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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Texto enviado pelo Prof. Aldi Nestor de Souza*
17:00h. Quarta Feira, 16 de dezembro de 2020. Várzea Grande. Mato Grosso. Os assistentes e as assistentes sociais cerram a porta do ginásio de esportes, após um dia de cadastramento e vão pras suas casas. Do lado de dentro do ginásio, a mobília de mais de mil famílias, despejadas do residencial Colinas Douradas, de propriedade da caixa econômica, na manhã daquele dia. Do lado de fora, as famílias, alguns colchões espalhados pelo chão, uma barraquinha de plástico.
De pouco valeu a pergunta, feita ao funcionário da caixa, cuidadoso e conferindo cada colchonete, cada saco de roupas velhas, cada armário, cada gaveta espalhados no piso do ginásio, e ao pessoal da assistência social, em suas mesinhas ornadas de questionários:
o que vai ser feito com as pessoas que estão lá fora?
Pelo funcionário da caixa foi dada a seguinte resposta: A Caixa econômica, conforme decisão judicial, é responsável pela mobília. Ela ficará aqui no ginásio por um período de trinta dias. Sobre as pessoas, é o poder público que tem que se responsabilizar.
Certo, mas e se começar essa chuva que está a caminho, elas vão poder entrar e se proteger aqui na quadra?
Isso quem resolve é a prefeitura.
Pelos assistentes e pelas assistentes sociais foi dada a seguinte resposta: a prefeitura tem os abrigos, elas podem ir pra lá. Estamos fazendo um cadastro via CRASS, que consiste de saber o antigo endereço delas, de algum parente, para encaminhá-las. “porque com certeza elas tinham endereço, elas moravam em algum lugar antes da invasão, né?”, finalizou uma assistente social.
Lá fora, homens, mulheres e crianças, muitos ainda sem almoço naquele dia, olhar de desânimo, de cansaço, de tristeza, de revolta, relatavam o ocorrido, a violência da polícia e afirmavam precisar dormir ali na calçada por não ter pra onde ir. “sim, é claro que eu tenho parentes. Morávamos 12 pessoas, duas famílias, numa peça de dois cômodos”. “eu morava de aluguel, perdi o emprego na pandemia, fiquei sem ter como pagar e me juntei ao pessoal para ocupar o prédio desocupado da caixa”. “ eles retiraram uma mulher com covid lá do prédio, de nada adiantou ela mostrar os exames positivos, os remédios, a dor, a fragilidade. A polícia arrancou ela de lá .”
Uma assistente social ainda conseguiu dizer o seguinte: “mas eles tem até carro, apontando para uma saveiro, anos 90, estacionada perto”. Olha, respondi: um deles tem uma caminhonete novinha, de dois anos de uso, mas com mil famílias despejadas, por que te chamou a atenção apenas a pessoa da saveiro? Por que você não escolhe aquela senhora grávida, com três crianças pequenas enroscadas em suas pernas, uma das quais inclusive passou mal hoje devido a ter ingerido os biscoitos vencidos que a polícia deu na hora da reintegração de posse? Ou porque você não escolhe aquele cadeirante, que levou spray de pimenta na cara e teve que ser socorrido e retirado com urgência da frente do trator que avançava? Ou porque você não escolhe pensar que esse despejo se deu em plena pandemia, jogando na rua cerca de 6 mil pessoas? Ou por que você não escolhe as centenas que não tem pra onde ir, que não são daqui, não tem parentes, não tem carro, casa, nada? a assistente social deu de ombros.
A polícia doou biscoitos, com data de vencimento 06/11/2020, conforme os pacotes exibidos por vários moradores. As crianças comeram, algumas caíram em vômitos. Não é fácil entender a doação de biscoitos na hora de uma reintegração de posse. Menos ainda, de biscoitos vencidos. É como se a maldade e a indiferença, de mãos dadas, estivessem de conluio, prontas e dispostas à demolição.
Um homem disse: ” vou dormir aqui, amanhã de manhã vou pro meu serviço. Depois, não sei. “
Foi preciso calma pra ver a segurança e a tranquilidade com que o homem da Caixa econômica falava do cumprimento da lei, do que cabia à Caixa, de os moradores terem invadido uma propriedade privada, de a Caixa não ter nada a ver com isso, de que a lei é pra ser cumprida, de que a Caixa cuidaria dos pertences dos moradores e lhes asseguraria o tempo de um Mês para a retirada e ponto final.
Foi preciso paciência para aturar os assistentes e as assistentes sociais, seguros e seguras de seus questionários, alheios e alheias para com o desespero que se espalhava no meio da tarde, na calçada, no sol, no calor, na noite que se aproximava, daquelas famílias, ali a cinco metros de distância de suas mesinhas.
É preciso multiplicar a indignação, estourar os miolos da paciência com os serviçais e operadores da justiça, técnicos decoradores dos compêndios de leis, ignorantes da vida real e das relações escaldantes que tanto mutilam nosso povo, e que, em plena pandemia, são capazes de ordenar um despejo para agradar a um banco e que jogou ainda mais no flagelo milhares de miseráveis.
Eu imaginei, o que fez todo sentido, que aquele homem da caixa, aqueles assistentes e aquelas assistentes socias, esses operadores da justiça são produto dessa sociedade absolutamente doente, formada à base da lei do valor, que gera indivíduos medonhos, sem compaixão, sem amor, sem poemas, sem lirismo, sem afeto, insensíveis à dor ao lado.
Eu imaginei a profundidade dos pedaços do poema, O operário em construção, de Vinícius de Morais, quando este diz: de fato, como podia, um operário em construção, compreender por que que um tijolo valia mais do que um pão? Ou ainda “ que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário”.
*Aldi Nestor de Souza
Departamento de Matemática-UFMT-Cuiabá
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Por Aldi Nestor de Souza*
“Não era para ninguém estar aqui. O cara acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada, nada, nada. Não era para ninguém estar aqui”
Era o início da tarde de ontem, 30/11, corria o minuto 21 da reunião do conselho de ensino pesquisa e extensão-CONSEPE, da UFMT, quando, com a voz nitidamente embargada, a professora e pro reitora de ensino de graduação, Liziane Pereira, comunicou que por volta da hora do almoço havia recebido a notícia de que seu sobrinho e afilhado tinha morrido de covid. E que, por conta disso, faria a leitura do parecer que lhe cabia em um determinado processo (sobre o calendário do ano letivo de 2021), que seria o próximo da pauta, e logo em seguida se retiraria da reunião.
