IMPOSIÇÃO DO VERMELHO - Roberto Boaventura
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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Hoje, farei um artigo provocador sobre alguns dos nossos discursos fundadores, quase sempre intocáveis. Antes, peço licença a Carlos Drummond para me apropriar, mais uma vez, de versos de seu “Poema de Sete Faces”:
“Quando nasci, um anjo torto// desses que vivem na sombra// disse: vai, Carlos, ser gauche na vida”.
Claro que meu anjo não deve ter me chamado por Carlos, o que teria sido honroso; aliás, não deve ter me chamado por nada. Só pensado, pois havia, naquele momento, uma disputa familiar entre alguns nomes possíveis. Pobre anjo!
De qualquer forma, na esteira dessa condução “angelical” de uma existência, antes de outras considerações, invoco, agora, José Régio, poeta português do século passado – que diz ter nascido “...do amor que há entre Deus e o Diabo...” – para me ajudar a falar, com força poética, assim como registrou em seu “Cântico Negro”, que se alguém lhe dissesse para vir “por aqui”, não iria; que entre “ironias e cansaços”, só iria por onde seus “próprios passos” os levassem. Régio regeu sua vida!
Dessa forma, ao lado de pouquíssimos compatriotas, contrariando, pois, a quase unanimidade obtida em pesquisa sobre a bendita cor vermelha de um dos uniformes que a Seleção Brasileira de Futebol poderá (ou não) usar em 2026, digo que gostei daquele vermelho brilhante! Cor que, nesse caso, antes de tudo, deveria servir de lição para os lunáticos caçadores de comunistas. Por quê?
Primeiro: mal sabem tais caçadores que os comunistas brasileiros que ainda (r)existem já beiram os 100 anos! Via de regras, são velhinhos verdadeiramente humanos, mas, infelizmente, em extinção. Todos – que já são bem poucos – estão com dias contados. Pior: seus epígonos mais convictos, em termos teóricos e de prática social, talvez não lotem mais do que uma van. Repito: uma van. Portanto, esse é o tipo da caçada em vão; logo, ridícula. Sem lastro.
Segundo: o vermelho do tal uniforme, antes de tudo, é mera tentativa de imposição da Nike – legítima representante do ultracapitalismo seu país de origem, os EUA – à CBF. O resto é devaneio. Aos mais desavisados, os EUA ainda são a locomotiva do capitalismo planetário, e não da forma comunista, ou comunitária, de existência humana, hoje, circunscrita, quiçá, a pouquíssimas sociedades tribais, isentas, pois, da abrangência da globalização, guarda-chuva das transnacionalidades.
Logo, ainda que muita gente, tomada por um sentimento de um nacionalismo tão balofo quanto tosco, queira associar essa imposição do vermelho da Nike a uma ala política nacional, nada de concreto se pode afirmar; só especular, ou “fakear”.
Agora, fato seja dito: essa notícia – vazada por um site inglês, e que não é “fake” – é uma daquelas infelizes coincidências que, pelas circunstâncias, chegam em hora tensa e de intensas divisões políticas; por isso, inapropriada, pois pode acentuar o desvio de nossa atenção dos problemas sociais concretos, que nunca foram poucos. Ademais, sou sempre contrário a qualquer imposição estrangeira em nossas questões domésticas.
Contudo, já que eu mesmo aceitei o desvio de foco das coisas mais sérias para escrever sobre isso, penso que poderíamos aproveitar, de forma embasada, a oportunidade para reavaliar signos pátrios advindos de nossos discursos fundadores como nação. De repente, sem pretender, a Nike pode estar nos dando essa oportunidade ímpar, pois, pela cronologia de nossa história, é exatamente o vermelho, e não outra cor qualquer, que nos fez como nação conhecida na entrada do séc. XVI, já dentro da Idade Moderna.
