Segunda, 11 Julho 2022 11:37

 

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

 ****



 

Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

            Por mais paradoxal que possa parecer, com todo respeito a quem pense de forma contrária, vivo a plenitude de minha crença na importância social da vigência da visão antropocêntrica de nossa existência; por isso, sinto-me na obrigação cívica de resgatar uma passagem bíblica, registrada por dois evangelistas do “Novo Testamento”, para, depois, politicamente, com ela dialogar.
           Em uma circunstância de certo tumulto popular, em algum ponto de uma viagem que Cristo teria empreendido da Galileia à Judeia, algumas crianças tentavam dele se aproximar, ao que seus apóstolos se opunham, dificultando a aproximação dos pequeninos. Percebendo essa atitude arredia dos apóstolos contra os infantes, Cristo faz a seguinte repreensão, narrada, de forma muito parecida, em Matheus 19: 14 e em Marcos 10: 14:
           “Depois trouxeram crianças a Jesus, para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas. Mas os discípulos os repreendiam. Então, disse Jesus: "Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas".
           Pois bem. Diante da recente exposição de corrupção no Ministério da Educação (MEC), a primeira imagem que me veio à mente foi a desse excerto bíblico, acima transcrito, lido em idos tempos, mas, agora, por mim, invertido em sua essência. Trocando em miúdos, como quem não tem Cristo passa-se por reverendo, ou seja, seu representante legal cá na Terra, podemos ver a figura do ex-ministro da Educação, que posa de “bom pastor”, pedindo que deixassem vir até ele, não as crianças, que dependem dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), mas os dois pastores (Arilton Moura e Gilmar Santos, pelo menos no nome!), envolvidos no escândalo que abalou o setor da educação brasileira; tudo e todos, ao que tudo indica, envoltos em despudorados troca-trocas de “presentes”, que poderiam vir até em “barrinha” de um quilinho de ouro!; afinal, dele (o ouro, é claro) é o reino do... capital; logo, no caso em pauta, dos oportunistas da fé alheia.
           A título de contextualização, num resumo extraído do site O Globo (24/06/2022), “O escândalo de corrupção no Ministério da Educação— que levou à prisão o ex-ministro Milton Ribeiro(imediatamente solto no dia seguinte)— teve início com suspeitas relacionadas à atuação de pastores dentro da pasta. O ex-ministro e os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura são acusados de operar um balcão de negócios no MEC: os religiosos, mesmo sem ter cargo no governo, negociavam com prefeitos o repasse de verbas em troca de propina. Eles cobravam entre R$ 15 mil a R$ 40 mil e até mesmo a compra de Bíblias para facilitar a liberação dos recursos aos municípios, que conseguiam a verba semanas depois da negociação”.
           Dessa matéria, vale lembrar que um desses pastores só não se tornou um servidor do MEC, mesmo que temporariamente, porque teria considerado o cargo de Direção e Assessoramento Superior (DAS-3) muito baixa: algo em torno de cinco mil e quinhentos reais. Independentemente de sua recusa, interessante seria saber como o ex-ministro faria para lhe “dar” essa remuneração, pois as DAS são gratificações recebidas por servidores públicos federais efetivos, logo, concursados, e que atendam algumas exigências contidas na Constituição Federal, além de leis específicas. Mas como no Planalto Central para os enviados de Deus nada parece ser mais impossível, o Sr. Milton, ao que tudo indica, nem precisaria de recorrer a qualquer tipo de reza brava, até porque dela provavelmente corre tanto quanto o diabo corre da cruz. Talvez, no máximo, bastasse um telefonema ao poderoso chefão, ou ao “cristão-mor”(kkkkkk) dessa nação completamente abandonada à própria sorte.
           Diante desse cenário, não sem razão, encerro este artigo trazendo à tona a figura de Karl Marx (Séc. XIX), que sintetiza o pensamento de alguns filósofos do século XVIII, que viam a religião como algo próximo do ópio para o(s) povo(s).
           Pobres filósofos! Pobre Marx! Acertaram só a metade da assertiva. No Brasil, a religião, que até pode ser diferente da fé, não é apenas o ópio de nosso povo; nesta contemporaneidade, parodiando o nome de um programa de TV, muitas das religiões existentes incorporam, cada vez mais, a lógica das pequenas igrejas, grandes negócios.
           Em tempo: por conta de fatos mais recentes envolvendo o MEC, o título deste artigo também poderia ser algo como “Pai, afasta de mim essa CPI”. Pedido que já deu certo, pois, mesmo tendo sido criada, a CPI não terá funcionamento por ora; talvez, quem sabe, depois da eleição. Talvez...

Segunda, 13 Junho 2022 09:14

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

 ****
 

 

Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 


          Demorou, mas após tanto tempo, eis que a quadrilha está de volta em nosso país.

          Não! Embora estejamos vivendo em ano eleitoral, não estou escrevendo sob influência de quaisquer resultados de pesquisas recentes de intenção de voto à presidência da República; logo, meu caro leitor, não estou a acionar a memória afetiva ou “desafetiva” de quem quer que seja.

          Nem de longe pensei em nenhum dos inúmeros esquemas nada republicanos de nossopassado e de nosso presente políticos. Não pensei no Propinoduto. Nãome lembrei doMensalão. Tampouco, doPetrolão. Imagine se eu pensaria em Lava-jato! Sequer cogitei falar das Rachadinhas, que, aliás, pairam sobre tais suspeitas de teremsustentado e alavancado um “novo” clã político. “Novo”, mas bem à antiga moda brasileira de ser e estar na esfera de nossa política; por conseguinte, imagine se eu pensaria na atuação incessante de milicianos e de seus fiéis seguidores.

          Definitivamente, não pensei nas milícias, cada vez mais atrevidas e perigosas, como se experimentassem um à vontade “nunca antes vivido na história deste país”. Não pensei nem nas milícias convencionais, visíveis a olhos nus, que, alhures, tomam o lugar do Estado ausente, subjugando e exterminando pessoas, nem nas que atuam de forma virtual, faturandomilhões nas tão frequentadas redes sociais. Cada qual a seu modo, totalmente fora da lei.

          Ah! Quando, há pouco, falei em “fiéis seguidores”, não supôs estabelecer nenhum tipo de relação com a crença religiosa de nenhum filho de Deus. Deus me livre! Nos dias de hoje, falar disso é como que invocar o inominável. Nem mesmo naqueles descaradamente falsos profetas pensei; e olhe que desse tipo há uma abundância que impressiona até quem já poderia ter passado da idade de se impressionar com qualquer tipo de aberração. A desfaçatez desse tipo de falso religioso é tão sem-medida que, literalmente, é de tirar o chapéu para alguns deles... ou de suas próprias cabeças, se é que me entende, meu caro leitor.

          Se duvidares, ligue a TV, principalmente a aberta, de qualquer região deste “país tropical, abençoado por Deus”. Você terá a sua frente um leque gigantesco de todo tipo de descaramento, vendido como expressão de religiosidade. Por isso, em todos esses tipos de canais, que não são poucos, alguém estará, aos brados, tentando te vender um pedacinho no céu. Oh, céus!