O que se seguiu a esse informe, de imediato, foi mais de uma hora de debate, exclusivamente, sobre o processo citado: conselheiros e conselheiras vorazes se inscrevendo para tirar suas dúvidas, questionando o modelo flexibilizado de aulas, pontuando a incerteza do tipo de aulas para 2021, exigindo que se faça uma avaliação do ensino flexibilizado para se poder pensar em calendário.
30 votos favoráveis, 10 abstenções, zero votos contrários e o parecer/calendário foi aprovado.
A professora agradeceu pelas mensagens de pesar que recebera, presumo, pelo chat da reunião, se despediu e saiu.
Fez-se um minuto de silêncio e a reunião prosseguiu. Não houve, sequer, um grito de desespero, um pedido de socorro, um lamento em voz alta, um descontrole, um pedido para pararem com aquela reunião, um questionamento sobre o que aqueles conselheiros e conselheiras estavam fazendo ali. Uma frieza de cortar coração! Homens e mulheres assustadores(as), com suas falas desprovidas de dor, alheias à morte ao lado.
Eu vi esse vídeo bem mais tarde, só à noite, depois de avisado do ocorrido, mas mesmo assim me assustei. Homens e mulheres que me dão medo, muito medo.
Esse fato ajuda a entender a dimensão da crise civilizatória pela qual estamos passando e mostra o quanto a universidade está imersa nessa crise. O fato me remeteu a dezenas de outros, iguaizinhos, que acontecem diariamente.
Lembrei, por exemplo, da morte do modelo, durante o desfile na São Paulo Fashion Week, de 2019, que após ter o corpo retirado da passarela e a morte confirmada, a organização do evento pediu um minuto de silêncio e prosseguiu com o desfile como se nada tivesse acontecido.
Na ocasião, o rapper Rico Dalasam, que havia sido convidado para falar por uma das marcas de roupa do desfile, saiu aos gritos: “Não era para ninguém estar aqui. O cara acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada, nada, nada. Não era para ninguém estar aqui”.
O fato me lembrou também da morte do representante comercial Moisés Santos, que morreu enquanto trabalhava, numa loja do Carrefour, em Recife, no último dia 14 de Agosto. Na ocasião, os responsáveis pela loja cobriram Moisés com guarda-sóis, improvisaram uma parede com tapumes e engradados de bebidas para proteger o corpo morto e seguiram com a loja aberta, cheia de clientes, normalmente. O corpo ficou das 7:30 às 11:00 aguardando o IML.
O fato me remeteu, óbvio, aos arroubos do presidente da república que, negacionista confesso, zombador da pandemia, tripudiador dos mortos e dos parentes dos mortos, na ocasião em que já passávamos de 162 mil mortes, comemorou a suspensão dos estudos no instituto Butantan que buscava uma vacina contra a covid e disse que somos “ um país de maricas.”
A impressão é a de que não há, e talvez não devesse haver mesmo(posto que todos estão submetidos a alienação incontrolável do modo de produção capitalista), nenhuma diferença entre o CONSEPE e o presidente da república, entre o CONSEPE e a SPFW, entre o CONSEPE e o Carrefour de Recife quando o assunto é a morte. Todos tratam-na com a mesma naturalidade e até banalidade, como um mero detalhe, um fato qualquer, a ser lamentado apenas num chat, frio e distante, durante uma reunião que não pode parar.
Possivelmente soasse absurdo, inaceitável, um acinte, se algum conselheiro ou conselheira sugerisse parar/adiar a reunião por conta da morte, por covid, do sobrinho de um dos/as conselheiros/as. Acho que ninguém teria sensibilidade para admitir um coisa como essa.
Mas acho também que esse é o ponto. A universidade não consegue parar pra pensar o drama que vive, a crise civilizatória que estamos atravessando, as saídas que ela pode oferecer, distintas de aulas, e que a sociedade tanto precisa. Há estudantes pedindo emprestado a sombra de marquises e também a internet de escritórios e lojas, para conseguirem assistir aulas(posto que não tem internet em casa). Mesmo assim, o calendário para 2021 foi aprovado, com a segunda onda da covid a passos largos e com a certeza de que as aulas continuarão pela internet.
Para quem ousa discutir ou debater criticamente essa tragédia, há um argumento contrário bastante usado ultimamente na universidade, que é o seguinte: “a gente faz o quê, cruza os braços e espera a vacina chegar?”. Repare que essa frase é igual as ditas pelo presidente da república, sobre a mesma pandemia: “ vamos todos morrer um dia”, “ e a gente faz o quê, para a economia?”, “ não sou coveiro, tá!”
Sinceramente, o que espero é que a professora Lisiane e sua família, bem como todas os outros colegas de trabalho, que andam perdendo tantas pessoas queridas, encontrem conforto nesse momento, que consigam superar tão dura perda e que tenham a certeza de poder contar conosco, seus companheiros e companheiras de trabalho, nessa hora tão difícil.
Por fim, espero que a gente consiga parar. Que a gente pare o desfile, feche a loja e vele o corpo do trabalhador que se foi. Espero que a gente pare a reunião sem sentido, adie o máximo possível, dê uma trégua no pragmatismo estúpido e doentio, e celebre a vida e a emancipação humanas.
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de Matemática da UFMT
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Por Aldi Nestor de Souza*
O caso que ocorreu com aquela menina de 10 anos, grávida do tio, abusada sexualmente desde os 6, é estarrecedor, inominável, na verdade. Não disponho sequer de meios para descrevê-lo. Só consigo sentir. E como se não bastasse o dilaceramento todo na vida anterior da criança, na hora do aborto a que foi submetida, no tormento das 17 horas de cirurgia, consentido pela justiça, mais violência lhe foi imposta. Um festival, uma feira livre de acusações e ameaças aos médicos e a ela própria, foi montado e levado a cabo bem na frente do hospital.
Lá dentro, a menina tendo seu corpo ainda mais mutilado, suas entranhas ainda mais fustigadas, um feto sendo arrancado de sua frágil, indefesa e ainda, para ela, incompreensível estrutura física, suas dores ainda mais aprofundadas, sua vida completamente entregue ao limbo da existência. Lá fora, o fundamentalismo religioso aos berros, empunhando uma bandeira de vida absolutamente conivente com o martírio pelo qual a menina teve que passar. Um fundamentalismo cúmplice do e que não permite sequer discutir o modelo de família do qual a menina é oriunda e vítima.