Pois bem. De saída, adianto que o nome de um país precede à formatação de sua bandeira e de outros signos pátrios. Diante disso, é pertinente lembrar que, em termos oficiais, o primeiro nome que recebemos – conforme registros de Pero Vaz de Caminha, em sua primeira “Carta” ao Rei de Portugal, de 1º de maio de 1500 – foi o de Ilha de Santa Cruz. Depois, Terra de Vera Cruz.
Aqui, vale reforçar que, na fé cristã, a cruz – fosse a Santa, fosse a Vera – é manchada pelo sangue de Cristo crucificado, guia dos portugueses e, hoje, de muitos brasileiros. Depois desses nomes, constatado que a descoberta fora maior do que a encomenda, passamos a ser conhecidos como Brasil, motivado pela abundância da árvore pau-brasil, de cor de brasa, portanto, avermelhada, e não por termos o verde das matas, o amarelo do ouro, o azul do céu, o branco da paz ou outra coisa que se quisesse inventar.
Mais: para reforçar a cor do pau-brasil ainda se pode pôr no mesmo pote de barro, ou em um balaio entrelaçado de bambu, a cor de nossos indígenas, representados pelo vermelho. Portanto, nascemos sob o signo do vermelho, que nada tinha a ver com a futura cor de partidos políticos da esquerda mundial, que eclode sob a égide da Revolução Francesa, nos idos de 1789; tampouco tem a ver com o vermelho do Partido Comunista da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, dos idos de 1917.
Mas para consolidar essas minhas lembranças, que até poderiam servir como sugestão para reflexões e revisões acerca de itens de nossos discursos fundadores, e “já ir” (ops!!!) encerrando meu artigo, convido, com as devidas honras, o senhor Cassiano Ricardo, poeta da ala conservadora de nosso Modernismo, para me ajudar a trazer à tona aquele momento histórico da “descoberta oficial” dos portugueses, mas por meio de seu lindo poema, intitulado “Ladainha”, inserido no livro Martim Cererê, de 1928. Nele, a cor vermelha está por toda parte, com destaque, além do pau-brasil, ao raiar do sol, poetizado como o “fogo da manhã selvagem”, até a cor da “onça ruiva”. Eis o poema:
“Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome/ de Ilha de Vera Cruz./ Ilha cheia de graça/ Ilha cheia de pássaros/ Ilha cheia de luz./ Ilha verde onde havia/ mulheres morenas e nuas/ anhangás a sonhar com histórias de luas/ e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.//
Depois mudaram-lhe o nome/ pra terra de Santa Cruz./ Terra cheia de graça/ Terra cheia de pássaros/ Terra cheia de luz.//
A grande Terra girassol onde havia guerreiros de tanga e onças ruivas deitadas à sombra das árvores mosqueadas de sol.//
Mas como houvesse, em abundância,/ certa madeira cor de sangue cor de brasa/ e como o fogo da manhã selvagem/ fosse um brasido no carvão noturno da paisagem/ e como a Terra fosse de árvores vermelhas/ e se houvesse mostrado assaz gentil/ deram-lhe o nome de Brasil.//
Brasil cheio de graça/ Brasil cheio de pássaros/ Brasil cheio de luz”.
E também... cheio de problemas para serem pensados e resolvidos nos dias atuais.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Dias atrás, fui ver de novo o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, até agora, 38 vezes já premiado. Tentei observar melhor como, neste momento do império das fragmentações, um filme, cuja cronologia da narrativa está respeitada e até datada em seus momentos de avanço temporal, pode ser tão envolvente.
Como resposta, destacarei alguns pontos intrínsecos e outros extrínsecos à obra que podem estar influenciando na aceitação por parte de públicos daqui e do mundo afora.
