, Bolsonaro, além de ofender mais uma vez a imprensa, cospe na democracia. Metaforicamente, esbofeteia todas as mulheres; e tudo isso envolto ao emblemático 08 de março, bem como ao 14, quando se completarão dois anos do assassinato de Mariele Franco. Detalhe: ambas as datas são absolutamente caras a um dos países que mais agridem e matam as mulheres no mundo.
Estamos no lodo. Continuaremos nele?