E tudo ganhou ainda mais contornos e pavor quando o médico, diretor da unidade hospitalar onde se deu o procedimento cirúrgico, declarou que trabalha naquele hospital, que fica num bairro de Recife, desde 1996, e que neste período não houve uma semana sem que um caso semelhante ao da menina chegasse àquele hospital. Aí é só multiplicar aquele bairro pelos bairros de Recife, pelos bairros das capitais brasileiras, das grandes cidades, das periferias, das ruas, de todo o país para nos certificarmos, com a mais absoluta precisão, de que convivemos com um massacre intermitente.
Essa menina conseguiu chegar a um hospital. Mas tem aquelas milhares que não tem a menor chance de o fazerem e que são obrigadas a se submeter aos chás, às clínicas clandestinas, aos socos, pancadas e pontapés dos seus algozes mais próximos.
A impressão é a de que, no Brasil, a qualquer hora do dia ou da noite, em casa, no trabalho, na escola, na universidade, na rua, uma mulher, de qualquer idade, está sempre no corredor da morte, na fila do abatedouro, na mira de alguma arma, prestes a ser dilacerada. E apenas por ser mulher.
Que sociedade é essa? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie?
Bem, na frente do hospital em Recife teve resistência. Organizou-se um não. O fundamentalismo religioso foi enfrentado ali mesmo na calçada. Teve luta, quando ceder parecia fácil.
E aqui farei três breves digressões.
Primeira: 110 mil pessoas, oficialmente, sucumbiram diante da covid -19 até agora. Há estudos afirmando que completaremos 200 mil antes de outubro. Enquanto isso, as portas do comércio seguem cada vez mais escancaradas, os horários cada vez mais esticados, as ruas cada vez mais cheias, e o chefe maior do governo, que zomba das mortes, que brinca com a doença e que tripudia da dor dos parentes em luto, sobe nas pesquisas de avaliação de seu governo.
Que sociedade é essa que outorga, ao seu chefe maior, o direito a tamanho escárnio com a vida? Que relações são essas que impõem tanto silêncio e calmaria diante desse genocídio? Os trabalhadores da saúde foram à frente da sede do governo empunhar suas cruzes e fazer suas denúncias. Os trabalhadores dos aplicativos, os dos correios, os do metrô de São Paulo, os dos transportes coletivos de Juiz de Fora já disseram não. E fazem resistência, fazem greve. 57% dos estudantes brasileiros avaliam o presidente da república como ruim ou péssimo. Portanto, há luta, mesmo quando parece tão fácil ceder.
Segunda: enquanto essa garota enfrenta seu suplício, o governador de Minas Gerais autorizou um massacre contra 450 famílias, acampadas há vinte anos numa fazenda que faliu e cujo dono não pagou os direitos trabalhistas a mais de dois mil trabalhadores. A polícia e seus canhões foram mandados até o local e principiaram a demolição e a expulsão. Destruíram uma escola, puseram fogo no assentamento, empunharam as armas, rumaram a tropa de choque e os blindados. E tudo isso em plena pandemia, quando qualquer ordem de despejo deveria ser crime. A resistência, claro, foi inevitável. Trabalhadores e trabalhadoras, crianças, velhos, velhas não tinham outra alternativa a não ser empunhar enxadas e bandeiras e enfrentar as metralhadoras, os fuzis, os cassetetes, todo o aparato bélico do governador. Lutaram, quando ceder parecia tão óbvio.
Para onde iriam ou vão essas 450 famílias? E dos mais de 20 anos de plantio, de colheita, de luta, de solidariedade, o que iria ou irá ser feito? Que país é esse que permite essa violência, essa catástrofe com o seu povo? Que relações são essas que produzem e naturalizam a barbárie da exclusão e da desigualdade social? Que relações são essas que criminalizam quem luta por reforma agrária, por direitos humanos, por um lugar pra viver e trabalhar? A luta, quando é fácil ceder, dirá a resposta.
Terceira: as trabalhadoras da limpeza da UFMT ainda não receberam, e não sabem se vão receber, o salário do mês de Junho. E já estamos em Agosto. Sem contar que, de Junho pra agora, houve uma troca da empresa terceirizada e elas tiveram que conviver com o suplício de serem demitidas, com a incerteza de conseguir um novo emprego e com a certeza, como de fato aconteceu com algumas, de não serem contratadas pelo novo patrão. São pessoas que ganham um salário mínimo, que convivem com as mais profundas privações de direitos, que moram longe, que pagam aluguel, que são invisíveis, que ninguém sabe o nome, que limpam as privadas da universidade, que mal sabem ler e assinar o nome. Aquelas com mais de sessenta anos foram orientadas a ir pra casa em Março, por conta da pandemia e por serem do grupo de risco. Foram, mas logo em seguida foram demitidas com a alegação de serem velhas demais e que por isso a universidade as descartava.
Que universidade é essa? Que tipo de conhecimento e de profissionais podem emergir de um lugar como esse? A serviço de quem estão essa casa grande e sua senzala? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie bem do lado das pessoas que mais estudaram e que são as mais bem tituladas da sociedade?
Ano passado, mesmo sem ter estudo, mesmo sem ter nenhuma organização sindical que as proteja, essas mulheres reagiram, cruzaram os braços, descansaram as vassouras, fecharam a universidade e exigiram o pagamento de seus salários. Lutaram bravamente numa situação em que ceder não era apenas fácil, era a palavra de ordem.
O Brasil é o resultado de um massacre, diz Darcy Ribeiro. E foi forjado à base de moinhos de gastar gente. Gente tratada como sacos de carvão. Gasta-se um saco, imediatamente põe-se outro no lugar, sem qualquer pudor ou cerimônia, para queimar e alimentar as relações que impõem essa barbárie e dizimam, particularmente, o povo mais vulnerável.
Florestan Fernandes diz que a burguesia brasileira é demente. No sentido que a mesma já nasceu subserviente e conivente, com interesses que habitam o outro lado do mar, e se mantém assim até hoje. Por outro lado, essa mesma burguesia é autoritária, violenta, sempre pronta e disposta a usar a força e submeter o povo brasileiro às mais cruéis agonias e atrocidades.
Como é que essa menina, depois de tudo isso, vai voltar a pensar em algum normal? O que é o corona vírus para quem foi estuprada desde a mais tenra infância? Como é que ela vai voltar a falar com o pai? Com os tios? Com os irmãos? Com os amigos? O que é família pra essa menina? Como é que ela vai voltar à escola? Como é que ela vai sair na rua? Que dor é essa que essa menina sentiu?
Como é que aquelas 450 famílias, aquele assentamento, aquela escola, aquela plantação vão se refazer agora? Que armas estão apontadas pra elas nesse momento?