Intrinsicamente, começo retomando o que já escrevi sobre o filme, assim que o assisti pela primeira vez. Do roteiro, a força dramatúrgica, principalmente de Fernanda Torres, literalmente, “rouba a cena”. Como nos geniais espaços em branco das páginas de “Un Coup de Dés” (Um Lance de Dados), de Mallarmé, nossa atriz atinge um nível de interpretação para a personagem Eunice Paiva em que, em diversos momentos, o silêncio e a força dos olhares falam mais alto e mais forte do que quaisquer palavras. Isso poderá, sim, lhe render o prêmio de melhor atriz.
Aliás, os “vazios” e/ou os “brancos” de sua interpretação também se estendem à sua mãe biológica, Fernanda Montenegro, que, em poucos minutos, já no epílogo, sem pronunciar uma palavra, diz tudo o que a personagem Eunice, já com o alzheimer avançado, poderia expressar: ápice das emoções de um filme emocionante por inteiro.
Mas nem só de “brancos” e “vazios” o filme se consolida. Há cenas que servem como verdadeiros quadros sígnicos, que, literalmente, “gritam” na construção da narrativa, como no interdiscurso com aquele “...Grito Parado no Ar”, peça e música de Gianfrancesco Guarnieri, ambas de 1973. Os gritos de brasileiros torturados no DOI-Codi, no Rio, são de arrepiar, pois acionam imagens de sofrimentos extremos provocados pelos métodos mais cruéis de se torturar alguém.
Igualmente forte em termos sígnicos é a presença da “água”. Agora, num diálogo discursivo com a música “Eu e a Água”, de Caetano Veloso (“...A água lava as mazelas do mundo// E lava a minha alma...”), o banho que Eunice toma após ter ficado presa por doze dias, enquanto era interrogada por agentes da ditadura, também é de uma força monumental na narrativa.
Aquele banho, além de resgatar a higiene corpórea da qual Eunice fora privada, ganha dimensão simbológica, pois “fotografa” o momento de sua tentativa de limpeza das imundícies, das injustiças, das dores, das mortes de pessoas torturadas, das mazelas de um país capturado em corpos e alma por um regime assassino. A personagem esfrega-se com tamanha força, como nunca precisara ter feito antes. Ao mesmo tempo, a água a revitaliza, revigorando-a para a luta incessante que passa a ter em busca de resposta sobre o desaparecimento de seu esposo.
Na verdade, nesse filme, a água tem força de personagem, tanto que, em outro momento, a água lava o sangue de pessoas torturadas nas celas e corredores daquele prédio sombrio que, por si, parece simbolizar uma catacumba. Aquela cena é uma das mais fortes, pois com a água está misturado o sangue de idealizadores de um país melhor, mais humano, inapelavelmente, vistos pelos ditadores como “comunistas”, “subversivos”. Todavia, em outra cena, marcas de sangue ressecado – aliás, de propósito, não lavado – foram deixadas na sala da direção do presídio para auxiliar na tortura psicológica dos interrogatórios, como o de Eunice, que não tinha as informações desejadas pelo regime autoritário.
Vale lembrar que a maioria das companheiras ignoravam muitas das ações de caráter gigantesco de seus companheiros, que, para poupá-las de consequências pavorosas que poderiam sofrer, silenciosamente, eles ajudavam a esconder compatriotas perseguidos pela ditadura. Durante o interrogatório de Eunice, o agente do regime atira seu resto de cigarro ao chão, repito, que está manchado de sangue já ressecado, e o pisa: cena igualmente chocante, carregada de significados no “não-dito”; no subentendido, é dito que, ali, muitos já foram mortos...
Enfim, o filme está repleto de signos não-verbais. A cada música da trilha sonora, p. ex., outros signos vão se superpondo, como em mosaico, cabendo ao espectador acionar seu repertório para ir preenchendo os espaços, propositalmente, deixados em branco. Na essência, essas sutilezas é que enriqueceram, no plano interno da construção fílmica, o desenrolar de “Ainda Estou Aqui”, que, também, poderá nos trazer algum troféu.