          Ainda assim, mantenha-se calmo, leitor. Mesmo acerca do que mais alto estiver bradando, como diz Gilberto Gil, creia, “ele não rasga dinheiro, não”. Pode até voltar a chutar alguma santa desatenta, mas, definitivamente, “não rasga dinheiro, não”.

          Isso posto, ouso dizer que toda essa lembrança das diversas e sofisticadas quadrilhas políticasnão veio de minhas recordações. Joguemos, pois, a responsabilidade disso nas potencialidades semânticas do termo “quadrilha”; por consequência, na dubiedade linguísticada palavra em pauta.Foi essa dubiedade quepode ter acionado algum tipo de lembrança nada nobre a alguém.

          De minha parte, após dois anos sem festejos juninos, a começar pelo título deste artigo, desde o início só pensei em falar da saudade que todos estávamos das quadrilhas de junho e, por conseguinte, das inúmeras músicas que embalam tais momentos. Dentre tantas, para encerrar este artigo de forma lírica, escolhi aquela singela canção em queo eu-poético de Luiz Gonzaga pede para seu amor olhar pro céu, “...Vê como ele está lindo/ Olha pra aquele balão multicor/ Como no céu vai sumindo.../ Foi numa noite igual a esta/ Que tu me deste o coração/ O céu estava assim em festa/
Porque era noite de São João
...”

          Vivas às nossas quadrilhas... juninas, é claro. Oh xente!

Quinta, 28 Abril 2022 09:27

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

 ****
 

  

Roberto Boaventura da Silva Sá

Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
 

          Não gosto muito do senso-comum, mas, agora, lanço mão daquele que diz que conhecer a história nos ajuda a compreender melhor nosso presente e os dias vindouros; e se essa compreensão não abarca o todo, e nunca abarcará mesmo, pelo menos pode qualificar uma parte desse todo. Tratarei aqui de facetas dessas partes.
          Ao dizer isso, e da forma como estou dizendo, como “discurso de autoridade”, invoco o poeta baiano Gregório de Matos (1636-1696), também conhecido – não sem motivos – pela antonomásia “O Boca do Inferno”.
          Gregório, depois de ver o Estado da Bahia (que, na ocasião, representava o Brasil inteiro) arruinado, político, social e economicamente, passa a mal dizer a sociedade colonial dos seiscentos; poucos escaparam de sua boquinha infernal.
          Assim, já no início do poema “Aos Vícios”, o eu-poético diz ser “...aquele que os passados anos”, cantou em sua“...lira maldizente/ Torpezas do Brasil, vícios e enganos”.
          Mais adiante, no mesmo texto, uma “fotografia” político-social do Brasil daquele tempo (repito, representado pela Bahia), nos é apresentada. No entanto, vejamos como é impressionante a semelhança do muito que estamos vivendo agora:
          “(...) Qual homem pode haver tão paciente,/Que, vendo o triste estado da Bahia/ Não chore, não suspire e não lamente?// Isto faz a discreta fantasia:/ Discorre em um e outro desconcerto/ Condena o roubo, increpa a hipocrisia.// O néscio, o ignorante, o inexperto// Que não elege o bom,/ nem mau reprova/ Por tudo passa deslumbrado e incerto (...)”.
          Complementando essas observações, como se fossem em closes poéticos, Gregório dirá – mas em outro poema, no qual “Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia” – que “...A cada canto um grande conselheiro,/Que nos quer governar a cabana, e vinha,/ Não sabem governar sua cozinha,/ E podem governar o mundo inteiro.// Em cada porta um frequentado olheiro,/ Que a vida do vizinho, e da vizinha/ Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,/ Para a levar à Praça, e ao Terreiro...”
          Isso posto, não sem lamentar, somos obrigados a constatar que a sociedade brasileira, neste primeiro quartel do século XXI, na essência, se mantém presa a diversos “vícios” semelhantes aos da sociedade do século XVII.
          Em outras palavras, muitos de nossos governantes, na essência, continuam apresentando os mesmos “defeitos de fábrica”, a mesma inabilidade para o exercício de governo de um país tão complexo; de outra parte, a maioria de nosso povo, vivenciando um processo de alienação que parece ser interminável, continua pesquisando, escutando, espreitando e esquadrinhando a vida alheia.
          A quem não compreendeu bem essa minha atualização das palavras de Gregório, faço lembrar do tempo que muitos, inclusive parte significativa de nossos universitários, perdem um tempo precioso “apreciando” programas televisivos tão desqualificados, como os reality shows. Na essência, antes que tais programas – em si e per si – possam revelar alguma coisa, geralmente circunscrita ao plano do comportamental das pessoas que se “confinam”, antes, podem revelar, na verdade, o quanto mexeriqueiros somos como povo.
          Ao afirmar isso, digo que em nada nos diferimos da maior parte de nossos compatriotas do período colonial. Se no passado, os “olheiros” pesquisavam, escutavam, espreitavam e esquadrinhavam – in locu –“a vida do vizinho e da vizinha para levá-la à Praça e ao Terreiro” (de candomblé e/ou umbanda), como registra o poeta baiano, hoje, como peixes inebriados, caímos nas amarras das redes sociais, espaços de muito maior visibilidade para o “compartilhamento” de tudo, inclusive, de nossas futilidades e, muitas vezes, de nossas maldades.

          Pergunto: até quando, socialmente, manteremos essa trajetória histórica de um povo que continua a cultivar práticas tão subterrâneas?

Quinta, 03 Fevereiro 2022 11:07

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****

 


Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.