Como é que as trabalhadoras da limpeza da UFMT vão pagar as contas de junho? E que planos elas tem pro futuro? Que cursos pretendem fazer? Cursos? Que carreira pretendem ter? Carreira? O que é o Brasil para elas? O que é a UFMT para elas?
Arrisco-me a dizer que a violência dos três casos é a mesma. É a violência fruto das relações que enxergam e tratam as pessoas apenas como mercadorias, como objetos, desprovidas portanto de quaisquer humanidade, sentimento, poesia, sonhos, planos, alegria, dignidade, vontade, prazer, arte.
Superar essas relações, caminhar na direção de alguma emancipação humana, lutar quando é fácil ceder, é o que nos resta, como trabalhadores e trabalhadoras, a fazer. Não temos outra alternativa. E talvez, me arriscando num passo bem concreto, é urgente apelarmos pra nossa sensibilidade, pra nossa consciência e pra nossa convicção de que essas causas, essas dores, essas violências, como as acima citadas, são indiscutivelmente nossas, são feridas abertas em nós.
E quem somos nós? Somos, dentro da sociedade brasileira, aquela parte não demente, no dizer de Florestan, somos aquela parcela para a qual só resta a alternativa da luta organizada e que tem a obrigação histórica, como diz a canção, de:
Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei,
é minha questão
Virar este mundo,
cravar este chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
Amanhã se este chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu
Delirar e morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT-Cuiabá
Diretor geral da ADUFMAT
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PROFESSORES, ALUNOS E TÉCNICOS ADMINISTRATIVOS ASSUMIRÃO TAMBÉM OS CUSTOS ECONÔMICOS DA FLEXIBILIZAÇÃO - Aldi Nestor de Souza
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Por Aldi Nestor de Souza*
A medida, do ponto de vista econômico, parece muito atraente para o governo federal. E nem estou falando do lobby das poderosas companhias telefônicas que vendem acesso à internet, nem das que vendem pílulas educacionais para a EAD. Falo de algo bem caseiro: da entrega voluntária de mais valia. É que professores, técnicos administrativos e alunos(aqueles que conseguirem acesso) bancarão do próprio bolso as contas da flexibilização: pagarão a internet, a energia elétrica, a água, usarão seus próprios computadores e farão a manutenção destes, usarão, se tiverem, o próprio quartinho de casa, usarão seus próprios banheiros, gastarão sua própria água. (considere e faça as contas de 8 horas de trabalho por dia, usando a luz, o ventilador ou o ar condicionado, a internet, a água de beber, etc, tudo da sua própria casa).
São professores, técnicos administrativos e alunos, assim como os entregadores de aplicativos, os motoristas de Uber, os infoproletários em geral, no dizer de Ricardo Antunes em Privilégio da Servidão, pagando pelos custos do trabalho.
Só pra se ter uma ideia, segundo reportagem do circuito MT, de 17/07/2019, a conta de luz da UFMT, em 2019, foi de aproximadamente 21 milhões, o que dá então quase dois milhões por mês. Agora imagine a conta de luz de todas as universidades públicas do país(A conta anual de luz da UFRJ em 2017 foi 53 milhões), de todas as escolas sendo repassadas para os docentes ,os alunos e os técnicos administrativos de cada instituição.
A universidade vai economizar também e deixar tudo por conta dos professores, os gastos com pinceis, gizes, apagadores, xerox, impressões, papel, material de expediente em geral, limpeza e manutenção das salas de aula.
A universidade também economizará com restaurante universitário e os estudantes pobres que dependiam decisivamente dele pra se alimentar, vão ter que arcar também com esse gasto.
Eu falei, mais acima, em 8 horas diárias de trabalho, mas a flexibilização, o trabalho remoto em geral, são apenas variações do trabalho intermitente, nos mesmos moldes do que estabeleceu a contra reforma trabalhista de 2017. Não há hora pra começar, tampouco pra acabar. O martelar do smartphone vai transformar o dia, a noite, a casa, a família, o lazer, a hora de dormir, numa insaciável e indomesticável sala de aula. Além de aumentar a carga horária, por óbvio aumentará também o estresse, a ansiedade e os problemas de saúde mais diversos.
Só a título de ilustração desse, assim como a covid-19, exponencial adoecimento, na Bahia, segundo pesquisa feita pela Nova Escola e veiculada pelo jornal Diário 24 horas, daquele estado, de 11\07\2020, 50% dos professores estão com problemas de saúde mental por causa do ensino remoto. Com o título “Preciso parar pra vomitar”: professores revelam bastidores da educação à distância, o jornal exibiu matéria que ilustra, a partir de vários depoimentos de professores, os dramas mais inacreditáveis de um processo dito de ensino e aprendizagem e, mais geralmente, educacional.
O governo federal, por sua vez, responde com desdém aos servidores públicos, em particular aos professores das universidades federais, abusivamente chamados de “parasitas” e de “”zebras gordas, ameaça colocar uma ‘’ granada em seus bolsos’’ e atenta com medidas provisórias e projetos de Lei que planejam cortes de salários, fim de concursos públicos, fim de estabilidade, fim de progressões e até com extinção da carreira.
As universidades tem muito o que fazer nesse momento. Muito mais do que fazem usualmente nos seus semestres “normais”. Porque a sociedade está imersa numa crise sanitária devastadora e ainda sem previsão de acabar; as universidades tem um vasto acúmulo de conhecimento, nas mais diversas áreas, tem laboratórios, tem estruturas de pesquisas, tem pesquisadores, tem professores, tem técnicos administrativos e tem estudantes. Portanto, tem uma estrutura gigantesca da qual a sociedade não pode abrir mão para fazer o enfrentamento ao problema. E é disso que a sociedade mais precisa nesse momento.
Só a título de exemplo. O ginásio de esportes pode virar um hospital de campanha. As salas de aula podem se transformar em abrigo pra moradores de rua e pra imigrantes que perambulam em busca de um lugar pra dormir. Voluntariamente, cada faculdade, cada instituto, junto com seus professores, estudantes e técnicos administrativos, podem , a partir de sua área de conhecimento, montar um plano de enfrentamento à covid. A administração da universidade deve dispor de todos os meios para isso e exigir do governo federal os recursos para bancar tudo isso. Salvar a vida das pessoas é a palavra de ordem nesse momento e uma forma da universidade sair socialmente referenciada dessa tragédia.