Na dimensão externa, que dialoga com o intrínseco das obras, volto a retomar reflexões que já expus em outro artigo. Antes de tudo, é bom lembrar que a arte não nasce do nada; ela tem origem num determinado lugar (espaço) e num tempo. Todavia, e, paradoxalmente, para ser elevada, ela só não pode ficar restrita ao lugar e ao tempo de nascimentos. Se ficar, pode não passar de mera crônica de circunstância ou do cotidiano, geralmente, de menor valor artístico.
Ademais, “Ainda Estou Aqui” é um grito contra o ódio de regimes e/ou políticos autoritários, que, sustentados por fake news e por discursos do ódio, estão pululando em diversos locais do mundo. Além da eleição de Trump, nos EUA, cujos reflexos já estão sendo sentidos em diversas partes, até na Alemanha, quem diria, a “Far-right politic” está, literalmente, mostrando suas garras.
No Brasil, para o desconforto, mesmo que in memoriam, de muitos dos que sustentaram a ditadura, bem como aos apequenados de alma que ainda flertam e se identificam com líderes do ódio, se Eunice, nos últimos anos de vida, perdera a memória por conta do alzheimer, hoje, cada um de nós está podendo recuperar um pouco da memória de um passado tão próximo; passado, a bem da verdade, dolorido, tantas foram as suas crueldades, como a que se abatera à família Paiva, que teve de ver, em janeiro de 1971, Rubens ser retirado de sua casa, por agentes da ditadura militar, para um “simples depoimento”, do qual nunca mais regressou.
Mas se Rubens nunca mais pode voltar da forma como desejava sua família, hoje, ele está de volta; como de regresso está Eunice. E ambos estão – por aqui – tendo um retorno retumbante, até pouco tempo não suposto. Mais: ambos – por toda parte – estão nas telas dos cinemas do mundo inteiro! Quem diria?! Ditadores que se esconderam junto com anistiados políticos estão sendo inapelavelmente desnudos em suas crueldades.
Que tudo isso nos sirva de lição; que este país não mais alimente a insanidade e a perversidade de criaturas, como Bolsonaro e seres ainda menores (!!!), renderem homenagens a tipos desprezíveis, como o condenado judicialmente coronel Brilhante Ustra, um dos mais cruéis torturadores de todos os torturadores do regime de exceção, até porque, repito o que já disse em outro artigo: BRILHANTE, de verdade, é o filme de Walter Salles. BRILHANTE é a oportunidade de ser contemporâneo de famílias BRILHANTES, como a de Eunice e Rubens Paiva, de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, que, ao se juntarem no BRILHANTE palco do mundo das artes, estão nos presenteando com o BRILHANTE sentimento de brasilidade, que vai bem além, mas muito além do ato de fixar ou fincar uma bandeira na porta de uma casa, da varanda de um apartamento, no pórtico de um comércio ou na entrada de uma porteira qualquer, de uma estrada qualquer, de uma fazenda qualquer...
Salve a democracia!
Ditadores e golpistas nunca mais.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Nas primeiras séries de vida escolar, tive aquelas clássicas aulas sobre “sinônimos” e “antônimos”. Dos primeiros, aprendi que as palavras tinham o mesmo, ou significados semelhantes, como, p. ex., “carro” e “automóvel”. Os “antônimos”, dessemelhantes, como os binômios “branco/preto” e “amigo/inimigo”.
Hoje, considero que os termos “presidente” e “bispa”, que, dentro da lógica semântica, até poderiam fazer parte dos sinônimos, posto serem substantivos que apontam para tipos de lideranças (no caso, política e religiosa) em diferentes sociedades, também podem ser antônimos! Isso depende apenas do presidente, da bispa e, acima de tudo, do contexto, tão bem estudado por Mikhail Bakhtin e seguidores.