            Depois de alguns meses sem escrever meus artigos, rompo o jejum para prestar minha homenagem à poeta Marilza Ribeiro, que nos deixou bem na abertura deste mês. Por conta de complicações advindas da covid, mais uma morte; menos uma vida.
           Durante quase 90 anos de iluminada existência, Marilza Ribeiro extrapolou a semântica de seu sobrenome. Muito mais do que um mero riacho, ela foi um caudaloso rio de poemas. E os escrevia porque sempre tinha o que dizer a alguém. E sempre tinha algo a dizer – e na forma mais elevada possível da escritura, que é a poesia – porque lia compulsivamente; por isso, compreendia e poetizava seu mundo, seu tempo, ainda que tão complexo; sentia suas dores e suas alegrias.
           Mas nesta homenagem, absolutamente limitada, ao invés de falar de seus poemas, dispersos em livros e folhas avulsas, geralmente num amarelo bem forte, que ela costumava fotocopiar e presentear seus amigos, falarei um pouco de sua pessoa e de minha aproximação consigo.
           Começo recordando que a primeira vez que ouvi o nome de Marilza Ribeiro foi no início de 1987, em Barra do Garças. Assim que cheguei ao campus da UFMT naquela região, um colega professor falava de forma absolutamente entusiasmada dessa poeta, até então desconhecida por mim, um ser em construção recém-chegado ao Mato Grosso.
           De lá para cá, pude conhecer seus livros, mas nunca havia tido a oportunidade de conhecê-la pessoalmente; no fundo, eu achava que sequer tinha esse direito. Em minha imaginação, Marilza era um pouco parecida com aquelas musas – sempre inatingíveis – de quem o trovador medieval não ousava se aproximar, até para não lhe causar enfastio. Eu tinha medo de ser impertinente. E assim permaneci por anos; na verdade, por décadas.
           Todavia, não há muito tempo, em um desses inesquecíveis dias, uma colega da Área de Literatura, do Instituto de Linguagens, e outro da Faculdade de Comunicação, aos quais devo muito, convidaram Marilza para um informal “bate-papo” com alunos e professores da UFMT. Claro que eu não podia mais perder tempo. Ainda que eu continuasse a não me sentir à altura de me aproximar e de me apresentar à poeta, pelo menos era a oportunidade que eu tinha de conhecê-la, de vê-la.
           Para minha surpresa, quando a vi, absolutamente desenvolta e com as roupas maravilhosamente coloridas que ela sempre usava, de chofre, me lembrei de que aquela linda senhora, de cabelos já bem grisalhos, era a mesma que eu via com frequência num shopping próximo à Universidade durante o horário de almoço e do meu sagrado café. E toda vez que eu a avistava, aliás, sempre carregando duas sacolas, uma em cada mão, eu a acompanhava com os olhos até que desaparecesse do meu campo de visão. E toda vez que ela passava por mim, educadamente, me cumprimentava apenas com um aceno de sua cabeça, pois estava sempre a cantar – aliás, afinadíssima – alguma pérola de nossa MPB:“...agora eu era o herói/ E o meu cavalo só falava inglês...”; “A deusa da minha rua/ Tem os olhos onde a lua/Costuma se embriagar...”; “Se essa rua, se essa rua fosse minha...”
           Seu repertório era imenso e primoroso. Consoante seu relato, muito das canções que aprendera a gostar era ouvido no piano, “tocado maravilhosamente” por Mirtes, uma irmã sua.
           Sua memória, impressionante. Sua voz era de uma força que não se abatia com a idade; ao contrário: embaraçava o tempo.
           Depois dessa sua participação na UFMT, me encorajei e disse a ela de minha admiração também por sua figura, que estava sempre cantando e assoviando... como se esparramasse flores perfumadas por onde passava. Soube bem depois, por ela mesma, que ela fazia mini-shows musicais na fila da agência do Correio, que fica nas imediações do mesmo shopping. “A vovó”, disse-me ela, “era aplaudida por todos” naquele local. E não era pra menos. Marilza era um show de ser humano, desses cada vez mais raros de nossa espécie.
           E assim nasceu uma das mais lindas amizades que já fiz até hoje. Dali até poucos dias, antes que ela se mudasse de Cuiabá para o litoral de SP, quando nos despedimos numa animada reunião, junto com outras figuras maravilhosas de nossas artes locais, excetuando o período dessa absurda pandemia, quase todos os dias eu tive o privilégio que poucos tiveram: tomar um café com Marilza; e o melhor daqueles já saudosos encontros é que eu não tinha a menor pressa de sair dali. Por vezes, até me atrasei para alguma reunião. Não me arrependo. Depois desses cafés, quase sempre eu a deixava para suas compras num supermercado, também próximo. Ela descia do carro e já encontrava o tom correto de alguma canção. Pronto. Lá ia minha poeta distribuir suas flores perfumadas, agora no supermercado. Isso me fazia sentir absolutamente orgulhoso e radiante: como poucos, eu tinha a chance de conviver com uma poeta! Sabe o que isso, caro leitor?
           Quantos poemas! Quantas histórias! Quantas músicas! Quantas alegrias! Quanta identificação! Agora, quanta saudade! Como consolo dessa saudade que aperta o coração, resta-me agradecer a vida pela oportunidade que me deu de conhecer Marilza Ribeiro, aquela senhora sempre cantante, que invariavelmente carregava duas sacolas, uma em cada mão.
           O que havia naquelas duas sacolas?
           Presentes. Em uma, presentes para filhos, netos, bisnetos... Em outra, muitos, mas muitos e caríssimos poemas: presentes para a humanidade toda.
           Marilza Ribeiro!
           Presente! Eternamente, presente!

Terça, 24 Agosto 2021 13:11

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****

 

Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
 

            Como é do conhecimento público, o atual governo federal – como outros já fizeram–pretende empreender mais mudanças na Administração Federal, por meio de sua Reforma Administrativa, que poderá, de vez, devastar o serviço público. A oposição a esse desmonte é absolutamente necessária.
           No bojo desse debate, muitas ações públicas estão surgindo como forma de conscientização da sociedade contra os malefícios da proposta governamental. Uma dessas ações ocorreu na Câmara Municipal de Sinop-MT, no último dia 13, sob impressionante tensão e desfecho ainda imprevisível por conta de considerações sobre o processo histórico da exploração portuguesa no Brasil, bem como sobre a ocupação no norte de Mato Grosso. As reflexões foram expostas pela vereadora do PT/Sinop, Graciele Marques dos Santos, e pela professora Lélica Elis Lacerda da UFMT/Cuiabá.
    Sobre o episódio em pauta, a matéria “Violência do agro volta a atormentar em Sinop”, publicada no site do Sindicato dos Docentes da UFMT (a ADUFMAT)(https://mail.yahoo.com/d/folders/1/messages/42880), em 17/08, nos ajuda a compreender a dimensão de tudo o que foi dito, bem como da imediata e agressiva reação de setores conservadores da sociedade de Sinop, que, aliás, recentemente, censurou“...outdoors críticos ao governo Bolsonaro ”e empreendeu uma“...perseguição deliberada à delegada que debateu a violência contra as mulheres, em abril desse ano...”
           Na essência, a professora Lélica afirmou “que a história da colonização de Sinop, assim como a brasileira, no geral, não é o jardim florido que gostam de reafirmar. A riqueza capitalista, que inclui o agronegócio, foi forjada na violência e na exploração dos povos originários e escravizados, majoritariamente por homens brancos, e é ainda hoje produtora de violência, morte e desigualdades no campo e na cidade...”
           Considerações fortes em cima de uma realidade indiscutivelmente cruel, mas sem ineditismo, pois, como resgata a matéria acima mencionada,“...José de Souza Martins, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Octávio Ianni são algumas das referências sobre o tema. Na própria UFMT, o professor Wanderlei Pignati... produz vasto conteúdo com dados, relatos e informações diversas que vão ao encontro das considerações da professora Lélica”.
           Além dos estudiosos já citados, para contribuir com o debate, dentre outros tantos que também poderiam ser aqui referidos, acrescento algumas reflexões do professor Alfredo Bosi, da USP, falecido há poucos meses de covid-19. De suas considerações, destaco o capítulo “Reflexo ampliado e contradição no processo colonizador”, inserido no livro Dialética da Colonização (Companhia das Letras).
           Já no início do capítulo, Bosi, falando da colonização/exploração do Brasil, há pouco mais de 500 anos, trata da “cobiça dos invasores” das “novas terras”, enfatizando o “ímpeto predatório e mercantil, a busca da acumulação de riqueza rápida e grávida de consequências para o sistema de trocas internacional”.
         Para consolidar seus estudos sobre o processo exploratório português em terras brasileiras, o autor recorre ao discurso de autoridade, o que é desejável no fazer acadêmico, trazendo à luz importantes reflexões de Karl Marx (sim, ele mesmo!!!), inseridas em O Capital:
           “(...) Onde predomina o capital comercial, implanta por toda parte um sistema de saque, e seu desenvolvimento, que é o mesmo nos povos comerciais da Antiguidade e nos tempos modernos, se acha diretamente relacionado com os despojos da violência, com a pirataria marítima, o roubo dos escravos e a submissão; assim sucedeu em Catargo e em Roma, e mais tarde entre os venezianos, os portugueses, os holandeses...”
           Logo após a essa citação, Bosi afirma que “...a expansão moderna do capital comercial, assanhada com a oportunidade de ganhar novos espaços, brutaliza e faz retroceder a formas cruentas o cotidiano vivido pelos dominados...”
           O catedrático autor diz ainda que o processo colonizador português, em especial, “conheceu a barbarização ecológica e populacional acompanhando as marchas colonizadoras entre nós, tanto na zona canavieira quanto no sertão bandeirante; daí as queimadas, a morte ou a preação dos nativos”.
            Na atualização de sua análise, numa “fotográfica” síntese, Bosi registra que, hoje, o processo exploratório continua, pois “...o gado expulsa o posseiro; a soja, o sitiante; a cana, o morador”.
          E para desgosto dos que odeiam a verdade histórica sendo explicitada, o estudioso da USP diz mais: que, no Brasil, “o projeto expansionista dos anos 70 e 80 (do séc. XX, foi e continua sendo uma reatualização em nada menos cruenta do que foram as incursões militares e econômicas dos tempos coloniais”.
          Para quem não se localizou no tempo, vale lembrar que o referido “projeto expansionista dos anos 70 e 80” é exatamente parte umbilical do “Milagre Econômico”, empreendido pelo último regime militar no Brasil (anos 70/80, mas iniciado em 1964), que tinha outro lema nacionalista embutido no processo: “integrar para não entregar”; e assim se fez o Nortão de Mato Grosso!
           De minha parte, relato que, no início dos anos 90, em uma das cidades daquela região, localizada acima de Sinop, rumando ao Estado do Pará, perguntei aos alunos (todos já professores, embora a maioria fosse leiga) de um curso que ministrei à época, por que eu não via nenhum indígena circulando naquele espaço urbano, se em Barra do Garças, onde eu havia morado há pouco, isso era rotineiro.
           A resposta foi um silêncio sepulcral.
          Pagando o preço por ser, naquele momento, um professor muito jovem, sem compreender aquele silêncio, depois de muita insistência minha, um dos participantes do curso ousou responder, mas já adiantando sobre os riscos que passaria a correr a partir de sua resposta, que, na verdade, veio em forma de pergunta:
           – Professor, perguntou-me, o senhor conhece um produto altamente tóxico utilizado para acabar com fungos nos antigos laranjais do Estado de São Paulo?
           Por conta de meu desconhecimento completo sobre a difícil lida do campo, respondi que não.
         Ele continuou sua explicação, iniciando pela citação do nome do produto. Infelizmente, não me recordo mais daquele nome, mas a sua pergunta foi uma dolorosa resposta à minha inquietação. Aquele agrotóxico, consoante sua informação, lançado por aviões, foi utilizado em larga escala para ajudar no processo de abertura de clarões daquela mata de um verdejante escuro. Nem o temido Curupira saía vivo daquela “chuva” indesejada.
           Incômodo?
           Sim; e esse é apenas um dentre tantos existentes em nossa história.
        Portanto, a professora Lélica Elis Lacerda, a quem externo solidariedade acadêmica em seu discurso, não cometeu nenhum tipo de crime; ao contrário, apenas tratou, academicamente, de um processo com base na realidade, na verdade dos fatos. Pena que realidade e verdade, em tempos pós-modernos, sustentados por grande parte da própria academia, passaram a ser questionadas e vistas apenas como narrativas, geralmente, criadas ao gosto do criador.

 

Sexta, 25 Junho 2021 08:27

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****
 
 

Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 


            Hoje, retomo o tema e o ritmo de meu último artigo, intitulado “De cachaça e orações”.
            Desde que o Papa Francisco, zombeteiramente,disseque o Brasil não tinha salvação, pois por aquise vive de“muita cachaça e pouca oração”, passei a perceber o tanto que Francisco foi mesmo injusto com os brasileiros.
            Claro que a cachaça nossa de cada dia é sagrada para muitos, mas “tá pra existir” um povo que ore mais do que o nosso; aliás, isso é historicamente feito a partir da mais cruel das violências simbólicas, advindas desde as primeiras ações catequéticas dos jesuítas, auxiliares da exploração portuguesa, que por aqui estiveram para impor goela abaixo de nossos indígenas a fé cristã. Dos jesuítas do período colonial, destaco a genialidade persuasiva dos padres José de Anchieta, no século 16, e Antônio Vieira, no 17. Pobres indígenas!
            De lá para cá, quase tudo virou motivo deou para oração, pois, nos altares e andores, santos não faltam. Abundam, até! Essa abundância, por certo, é realçada se for aceitoque a “oração”, para o temente, não precisa ser realizada apenas nos moldes mais convencionais.
            Se se compreender, por exemplo, que oração também pode ser “materializada” por meio da exaltação de algum santo/entidade religiosa, toda vez que há uma invocação em alguma canção de nossa rica expressão musical, então, aí, sim, nosso país estoura de vez a boca do balão de tanto rezar.
            E já que falei em “balão”, e estando em pleno mês de junho, me lembrei o tanto que este período do ano já provocou, e ainda provoca, diferentes compositores que acionamtrês santos católicos do mês (Santo Antônio, São João e São Pedro), ardentemente festejados, logo, louvados, mesmo que em espaços profanos, como as maravilhosas festas juninas, que nunca saem de nossas lembranças infantis.
            Só para contextualizar, conforme o site da Diocese de São João Del Rei, “Antes de assumir sua forma cristã, as festas juninas tiveram origem pagã no hemisfério norte, onde se festejava, em junho, o solstício de verão, para comemorar o início das colheitas. Com a expansão do cristianismo, elas foram ganhando novo significado e nova roupagem, tornando-se celebração da festa de São João, chamada de festa joanina (de João) e, posteriormente, junina (de junho). Nela, Santo Antônio e São Pedro passaram a ser também celebrados”.
            Desse trio de santos, é difícil dizer qual é o mais cantado. Mais difícil ainda é eleger qual dascançõesé a melhor, de tantas que há. Por isso, aleatoriamente, registro a singeleza da “Capelinha de Melão” (João de Barros e Adalberto Ribeiro), aquela que “...é de São João/ É de cravo, é de rosa, é de manjericão”.
            De Santo Antônio, chamo a atenção para a beleza do poema-musicado abaixo, intitulado “Santo Antônio” (J. Velloso), belamente interpretada por Maria Bethânia:
            “Que seria de mim, meu Deus/ Sem a fé em Antônio... A luz desceu do céu/
Clareando o encanto/ Da espada espelhada em Deus/ Viva, viva, meu Santo...// Saúde que foge/ Volta por outro caminho/ Amor que se perde/ Nasce outro no ninho... Maldade que vem e vai/ Vira flor na alegria/ Trezena de junho/ É tempo sagrado/ Na minha Bahia...// Antônio querido/ Preciso do seu carinho/ Se ando perdido/ Mostre-me novo caminho...”