A sociedade não está interessada em respostas do tipo gravar uma vídeo aula, de um conteúdo que era estudado antes da pandemia, portanto, requentado e com chances de não fazer nenhum sentido no momento, e mandar pra um aluno que a universidade sequer sabe se terá acesso. É importante notar que ninguém sabe que profissões vão sobreviver à pandemia. Ninguém sabe, ao menos , se a vida nas cidades ainda será viável. Uma prova disso é o vai e vem das grandes metrópoles do mundo que vez ou outra retornam com as restrições e quarentenas por conta de novas ondas do vírus.
A sociedade está exigindo uma resposta, pelo menos, inteligente. Ela tampouco está interessada em saber de professores que assumem os custos do trabalho pra gravar essas vídeo aulas. Pagar os custos do trabalho, precarizar-se, os uberizados dos aplicativos lá fora já fazem, não precisa de uma estrutura como uma universidade pública pra ensinar a fazer isso.
É preciso entender que essas aulas remotas na pandemia, seja qual for o meio, atrapalham a sociedade, pois fingem uma normalidade que obviamente não existe e portanto apenas ajudam a legitimar os governantes que minimizam a pandemia, praticam o negacionismo, ridicularizam com a ciência, expõem a sociedade ao vírus, aprofundam e normalizam o genocídio e portanto dificultam as chances de termos uma solução para o problema.
É preciso parar, pensar e usar a extraordinária estrutura que a sociedade legou às universidades par que elas, universidades, apontem enfrentamentos concretos e científicos ao problema.
Se os professores não conseguem entender isso e se submetem a gravar vídeo aulas para iludir os alunos, a si mesmos e pensar que com isso enganam a sociedade, aí as universidades se transformam , de fato, num lugar bastante duvidoso e com, justificável, pouquíssimo reconhecimento da sociedade.
*Aldi Nestor de Souza
Departamento de Matemática-ufmt-Cuiabá
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Grupo de professores e técnicos administrativos começa a discutir TERCEIRIZAÇÃO e PRECARIZAÇÃO do trabalho na UFMT - Aldi Nestor de Souza
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A intenção do grupo é encarar esses temas como um problema de toda a comunidade acadêmica, e não apenas da administração, promover um amplo debate, estudar com profundidade a questão e propor diretrizes gerais a serem apresentadas no âmbito dos órgãos colegiados responsáveis.
A motivação para a formação desse grupo veio da evidente transformação por que passa o mundo do trabalho na atualidade e também devido a diversos movimentos que alguns dos integrantes do grupo mantem ou mantiveram, há algum tempo, com os\as trabalhadoras terceirizados\as da instituição, como por exemplo:
- curso de alfabetização para terceirizadas da limpeza em 2019;
- os constantes atrasos de pagamento aos trabalhadores e às trabalhadoras terceirizadas;
- episódio do fechamento das guaritas da ufmt em 2019 e paralização dos trabalhos no campus por falta de salários pros\as terceirizados\as;
- as demissões de vários trabalhadores da limpeza em plena pandemia;
- A constitucionalidade da lei da terceirização(que expande a terceirização para todas as atividades , inclusive as atividades fim) que foi estabelecida pelo STF em 16\06\2020.
- O trabalho em geral na instituição UFMT diante da e após a pandemia, frente às modalidades, já em voga no momento, tais como a virtualização do trabalho;
- Os direitos dos trabalhadores numa realidade de individualização imposta pela virtualização do trabalho.
Pela internet, às 14 horas da última quinta feira, a reunião contou com a presença das seguintes pessoas:
Aldi Nestor de Souza-professor dep. matemática UFMT- Cuiabá
Djeison Beneti-professor dep matemática UFMT-Cuiabá
Dorival Gonçalves -professor dep engenharia elétrica UFMT-Cuiabá
Elvis Lira- coordenador do curso de graduação em Física- UFMT-Cuiabá
Gerdine Sanson- professora do Instituto de Ciências da Saúde UFMT-SINOP
Graziela Borges – professora do curso de química- ICET-Araguaia
Evando Carlos Moreira - diretor Faculdade de Educação Física- UFMT- Cuiabá
Luzia Melo - Técnica administrativa-Faculdade de Medicina-UFMT- Cuiabá
Marilin Castro – Técnica administrativa HOVET-UFMT-CUIABÀ
Reinaldo de Marchi- chefe do departamento de Matemática UFMT- Cuiabá
Rosa lúcia Rocha- professora Faculdade de enfermagem UFMT-CUIABá
Vinícius Santos - professor dep matemática Cuiabá
O grupo é aberto, pretende se reunir toda quinta feira, às 14:00h, a princípio , enquanto presencialmente não for possível, pelo google meet.
Encaminhamentos da última reunião:
1- olhar os contratos de trabalho terceirizado vigentes na UFMT, um a um, e ver suas particularidades;
2- conhecer os instrumentos legais que amparam o trabalho terceirizado;
3- ampliar o debate, chamar mais gente pra discutir, estudar e compreender melhor o problema; convocar estudantes;
4- aprofundar o debate sobre contratos via fundação UNISELVA;
5- pressionar para que o CONSUNI assuma a responsabilidade de pautar, discutir e assumir esse problema da terceirização.
Toda a comunidade acadêmica está convidada a fazer parte do grupo, contribuir no debate e para participar basta uma mensagem pro emeio O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. ou pro telefone celular.
FLORES DOS ANOS 80 - Aldi Nestor de Souza
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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Por Aldi Nestor de Souza*
Os cordões umbilicais eram tratados com fumo de rolo esfarinhado. Não havia luz elétrica. Carro era aqui acolá, de passagem, na carroceria de um caminhão. As letras eram basicamente sagradas e distantes. As mãos eram, por óbvio, calejadas. As notícias graúdas, de longe, das guerras, das pestes, andavam em cordéis e chegavam muito tempo depois. O sol determinava as horas. A lua ajudava no plantio. A chuva era prevista pelas pedras de sal postas no telhado. A ciência era basicamente experiência e tradição. A simbiose com a natureza era uma obrigação. Ainda se mantinha relação direta com os quatro elementos. O mundo governado pelas mercadorias parecia algo muito distante e incompreensível.
Ela, que nunca tinha arredado o pé dali, sabia transformar uma semente de algodão numa blusa, posto que dominava a arte do plantio, da colheita, do fiar, do tecer, do costurar. E tudo produzido naquelas rocas, naqueles fusos, naqueles teares rudimentares, improváveis, inacreditáveis. Naquelas máquinas de costurar a sobrevivência. Naqueles bastidores de bordar o dia a dia. Naquelas tardes sem tamanho.