Foi preciso a maior democracia do planeta realizar suas últimas eleições, e o mundo assistir a um conjunto ritualístico da posse de seu atual presidente, para ser escancarado um antológico antagonismo – portanto, na esteira dos “antônimos” – entre um presidente (Trump) e uma bispa (Mariann Budde). Não que, antes, religiosos já não tivessem tido embates com o “status quo” alhures. Do Brasil mesmo, dentre outros, destaco a coragem do bispo Pedro Casáldaliga, durante a ditadura militar/64. Todavia, o detalhe do momento em pauta esteve no jogo dos olhares que ambos trocaram durante um culto, quando foi pregado um sermão de doer a alma de um cristão (desde que o fosse de fato), transmitido ao vivo e em cores, com destaque à laranja. Hai capito?
Pois bem. De minha parte, avalio que o antagonismo exibido pelos dois sujeitos citados, dia 21 pp., na Catedral de Washington, pode nos servir como uma das imagens mais emblemáticas para a tentativa de compreensão deste turvado tempo, pois elas “fotografam”, num mesmo espaço (por ironia, um templo), a coexistência de dois tipos tão distintos de nossa espécie, politicamente falando: a) os providos de humanidade; b) os desprovidos de humanidade. Sempre partindo dessa oposição, infinitas singularidades nos formatam como indivíduos, desde um certo “princípio” até se sabe lá quando...
Isso posto, realço que a firmeza de Mariann para aquele embate teve de vencer seu confessado medo, até porque Trump não fala apenas por meio de palavras. Vindo de um tipo de circo midiático, onde, de saída, valem dancinhas e requebros com braços e mãos para aprisionar a atenção/audiência de uma massa idiotizada desde tenra idade, ele também se expressa por meio de um amplo gestual corpóreo, inspirado na sombria figura do Tio Sam, aquele ser de olhar amedrontador que sempre está apontando o indicador da mão direita ao seu interlocutor.
Mas, afinal, o que fez a bispa?
Com determinação, mas com o devido respeito, na condição de representante de Deus naqueles lugar e momento, ela pediu misericórdia aos imigrantes ilegais e aos LGBTQIA+, dois dos alvos políticos mais mirados pelo ódio de Trump. Alicerçando-se na Bíblia, aliás, outrora, por coincidência, ostentada pelo próprio presidente, à porta da mesma Igreja, Mariann apelou para o lado cristão de Trump.
Em vão. Assim, Mariann contrariou Mateus, 7:6, que já pedia que não se desse “o que é sagrado aos cães”, nem atirassem “pérolas aos porcos”. Trump, como que se vingando, adiantou o desmonte das políticas de inclusão e acentuou a truculência policial contra imigrantes não-legalizados.
Antes disso, o engano da bispa já se explicitara, durante o transcorrer do culto, pelas caras e bocas do presidente, como fazem crianças e adolescentes mimados, quando contrariados ou invadidos em seus segredos. A propósito, adultos infantilizados me inquietam, pois ofendem as crianças, seres graciosos, pelo menos enquanto são infantes. Pior é ver criaturas assim se elegendo para cargos políticos, pois isso significa conivência “de espelho” (In: “Sampa”/Caetano Veloso) entre eleitor e eleito.
Essa conivência tem significados políticos e sociais gravíssimos, pois o discurso e as ações de ódio têm sido alimentados por avalanches de fake news, recebidas e compartilhadas por pessoas capturadas pelas bolhas de criminosas redes sociais, que alimentam e alavancam lideranças autoritárias. Para isso, a desinformação ganha terreno inimaginável de mensuração social, pondo em risco as democracias. Hoje, já no poder ou na expectativa de tê-lo, esses agentes autoritários estão por diversas lugares, como nos EUA, Coreia do Norte (e até na do Sul!), Belarus, Rússia, Venezuela, Argentina...
No Brasil, também temos um líder assim, embora sem a menor capacidade para o gracejo de outros por aí. Quando tentou ser cômico, zombou a morte de milhares de brasileiros por covid-19, imitando pacientes intubados: desumanidade de um negacionista convicto. Seu ódio é sempre potencializado por sua visão de um mundo acorrentado ao medievo. Até para sorrir, o que lhe é raro, seus dentes estão sempre cerrados.