            Emboraa música acimaseja um texto profano, a explicitação artística dessa fé em Santo Antônio é de matar de inveja até os melhores e muito bem pagos compositores e cantores gospels, tão em moda e a serviço de “grandes empresas e grandes negócios” do setor da fé e outros.
            De São João, a canção abaixo “São João, Xangô Menino” (Caetano Veloso / Eli Camargo / Gilberto Gil), composta próximo do pastiche, até por conta da miscigenação presente, é um verdadeiro hino popular de adoração a um santo:
            “Ouvir São João, Xangô Menino/ Não encontramos nada./ Meu pai, São João Batista, é Xangô/ É o dono do meu destino até o fim/ Se um dia me faltar a fé a meu senhor/ Derrube essa pedreira sobre mim/ Meu pai, São João Batista, é Xangô...// Céu de estrelas sem destino/ De beleza sem razão/ Tome conta do destino, Xangô/ Da beleza e da razão// (Viva São João) viva o milho verde/ (Viva São João) viva o brilho verde/ (Viva São João) das matas de Oxóssi...// Olha pro céu, meu amor/ Veja como ele está lindo/ Noite tão fria de junho, Xangô/ Canto tanto canto lindo...”
            E como já registrei acima, o rosário de músicas que tematizam os santos das festas de junho é muito extenso, talvez na mesma proporção da devoção de nosso povo que, em tempos de junho, e como ninguém é de ferro, também “processa” a cachaça, sem nunca esquecer que o primeiro gole é do santo, como na receita abaixo:
            “Derreta o açúcar em fogo alto até caramelizar. Adicione o gengibre, o cravo e a canela, exceto a pinga.Mexa até dissolver o açúcar; após, com cuidado e respeito, agora, sim, acrescente a ‘marvada pinga’.Deixe tudo ferver em fogo baixo por alguns minutos. Depois, melhor servir em canecas rústicas,de preferência, de barro, “mode” se manter quentinho”.
            Enfim, com muita cachaça ou pouca oração, ou com muita oração e nem tanta cachaça assim, mas sob um manto de muita enganação sobre todos nós, bom seria se não perdêssemos a memóriadaelegância exuberante de nosso sertão, tão lembrado, mesmo que caricatamente, nos festejos de junho; menos ainda, perdêssemos a chance de estar, toda vez que possível, bem pertinho daquela serra, que vive “branquejando folhas secas pelo chão”.

Segunda, 07 Junho 2021 10:14

 
****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****

 
 

Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

             Mesmo em meio àdevastadorapandemia da Covid-19, a assertiva“macunaímica”, de 1928, registrada por Mário de Andrade de que os males do Brasil são“pouca saúde e muita saúva” foi trocada, dias atrás, pela máxima “muita cachaça e pouca oração”, enunciada pelo Papa Francisco.
             Em tom de brincadeira, surpreendendo “a deus e o mundo”, o pontíficedisseessas palavras a um sacerdote da Paraíba, que lhe pedia a bênção em nome do povo brasileiro; e o Papa ainda disse que o nosso país “não tem salvação”.
             Mais do que rápido, pelas redes sociais, começaram as respostas à galhofa papal. Em uma delas, houve quem registrasse que “Mal sabe o papa que o problema do Brasil é justamente o povo que ora, não o que bebe!
             Pelo sim, pelo não, o fato é que, desde a primeira missa no Brasil(26/04/1500), celebrada por Henrique de Coimbra, um rosário sem-fim de oração é o que mais tem sido empurrado goela abaixo de nós todos. Quem duvidar, ligue a TV e brinque com o controle remoto na busca de algo que lhe satisfaça. Mas já aviso: há de se ter muito controle emocional para não arremessar o remoto à parede, tantos são os canais de orações, principalmente daqueles tipos tão bem identificados por Gilberto Gil na inteligentíssima música “Guerra Santa”:
             “Ele diz que tem... como abrir o portão do céu// Ele promete a salvação// Ele chuta a imagem da santa, fica louco-pinel// Mas não rasga dinheiro, não// Ele diz que faz... tudo isso em nome de Deus// Como um Papa na inquisição//...Promete a mansão no paraíso// Contanto, que você pague primeiro// Que você primeiro pague dinheiro//...Ele pensa que faz do amor sua profissão de fé// Só que faz da fé profissão// Aliás em matéria de vender paz, amor e axé// Ele não está sozinho não...”
             Nessa mesma perspectiva poética da percepçãodo oportunismo de inúmeros religiosos,mas bem antes das tais “orações” invadirem nossos lares, via satélite, a “Canção do Exílio” do poeta modernista Murilo Mendes –em paródia à antológica e homônima “Canção do Exílio” do romântico Gonçalves Dias –confirma a perturbação social provocada por muitos oradores que, assim como os pernilongos,desde sempre, não respeitam o espaço público:
             “Minha terra tem macieiras da Califórnia... A gente não pode dormir// com os oradores e os pernilongos...”.
             No mesmo plano, e mais que depressa, o cantor e compositor Boca Nervosa – sambista à lá Dicró, Bezerra e Moreira, ambos da Silva – respondeu a Francisco com o seguinte samba:
             “ O Papa falou que o Brasil não tem mais solução// Disse que é muita cachaça pra pouca oração//Santidade, eu descordo do que o senhor tá falando// No Brasil, ‘nós bebe’ cachaça, mas oferece pro santo// Tá certo! Em todo canto tem um cachaceiro// Mas nosso povo brasileiro sempre foi gente de fé// Vai na Igreja, no Centro Espírita// Jura em Umbanda, Mesquita, Budismo e Candomblé, mas todos com a sua fé// Depois do culto, da oração e do compromisso com a fé// Aí é de lei tomar uma lá no bar do Zé// Sem esquecer da fé”.
             Como não discordo do Boca Nervosa, possivelmente analogia à antonomásia “Boca do Inferno”, do poeta baiano Gregório de Matos (1636-96), até pelo contrário, invoco, outra vez, o santo nome poético do também baiano Gilberto Gil,que, na música “Se eu quiser falar com Deus”, dimensiona,como poucos,o grau da submissão de nosso povo a Deus, a começar pela forma como, desde a infância,aprendemosa orar:
             “Se eu quiser falar com Deus/Tenho que ficar a sós/Tenho que apagar a luz/ Tenho que calar a voz/...Tenho que folgar os nós/Dos sapatos, da gravata/Dos desejos, dos receios/...Tenho que ter mãos vazias/ Ter a alma e o corpo nus...// Tenho que aceitar a dor/ Tenho que comer o pão/ Que o diabo amassou/Tenho que virar um cão/
Tenho que lamber o chão/Dos palácios, dos castelos/Suntuosos do meu sonho/Tenho que me ver tristonho/ Tenho que me achar medonho/E apesar de um mal tamanho/ Alegrar meu coração
...”
             Aliás, verdade seja dita, essa submissão, que se parece com algo próximo da embriaguez, já havia sido tratada também no magnífico poema “O padre passa na rua”, do modernista Carlos Drummond:
             “Beijo a mão do padre/ a mão de Deus/ a mão do céu/ beijo a mão do medo/de ir para o inferno/ o perdão/ de meus pecados passados e futuros/ a garantia de salvação...
             Ao me recordardesse poemadrummondiano, como não lembrar também de “Procissão”, outra genialidade de Gilberto Gil, que compara nosso povo, quando participa de procissões, com as cobras, que se arrastam pelo chão:
             “Meu divino São José/ Aqui estou em vossos pés/ Dai-nos chuva com abundância, meu Jesus de Nazaré// Olha lá vai passando a procissão/ Se arrastando que nem cobra pelo chão/ As pessoas que nela vão passando/ Acreditam nas coisas lá do céu/ As mulheres cantando tira o versos/ E os homens escutando tira o chapéu/ Eles vivem penando aqui na terra/ Esperando o que Jesus prometeu...”
             E a produção poética sobre esse tema é absolutamente tão abundante quanto rica nas reflexões sobre a postura, via de regra, submissa,logo, inebriante, de nosso povo no que tange à oração devotada ao um ser que se acredita onipresente, onisciente e onipotente.
             Em contrapartida, de fato, pra não dizer que não falei da cachaça, ela também nos é marca registrada. Aliás, ultimamente, um segmento musical que beira o lixo em termos composicionais, usa e abusa da apologia ao álcool, mas em especial às cervejas, patrocinadoras, por excelência, dos principais espaços onde o produto (no caso, a música) é consumido. O aumento do consumo do álcool é obviedade nacional que dispensa comentários.
             Seja como for, da cachaça propriamente dita, me recordo, a título de ilustração, de duas canções, eu diria que precursoras das composições mais atuais. Ambas se tornaram conhecidas por meio de duas vozes femininas (Elizeth Cardoso e Inezita Barroso), em momentos sociais em que o machismo era quase uma ordem natural a ser seguida.
             Na voz de Elizeth, por décadas, o país cansou de cantara seguinte composição de João do Violão e Luiz Antônio:
             “Eu bebo sim/ s’tô vivendo/ Tem gente que não bebe/ E s’tá morrendo// Tem gente que já s'tá com o pé na cova/ Não bebeu e isso prova/ Que a bebida não faz mal/ Uma pro santo, bota o choro, a saideira/ Desce toda a prateleira/ Diz que a vida s'tá legal...”
             Nesse verdadeiro “hino ao inebrieante”, há de se notar o respeito ao santo. O cachaceiro, como já nos lembrou acima o Boca Nervosa, ao oferecer “uma pro santo”, demonstra sua mais pura forma de oração; quiçá, menos farisaica dos que já se consideram eleitos pra ocupar um lugar à direita de Deus Pai...
             Por sua vez,em 1953, Inezita imortalizou a “Marvada Pinga” ou (Moda da Pinga), de OchelsisLaureano, cantada inicialmente por Raul Torres, em 1937:
             “Com a marvada pinga/ É que eu me atrapaio/ Eu entro na venda e já dou meu taio/ Pego no copo e dali num saio/ Ali memo eu bebo, ali memo eu caio/ Só pra carregar é que eu dôtrabaio...// O marido me disse, ele me falo:/ Largue de beber, peço por favô/ Prosa de homem nunca dei valô/ Bebo com o sor quente pra esfriar o calô/ E bebo de noite é pá fazêsuadô...”
             Ilustrações postas, vem a pergunta: como um povo, o que nos inebria mais, a cachaça ou a oração?
             Ainda que a disputa seja acirrada, ouso dizer que o Papa perdeu essa. É claro que, infelizmente,nos embriagamos mais com as orações do que com as cachaças produzidas para tal; até porque, como nos lembram duas músicas acima citadas,devemos pôr na balança também cada gole de cada cachaceiro oferecido ao seu santo. Isso, repito, é um genuíno e típico modo de oração à lá brasileira, que não pode ser desprezado.
             E justamente porque a oração sempre se sobrepôs à cachaça, é que me junto ao cantor/compositor Luiz Melodia, que na canção “Pra quê?”, apresenta seu sonho sobre seu povo:
             “Só queria que todos tivessem comida/ Tivessem oportunidade, tivessem guarida/ Não precisassem rezar pedindo melhores dias/ Reclamando migalhas, vivendo só de agonia...”
 

 

Segunda, 12 Abril 2021 09:44

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****

 
 
 

Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

        Neste tempo de pandemia, especialmente em nosso país, tantas são as mortes diárias que jávamos perdendo a conta das vítimas da covid-19. Para o aumento do nosso infortúnio,este dolorido tempo de perdas ainda nos encontra em processo de desintegração do real sentido do quedeveria ser um “ser humano”. O negacionismo da ciência, exposto invariavelmente de forma desdenhosa e violenta, por parte de seus adeptos, pode ser um dos elementos catalizadores dessa desintegração. Para as mentes negacionistas, estranhamente vinculadas à noção do divino, nem a arte, por mais sublime que seja, consegue “operar milagres”.
        E por falar em arte, no último dia 07/04, ànominata brasileira dos mortos por covid, da qual nenhum de nós está isento,paradoxalmente, foiincorporadoum dos seres humano mais humanos: Alfredo Bosi.Dele, em emocionante homenagem de seu neto Tiago, ficamos sabendo, dentre tantos e ricos detalhes de uma existência exemplar, se tratar de um “filho prodígio de uma costureira e um ferroviário da Barra Funda”.
        No leadda mídiaaqui destacada(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/04/morre-alfredo-bosi-um-dos-maiores-criticos-literarios-do-brasil-de-covid-aos-84-anos.shtml),lemos que Alfredo Bosifoi um “professor emérito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras”. Em certeiro complemento, é registradoainda que “ele foi um dos principais intérpretes do país”.
        Por tudo isso, emboradito de forma tão resumida algo que só se constrói durante uma longa e honesta existência acadêmica, é que externoo privilégio de ter tido o primeiro contato com o professor Bosi, por meio de seu livro História Concisa da Literatura Brasileira, no início dos anos 80, quando ingressei no ensino superior. Por conta dessadeterminante referência bibliográfica, serei sempre grato à professora Alice Penteado, responsável por esse presente.
        Daquele livro basilar, cuja perspectiva didática era simplesmente ser“concisa”, historiando cronologicamente o percurso de nossa literatura, com a competência ímpar que só os grandes mestres possuem, pude ter a dimensão da minha elástica ignorância a ser atenuada com o tempo, jamais eliminada. Como estudante de Letras, sem o privilégio do prodígio de Bosi, mas com origem familiar semelhante à sua, nada era tão “conciso”para mim, como é pretendido naquele título. Cada parágrafo daquele livro era um fragmento desafiador, até mesmo em tópicos semânticos. Cada notaderodapé – e não são poucas – se abria como um leque que assoprava conhecimento que tinha de ser apanhado até onde e como se podia. Com isso, posso afirmar que me identifiquei, definitivamentecom a carreira docente, por conta do trabalho intelectual de Alfredo Bosi, absolutamente tão inspirador quanto indispensável.
        Depois desse primeiro livro, tornei-me um leitor de outros trabalhos seus, dos quais destaco as Reflexões sobre a Artee, sobretudo, olivro Dialética da Colonização, que sistematicamente, assim como a sua “história concisa”,compartilho com os meus acadêmicos no curso de Letras, pois tudo ali nos leva a pensar a complexidade de nosso país, ainda respirando valores e reproduzindo desprezíveis práticas coloniais.A leitura desse livro, a mim, como a tantos outros estudantes e professores, foi um exercíciodivisor de águas.
        Do mestre Alfredo Bosi, digo que cada palavra, cada reflexão sua importa. Nada é desprovido de sentido, como é peculiar aos intelectuais, que – assim como os galos de João Cabral tecem as manhãs com os seus cantos apanhados de um a outro – sabem estabelecer diálogos com outros intelectuais, com destaque aos pensadores clássicos; talvez, por isso, um verdadeiro intelectualnunca transita pelas trilhas da arrogância e suas parceiras adjacentes. É uma lástima ter a ciência de que esse tipo de trabalhador do intelecto vai se tornando avis raras, inclusive, dentro das universidades, cada vez que um exemplar à lá Bosi se vai.
        Ao constatar isso, e, agora, perante a memória de Alfredo Bosi, me lembrei de Antônio Cândido, outro intelectual que nos deixou há pouco. Deste,trago à tona o seu livro Na sala de aula (1986), de onde sê lê a análise literária “Carrossel”, baseada no poema “Rondó dos Cavalinhos” (In: Estrela da Manhã; 1936), do modernista Manuel Bandeira, do qual destaco o seguinte fragmento:
        “Os cavalinhos correndo,// E nós, cavalões, comendo...// Alfonso Reys partindo,// E tanta gente ficando...”.
        Infelizmente, findado o seu trabalho diplomático por aqui, Alfonso Reys, poeta mexicano, teve de regressar ao seu país. Naquele momento (década dos anos 30/século XX), para a tristeza do eu-poético manuelino, enquanto o valoroso Reys nos deixava, “tanta gente(medíocre ia) ficando”. Vale lembrar que, naquela circunstância, regimes ditatoriais, como o fascismo de Mussolini da Itália, onde Bosi pôde residir por um ano para estudar a literatura italiana, e o próprio período Vargas, por aqui, eram ameaças deveras abrangentes.
        Agora, Alfredo Bosi nos é subtraído pela doença pandêmica deste início de um século que já acumula perdas e dores infindas. Ele nos deixa em um momento também marcado por tensões, pois nossademocracia encontra-sesobsobressaltos; daí a necessidade do empenho para compreendermos o real valor das democracias.
        Por isso, mais do que antes,as reflexões de Bosi sobre o Brasil, consolidadas a partir do método dialético,pelos quais transitam os inigualáveis humanistas Marx e Gramsci, precisam e podem continuar nos ajudando a tentar entender nosso complexo país, até para defendê-lo de “tanta gente”, obviamente, medíocre e perigosa, que continua “ficando” por aqui; em outras palavras, protegê-lo de aventureiros, que em nome de pensamentos e de práticas típicas do medievo e do nosso nefasto período colonial, flertam com o autoritarismo.
        Neste cenário de dores e riscos, vivaeternamente a memória de Alfredo Bosi;graças eternas a cada palavra escrita e nos legada tão generosamente por esse grandioso Mestre de um país, perigosamente, tão macunaímico.

Sábado, 30 Janeiro 2021 16:44

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
**** 

O PT COMO ZERO À ESQUERDA

Roberto Boaventura da Silva Sá

Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT

O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. 

Antes da chegada ao poder federal da atual perigosa aberração governista, vivenciamos a produzida e – até “inocente” – dicotomia entre os “mortadelas” e os “coxinhas”.

Ao primeiro grupo, adequavam-se os simpatizantes do PT, bem como os que se aproximavam do pensamento – ainda que apenas teoricamente – mais à esquerda. Ao segundo, os assumidamente neoliberais, como os correligionários do PSDB.

À margem daquela (falsa) dicotomia, sob uma ameaça (É bom JÁ IR se acostumando”) e um conjunto de discursos rasos e moralizantes, capitaneado pelo enunciado vazio “Deus acima de tudo”, logo, por natureza, cínico, corria livre, leve e solta uma perigosa alternativa política, que não foi levada a sério por quase ninguém, principalmente, de ambos os grupos identificados acima.

Por conta desse descrédito, e sedentos pelo poder, fosse a que custo fosse, os líderes partidários “antagônicos” de antes continuavam mandatários, cada qual em seu reduto. Um deles, inclusive, apitava alto de dentro de uma cela. Para sustentar seus interesses, cada qual alimentava de ódio e rancor suas ignaras turbas. Assim, não tiveram (ou não quiseram ter) a perspicácia de antever que estavam prestes a ajudar na confirmação da “incompetência da América católica/ Que sempre precisará de ridículos tiranos...”, conforme já havia cantado a bola Caetano Veloso em “Podres Poderes”; aliás, se fosse hoje, talvez Caetano permutasse o termo “católica” pelo mais abrangente “cristã”. Genial como é, daria conta de resolver as duas sílabas métricas faltantes.

Deu no que deu. A perigosa aberração das aberrações chegou ao poder, alavancada, ao final, pela insistência petista em antagonizar um pleito previamente perdido. Se o PT quisesse, a turma governista, tão próxima de milicianos cariocas, teria “morrido afogada” na própria praia da Barra. Marina ou Ciro ajudaria o país a atravessar este momento, até encontrar algo melhor no futuro.

Agora, as lideranças de mortadelas e de coxinhas, além de outras que orbitavam próximas de ambas, deveriam promover todos os esforços – estratégicos e táticos – para alguma aproximação. Contra o verdadeiro inimigo comum, só a união, ainda que fosse pontual e momentânea. Elementar.

Mas as lideranças petistas são mesmo tão opostas assim a determinados interesses do bolsonarismo?

Antes de tratar dessa indagação, é preciso reforçar que seria elementar a união de todos contra o bolsonarismo. Todavia, não seria tão elementar assim para quem cultiva um antagonismo vazio e hipócrita entre seus seguidores.  

Para tratar desse vazio e dessa hipocrisia, tomo aquele ato – obviamente, político, para marcar a chegada da vacina contra a Covid-19 – que o atual governador de SP – candidato a presidente em 22 – realizou no dia em que seu Estado completou 467 anos. Para as comemorações, foram convidados todos os ex-presidentes pós-golpe/64.

Oportunista aquele ato?