Ela, que do plantio à xícara, também sabia dar todos os termos ao café; que da casca dos troncos dos juazeiros sabia fazer xampu e creme dental; que sabia fazer sabão e tingir roupas e tecidos com lama; que sabia montar num cavalo, meter-se no meio da violência das juremas e ir dar conta de uma rês fugidia; que sabia tirar leite e transformá-lo no mais delicioso dos queijos; que sabia extrair fogo do choque de pedras. Ela que achava ofensivo e incompreensível haver lugares onde as pessoas eram obrigadas a comprar água.
Foi inevitável pensar nela, e naquele mundo, quando, por esses dias, depois de mais de um mês convivendo com as consequências do vírus, com as mortes batendo recordes, vi o tilintar dos governantes e uma frota de aviões decolarem rumo ao outro lado do planeta, à China, em busca de uma compra de máscaras. Comprar máscaras na China? Certamente isso seria um espanto grande para ela. Talvez maior do que a esquisitice de se comprar água.
Que máscaras são essas? Do que são feitas? Por acaso é de algum derivado de petróleo? É de algodão? De algum outro tecido? Pensei nela, que parecia saber de tudo, mas pensei também no desfile de tecnologias, as mais avançadas possíveis, que inundam o nosso dia a dia e que estão prestes a nos roubar todos os movimentos, toda nossa memória, todo nosso saber. Afinal, que modo de vida é esse que prescinde de gente como ela, saberes como o dela e não dar conta de produzir máscaras? E para onde estamos indo? A quem serve tudo isso que sabemos e produzimos?
Pensei nessa forma de vida a que somos submetidos, amontoados em cidades, automáticos, alheios a tudo a nossa volta, sem saber nada do que produzimos, nada da natureza. Nessa ciência controlada nas mãos de muito poucos e submetida à tarefa urgente de virar tecnologia e, logo, uma mercadoria. Nessa poderosa engrenagem que, mesmo depois de um mês de calamidade, não nos permitiu bolar uma máscara.
Por força da pandemia, essa engrenagem enlouquecedora parou por uns dias e já deu pra sentir o ar mais limpo; o céu mais vistoso; os animais em passeio, golfinhos nos canais famosos, leões descansando nas rodovias, faisões, pebas e tatus à vontade nos centros urbanos; o petróleo com preço negativo.
Pensei no dia em que ela, já com a idade em alta, passou a viver na cidade, à força, arrastada de seu canto pela ação de um projeto de desenvolvimento que tomou-lhe a terra. Pensei, particularmente, na hora em que, com os olhos embaçados, olhando para aquele amontoado de casas enfileiradas, para aquele monte de gente indo e vindo, ela disse: não há nada que eu saiba fazer nesse lugar.
O que ainda resta de comunidades como a dela, dos quilombos, dos povos tradicionais, vive sob ameaça constante de morte, de desaparecer, na iminência de perder suas terras, de perder suas culturas, de dar lugar ao progresso, de ceder ao fetiche da mercadoria.
Ela, que por acaso era mina mãe, na verdade representava todos daquele mundo. Mundo que viu os anos de 1980 nascerem e darem suas flores. Mundo que, com seus modos, com seu saber, com suas tradições, carregou a história da humanidade até ontem. O saber que vivia nela não era uma mercadoria, nem servia a nenhuma individualidade, era um saber cultural, de todos e compartilhá-lo era um ato de sobrevivência.
O mundo que não da conta de fazer uma máscara, que mata o saber das pessoas, que as transforma em vultos, em meras mercadorias, que alega não ter víveres de reserva pra aguentar um mês, acabou de nascer, ainda é um bebê em choro, ainda não sabe como tratar seu próprio cordão umbilical, ainda está em busca de algum fumo que lhe vede a sangria.
A promessa das flores dos anos 80 era a de, com seu cheiro, amenizar esse choro. Mas o que fizeram foi aprofundar o corte.
*Aldi Nestor de Souza é professor de matemática e pai de três.
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Por Aldi Nestor de Souza*
E mesmo depois de termos inventado o pau de selfie, as tomadas de três pinos, as músicas de Maiara e Maraísa, os espremedores de alho, descoberto um caminhozinho pra ir à lua, a velocidade da luz e uma forma de bisbilhotar o mundo quântico, estamos diante de um problema invisível, bem na palma de nossas mãos e que nos impõe alguns dilemas. Por exemplo: fazer ou não fazer a barba? O vírus vai mesmo mudar o mundo e estabelecer uma nova consciência, uma nova organização da sociedade? Como a Michele faz pra aguentar?
Por enquanto, mesmo com todo esse arsenal de sofisticadas e inacreditáveis tecnologias, não há remédio, não há chá, não há vacina, não há prazo. Lavar-se com água e sabão e ficar em casa, dizem os médicos, é a coisa mais indicada e avançada a se fazer. E isso vale tanto pro grande empresário quanto para os pés de alface.
Ninguém faz ideia de como será o amanhã. Nem a cigana.
No que diz respeito as barbas, ainda não existem comprovações científicas e especialistas do mundo inteiro encontram-se divididos. Tirar ou não tirar. Há quem defenda que essa touceira de cabelo sirva de mais um abrigo pro vírus, além de ser um motivo pra pessoa ficar passando as mãos, alisando nas proximidades da boca e do nariz. Por outro lado, há os que dizem que apenas médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde, por comodidade de encaixe das máscaras, precisam se preocupar com a barba. A OMS ainda não se pronunciou oficialmente sobre o assunto.
Enquanto dura a indefinição científica, empresários aproveitaram a oportunidade, eles sempre aproveitam, e lançaram um higienizador de barba. É um spray com álcool em gel que você borrifa entre os pelos e garante, pelo menos em parte, a limpeza dos fios. Mas só o ventilar das pesquisas científicas é que poderá encerrar o assunto.
O vírus sucumbe os mercados, ameaça a lógica do sistema de produção vigente, joga por terra as verdades das grandes corporações, do neoliberalismo, do mercado do peixe, do Caldo de Cana da Noca, da barbearia do Antenor. O vírus joga luz sobre os serviços públicos, sobre a ciência, sobre a pesquisa, eleva o SUS à categoria de exemplo pro mundo, mostra o fracasso e o flagelo da saúde mercadoria.
Há quem garanta que o mundo, como o conhecíamos há três semanas atrás, não seja mais possível. As formas de trabalho, de estudo, as relações pessoais e sociais, tudo está em aberto. É possível, como disse o poeta, que cada vez mais, “ nossa casa seja o nosso mundo”.