Com certeza. Mas um oportunismo, digamos, oportuno; repleto de sentido. Imersos no degradante quadro social, político, econômico e ético, nenhum ex-presidente deveria ter se ausentado. Querendo ou não, aquele encontro – à lá posse de Biden – era algo que deveria transcender as miseráveis fronteiras de nossos partidos, quase todos iguais em suas abomináveis práticas internas.

Pois, além de Collor, Lula e Dilma recusaram o convite. Ao se ausentarem, ambos se omitiram no difícil processo de suplantação nacional do atual e degradado estágio político. As justificativas “politicamente corretas” de ambos parecem ser hipócritas, pois também são oportunistas. Dilma chegou a dizer que não queria “furar a fila da vacina”.

A essa sua justificativa, lembrou Ricardo Kertzman em Isto é de 22/01:

...Lá pelos idos de agosto de 2016, Dilma teve a aposentadoria de mais de R$ 5 mil (apenas a do INSS) deferida em tempo recorde: 24 horas! Em Brasília, onde seu pedido foi apresentado, o tempo médio de espera, apenas para ser atendido numa agência, é de incríveis 115 dias”.

Com tais justificativas, os dois petistas fizeram sua fiel e escudeira militância morder a língua, pois adoram apontar o dedo no nariz de quem anulou o voto em 2018, ao invés de apostar em Haddad para a continuidade do poderio e desmandos petistas.

Lula e Dilma – não comparecendo ao ato – ficaram mais em cima do muro (tipo anular o voto) do que os próprios velhacos tucanos. Mas não ficaram sem motivos; tampouco porque, de fato, fossem “politicamente corretos”. Lavaram as mãos porque têm interesses em sorrateiras ações bolsonaristas no que tange ao desmonte de operações contra a corrupção no país, que não é problema menor.

Quem duvidar, verifique os meandros das votações internas do PT para deliberar sobre os apoios que darão aos candidatos às presidências da Câmara e do Senado, que ocorrerão no início de fevereiro. Isso sem contar as traições, que virão.

Depois disso, podemos continuar a conversa.

Sexta, 22 Janeiro 2021 11:43


****


Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****

Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
 

       Alô, alô, Papai do Céu! “Aqui quem fala é da Terra/ Pra variar, estamos em (pé de) guerra..../ O ser humano tá na maior fissura porque/ Tá cada vez mais down no high society!”
        Por que está assim? 
        Porque depois das explorações mais convencionais de nossa antiga e velhaca “high society”, àquelas, recentemente, foram incorporadas outras artimanhas exploratórias: “mensalão”, “petrolão” e “lava-jato”. Agora são as “rachadinhas”. Os emergentes à “high society” também não têm tido muito pudor. 
        Na lata, Papai do Céu, a “high society” tem sido muito podre; tão podre que seu filho Caetano, o nosso “mano Caetano”, há algumas décadas, em “Podre Poderes”, indagou o seguinte:
        “Será que nunca faremos senão confirmar/ A incompetência da América católica/ Que sempre precisará de ridículos tiranos?...
        Desculpe, Papai do Céu, mas essa letra é genial, não é?
        Ahn?
        O “low society”?
        Oras! Como sempre, comendo o pão que o diabo amassou e, agora, pra piorar, cuspiu em cima. Cusparada, viu? Pra ser bem direto, “A coisa tá ficando russa...”
        Pois é. Diante desse quadro dantesco, insisto no papo, Papai do Céu, mesmo não sendo inédito, pois, lá pelos idos dos anos 80, do século passado, a Rita Lee e o Roberto de Carvalho – de início, pela voz de Elis Regina – já disseram tudo isso, mas a um “Marciano”; provavelmente, eles foram metafóricos. Por isso, você não tinha mesmo obrigação de entender tudo aquilo. Mas assossegue seu espírito. As criaturas da Terra também têm dificuldades de entender as metáforas. Também não sei o porquê foram inventar metáforas, posto serem “poucos os escolhidos” que conseguem atingir a dimensão desse patamar dos discursos humanos.
        Para ser bem direto, há situações que dizer algo “na lata” tem mais efeito dentre nós. Apostar nas metáforas pode ser investimento a fundo perdido, Papai do Céu. Sempre que posso, evito isso. É tão desconfortável ver um semelhante não entender as metáforas!
        Ah, sim! Quando aquelas vozes acima deram aquele telefonema aos “marcianos”, vale lembrar que, vários lugares na Terra eram dirigidos por diabólicos ditadores de “diferentes marcas”. Por falar neles, acho que essas criaturas sempre lançaram mão do “livre arbítrio” para obter o direito de nos infernizar. Confere?
        Seja como for, vinda daqui dos rincões da América do Sul, vou te lembrar, dentre tantas, de outra dessas vozes que, no desespero, embalde, apelaram para os céus. Falo do nosso Castro, o Alves, claro! Do Brasil!
        Aquele nosso poeta, na segunda metade do século 19, escreveu o poema “O Navio Negreiro (Tragédia no Mar)”. Ali, ele “fotografa” cenas das desumanas condições dos africanos arrancados, à força, de suas terras. A crueldade era tamanha que muitos dos negros eram separados de suas famílias e maltratados ao extremo, já nos navios negreiros, que os traziam para ser propriedades de senhores brancos. Eles ainda trabalhavam sob as ordens dos feitores. Sabia disso?
         Sei que você sabia. Aliás, nem posso duvidar de sua onisciência, onipresença e onipotência. Só não entendo o porquê de seu silêncio, de sua inércia. Papai do Céu não gosta de poesia? Não as lê?
        Pelo sim, pelo não, vou transcrever a primeira estrofe de sua quinta parte, que se repete ao final dessa mesma parte; essa artimanha poética funciona como se fosse um eco dentro do texto. Ei-la:
        “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura... se é verdade/ Tanto horror perante os céus?!/ Ó mar, por que não apagas/ Co'a esponja de tuas vagas/ De teu manto este borrão?.../ Astros! Noites! Tempestades!/ Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão!”
        Não contente, Castro ainda te perguntou em “Vozes d’África”:
        “Deus! Ó Deus! onde estás que não respondes?/ Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes/ Embuçado nos céus?/ Que embalde desde então corre o infinito.../ Onde estás, Senhor Deus?...”
        Mas por que estou me lembrando dessas coisas agora?
        Porque uma cria sua – dessas das mais ignorantes e arrogantes que adoram ditar ordens a seu povo, e tudo fazendo em seu nome, Papai do Céu – disse que só largaria a cadeira presidencial, obtida, aqui, em 2018, pelo gosto do “Papai do Céu”.
        ηὕρηκα/εὕρηκα! Heurekeca!
        Foi a partir disso que me lembrei de te lembrar dessas “chatices” acima. E não te conto mais porque os leitores daqui já não gostam mais de ler textos com mais de duas linhas no whatsapp; por isso, estou me contendo.
      Também me contenho, é verdade, pela raiva que simples questões, como essas, causam em algumas de suas raivosas criaturas, semelhantes àquela referida há pouco. Mas como também tenho o direito de usar do livre arbítrio, resolvi ter esse papo hoje.
        Pra terminar, peço que não me confundas com fofoqueiro, por favor, e, pelo amor dos deuses, Papai do Céu, nem te ofendas comigo.