É possível que muitas profissões modernas caiam na mais absoluta obsolescência. É possível que não tenhamos a quem mostrar nossas proezas, nosso curriculum lates repleto de títulos, artigos e farofa; é possível que não tenhamos a quem mostrar nossa barriga trincada, nosso muque e nossa felicidade; É possível que uma disputa por alimentos e água nos leve às mais primitivas e últimas consequências; É possível que os trabalhadores se organizem, reflitam sobre sua condição, adotem a solidariedade como valor inestimável e tomem a direção de suas vidas. É possível que por uns bons anos sejam proibidas grande aglomerações. É possível que a vida nas cidades se torne impraticável, que o campo seja a boa nova, que a terra seja obrigada a ser dividida, que os trabalhadores imponham a reforma agrária.
Porque, convenhamos, mesmo antes do vírus, e com as mais modernas tecnologias desfilando por aí, a vida, pra imensa maioria da humanidade, não ia lá essa coca cola toda, as economias e o mundo do trabalho já caminhavam cambaleando e pareciam prestes a ruir. Os trabalhadores não iam mesmo aguentar por muito tempo, como disse outro poeta, “o privilégio da servidão”, uma vida miserável, de trabalho precário, sem nenhum direito, com jornadas de 14 horas por um salário incerto e de fome. Essa receita da economia neoliberal, mais dia menos dia, ia mesmo pros quintos das cucuias. E isso quem garante é o motor da história que diz: cada ação provoca uma ação em sentido contrário.
Por último, e não menos importante, como a Michele aguenta? Porque à distância, em vídeo, e só por uns minutinhos, dá a repulsa que dá, a gente fica pra morrer, imagine morar junto. Imagine dormir junto. Imagine ficar nu junto. Como será que ela faz pra dormir? E acordar? Será que ele ronca, fala dormindo, é sonâmbulo? Como será ter que suportar um pum dele no meio da noite, rodeada de paredes de palácio? Como será que eles brigam? Como será olhar pras cuecas dele, aquelas com freadas de bicicleta no fundo?
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática-UFMT-Cuiabá
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COACHING QUÂNTICO - Aldi Nestor de Souza
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Por Aldi Nestor de Souza*
Meses atrás aconteceu a seguinte palestra na UFMT
"Gestão de si: como afeto o mundo a minha volta quando cuido de mim."
Esse título, que nunca mais consegui esquecer, traz, a meu ver, duas palavras que são as mais graves doenças do nosso tempo.
Gestão e Mim.
E não são, na minha leitura, apenas doenças graves, são doenças que geram outras, igualmente graves, como depressão, ansiedade e empreendedorismo.
Que diabos é o MIM na fila do pão? quem é MIM? que importância tem o MIM ? Pra que serve o MIM? Que faz o MIM ? Só uma sociedade gravemente enferma perde tempo com o MIM e dá a ele uma importância que, evidentemente, não tem. MIM e nada é exatamente a mesma coisa. Dá bola pro MIM só serve pra deixar um bando de MINS com cara de quem engoliu um vereador. E, portanto, suscetível às mais corriqueiras doenças que acometem esses ansiolíticos dias.
E Gestão? Pra começar, é uma palavra completamente desnecessária. Todo mundo consegue viver sem ela numa boa. Em qualquer que seja a repartição, tem um diretor, um presidente, essas coisas. Mas gestor não existe. Gestor é um misto de nada com coisa nenhuma que só serve pra fazer o sujeito pensar que é um MIM. Além disso, Essa palavra só passou a ser usada, assim como gripe, bem recentemente, no bojo do desenvolvimento neoliberal, que pretende transformar a coletividade num bando de MINS, sisudos, isolados, doentes e "gestores de si".
A tal palestra foi proferida por uma Coach. E aí, desde esse dia, todo o tempo livre que tenho uso pra tentar descobrir o que faz um(a) coach.
Nesses recessos vadios de fim de ano, portanto, tô metido nas leituras do mundo dos coaches. Descobri hoje, mesmo sem saber ainda o que faz um coach, que existe "coach quântico" e que significa o seguinte.
"O Coaching Quântico é uma imersão em busca de você mesma(o). É uma jornada para despertar o seu potencial infinito de se realizar e obter os melhores resultados na sua Vida Pessoal e Profissional."
Uma outra definição é a seguinte:
"COACHING QUÂNTICO -
Uma Imersão para Despertar seu Potencial Evolutivo e Girar a Chave da sua Vida!"
Uma terceira definição flerta com a física quântica e um tremendo bafafá com os físicos pode ser conferido na Internet
"Por definição, coaching é uma metodologia que busca elevar a performance de um indivíduo ou grupo, atingindo os objetivos e resolvendo problemas. Já quântico é um termo que pertence a uma teoria que acredita que todos os seres humanos são formados por energia e estão conectados por meio dela. Dessa forma, o coaching quântico tem como objetivo o alinhamento energético. "
"Agora pare, pegue no bumbum
agora desce, pegue no compasso
pegue no bumbum
pegue no compasso
pegue no bumbum
pegue no compasso." É o tchan.
Descobri que vai haver um encontro em Recife, em Janeiro de 2019, sobre coaching quântico e que, dentre outras coisas, vai ensinar o seguinte:
- A voz do mentiroso:
Como identificar a voz do mentiroso que opera dentro de você e o desvia do seu propósito e de ter uma vidafeliz e abundante?
- Libertação do mentiroso:
Como se libertar do mentiroso?
- Como se transformar num Ímã:
Como atrair a abundância e saúde para a sua vida, qualificar seu relacionamento atual ou atrair um novo relacionamento, um novo emprego, uma nova viagem para um novo lugar, ou uma incrível viagem para dentro de você?
Então: O que esperar de um MIM quântico, empreendedor e GESTOR de si mesmo, além do aquecimento da indústria dos tarjas pretas, das armas, da violência, da intolerância, do terrorismo e do fascismo?
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de Matemática da UFMT/Cuiabá
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ODE À PREGUIÇA - Aldi Nestor de Souza
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Por Aldi Nestor de Souza*
Eu acho muito triste uma pessoa que não tem preguiça. Depois da preguiça é de novo a preguiça a coisa que mais admiro nas pessoas. Disparado! A preguiça tem um charme e uma beleza sem iguais. Ela trata com descaso essa correria que nos flagela e nos reduz a pó. Ela zomba da pressa, da agonia, dos prazos, dos relatórios, dos objetivos, dos planejamentos. Ela ignora os currículos obesos. Um preguiçoso, certamente, é menos explorado.
Toda preguiça é revolucionária. Pode olhar! Uma pessoa preguiçosa jamais alcança metas, que não seja a de deixar pra depois e dormir. Jamais usa a terrível expressão "manter o foco". Uma pessoa preguiçosa, que se preza, nunca na vida fará um curso de coaching. E jamais cairá na conversinha mole de virar patrão de si mesmo. Eu hein???
Uma pessoa preguiçosa pensa mais, dado que fica mais tempo sem fazer nada e, portanto, tem muito mais chance de ter ideias e mudar o mundo. Uma pessoa produtiva é uma pessoa morta, fadada ao fracasso de se parecer com uma máquina. Toda pessoa produtiva tem cara de boba. Aliás, é boba. Imagine ser a pessoa que mais vendeu no mês? Ou, por outra, imagine ser a pessoa que mais produz artigos num departamento?
Uma pessoa preguiçosa chega atrasada e aqui eu lembro de um saudoso amigo, professor Gilmar Rodrigues, que dizia: "se você não é capaz nem de chegar atrasado, como pensa em mudar o mundo? Que revolução você planeja fazer? Que sistema você pensa em alterar?"
Lembro aqui também de minha filha mais nova, que às vezes me liga dizendo: " pai, tô com uma preguiça tão grande que só falta não caber no corpo. Vou aproveitar e não fazer nada hoje." Nessas horas, cheio de felicidade e de orgulho, penso: "Poxa, ensinei alguma coisa nessa vida, valeu a pena ser pai".
Acho que foi o poeta Mário Quintana que disse: “A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda.”
Uma pessoa preguiçosa vive mais, e para isso não faltam exemplos. Um bem conhecido é o do cantor Dorival Caymmi que, ali na casa dos 80, deitado numa rede, nas cercanias de uma praia baiana e tomando cerveja, brincava: "já viu algum atleta chegar aos noventa?
A preguiça é, portanto, uma das coisas mais sérias que a humanidade dispõe. E cuidar dela deveria ser uma questão básica, inclusive ensinada nas escolas, casos as escolas servissem pra alguma coisa. Escola, aliás, é uma coisa tão estranha que quando um aluno cisma de dormir numa aula, o professor fica bravo.
Precisamos salvar a preguiça que existe em nós, urgentemente, antes que seja tarde. Isso, para mim, é uma forma de salvar a humanidade. E de dar a ela a chance de entender que viver é uma coisa mais profunda do que a submissão irrefletida no mundo frenético da produção. E criar, quem sabe, o dia internacional da preguiça. Um dia pra, de verdade, não fazermos nada, apenas pensarmos no que fazemos. E já aproveito pra sugerir que esse dia seja numa quarta. Por exemplo, na segunda quarta feira de julho, que é mês fraco pra feriados.
Viva a preguiça!!
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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Por Aldi Nestor de Souza*
Aí o Jair se acorda, numa manhã de segunda feira, numa segunda feira sem muitos planos, e apenas quatro dias após o resultado da votação, e aprovação sem nenhuma surpresa, da reforma da previdência no senado. E ainda com os olhos esbugalhados, antes mesmo de beijar a Michele, de verificar o cerzido da cicatriz, de dar uma mijadinha e de escovar os dentes, pega o celular e vai direto pro twitter.
E lá encontra a seguinte notícia: sindicatos e movimentos sociais, reunidos em São Paulo aprovam a seguinte consigna: “Fora maduro!”. A primeira reação foi a de achar que ainda estava dormindo, depois entregou-se a uma gargalhada. Mas, viciado e experiente nas questões de fake news, resolve tirar a história a limpo e liga pro seu rebento que mora na terra dorificada.
- Que história é essa, meu garoto, esses comunistas acham que me enganam?
- É isso mesmo, meu pai pai, reunidos em congresso, eles aprovaram o “Fora Maduro” !
- Mas que mundo doido é esse?
- Não sei.
E aí o Jair, que não é dado em entender bem as coisas, acorda a Michele e manda ela chamar a avó dela, que sabe ler qualquer tipo de mão, para pedir uma mãozinha e explicar o que diabos está acontecendo.
“ É uma loucura que nem eu, que sou doido, estou dando conta de entender, talkey!”.
E enquanto aguarda a chegada da avó de Michele, pega o telefone e liga pros Estados Unidos:
- Alô, aqui é o Jair, eu gostaria de falar com I love You.
- Alô, aqui não tem nenhum I Love You, não.
- Como, não? Aí é da Casa Branca?
- Sim, é;
- Então, é claro que tem, pô. I Love You me disse que trabalha aí. Diga a ele que é o Jair, aquele da bandeira, que comprou o etanol de vocês, o pai do Eduardo.
O telefone é desligado do outro lado da linha.
Jair decide então ligar para o juiz Conje.
- Conje, bom dia, tá sabendo dessa história de “Fora Maduro” dos comunistas? Eles estão me copiando, isso é pauta minha. Faça já um processo! Ligue praquele seu sócio, aquele rapaz que vende power point e peça um. Ligue pra televisão, praquela que você tem conchavo e faça uma reportagem. Anda logo!
- Farei isso, sim, patrão. Pode deixar!
Enquanto isso, liga pro Guaidó:
- Alô, bom dia, hermando, aqui é o Jair! Você está sabendo de alguma coisa, de algum golpe tramado pela esquerda brasileira?
- Alô, como estas Jair?
- Estão pedindo “Fora Maduro” aqui no Brasil, pô!
- Fuera, Maduro? No compreendo!
- Ah, então vá pro raio que o parta!
- Raio? No te entiendo, Jair!
Enfim, chega a avó de Michele. E já entra contando o resultado da eleição pra o conselho tutelar.
- Você viu, meu genro-neto? Demos de lavada, ganhamos em um monte de conselhos.
- Sim, é claro que vi, passei o domingo envolvido nisso. Mas hoje não quero saber de conselho tutelar coisa nenhuma. Eu quero saber qual é a armação desses comunistas. Jogue essas cartas aí, os búzios, seja lá o que for. Por acaso eles também estão de combinação com I Love You?
- Esquenta com isso não, Jair. Ninguém vai conseguir levar isso a sério. Aquilo foi apenas uma reunião pra discutir se o coco é oco. O povo tá é com fome, sem emprego, preocupado com uma bala na cabeça, sem ter onde morar, nas esquinas, nos semáforos, pedindo esmola. Tá cheio de mendigos, de retirantes, de estrangeiros, o escambau a quatro. O povo tá fodido. Como você não liga pra isso, vá se preocupar com os milicianos, com os laranjas, com seus filhos e com esse pingo aí no seu pijama. Você tá se mijando, Jair?
*Aldi Nestor de Souza
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