Enfim, sujeitos tais, da política contemporânea, são invariavelmente agentes dos extremismos, cujos berços mais recentes podem estar no fascismo e/ou no nazismo. Não à toa, Elon Musk, ministro de Trump, afrontando a humanidade, expôs, gestualmente, um dos abomináveis signos nazistas no meio dos festejos ao presidente recém-eleito. Depois, precisou negar.
Tarde demais. Conforme o ICL Notícias (25/01/25), por aqui, pelo menos “Um perfil no Instagram postou vídeo de um grupo de homens de Catanduva (SP) fazendo a mesma saudação nazista ao som de “Amerika”, música do grupo alemão de metal Rammstein”. Já no “Fantástico” (Globo: 26/01/25), foi revelado que vem aumentando o número de bandas brasileiras extremistas (mais de 125 já estão identificadas), que fazem letras para atacar negros, LGBTQIAP+ e judeus.
Na contramão disso, no dia 27 de janeiro pp., o mundo celebrou o 80º aniversário da libertação de Auschwitz. Alguns dos raros sobreviventes daquele campo de concentração, logo, de horrores indescritíveis, estiveram durante as comemorações. Suas lembranças e apelos para a paz, tudo transmitido ao vivo pela BBC/Londres, foram de arrepiar. Diante de tantas atrocidades, só mesmo um ser inominável, absolutamente desumano, pode saudar o nazismo, querendo imitar Hitler; pior: e ser seguido por uma legião de criaturas igualmente abjetas.
Infelizmente, hoje, convivemos com isso, mas isso pode mudar, felizmente. Tudo depende da consciência crítica e da postura de cada um de nós. Daí a importância de compreendermos os diversos cenários políticos, nossos e de outros territórios; para nos auxiliar, mais do que antes, o jornalismo profissional e responsável se faz indispensável em todos os lugares. Daí a importância de leituras responsáveis, de estudos aprofundados, da imersão na cultura comprometida e respeitosa com o seu tempo e seu povo. Precisamos nos livrar das bolhas das redes sociais, manipuladas/monetizadas por extremistas, de direita e/ou de supostas esquerdas, invariavelmente, reinado de desumanidades. Só assim, adubaremos, organicamente, nossa humanidade, como espécie; por consequência, sustentaremos nossas democracias, hoje, ameaçadas, em diversos espaços do planeta.
DE GOLPE E DE CENSURAS - Roberto Boaventura
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Professor de Literatura; aposentado da UFMT
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Embora possa parecer algo novo para muita gente, as tais “disputas de narrativas” sempre fizeram parte de qualquer contexto social. Mikhail Bakhtin, com outras terminologias e reflexões teóricas do real concreto, antes de qualquer acadêmico da pós-modernidade, já tratara isso em seus trabalhos, muitos focados no período medieval.
Portanto, no plano coletivo, como seres sociais que somos, estamos sempre disputando a hegemonia – à lá proposição de Gramsci –para fazer valer a força de nossas construções discursivas. Logo, tudo normal e legítimo em sociedades democráticas. O anormal é abrir mão dessa disputa, ainda mais se se tratar de sujeito político que dispõe de indiscutível projeção social acima de tantos “meros mortais”.
A quem ainda não captou a noção indireta deste meu discurso até aqui, agora, serei direto: o presidente Lula, que gosta de “falar até pelos cotovelos”, a menos que venha a mudar de ideia, preferiu se calar a falar qualquer coisa que fosse sobre o 31 de março de 1964, que é um dos momentos mais trágicos de nossa história recente, pois nos impunha, há 60 anos, um golpe militar, com todo tipo de crueldade (de censuras a torturas) que esse dispositivo militar tão bem sabe fazer alhures contra civis que não lhes lambam as botas.
Conforme foi noticiado pela Folha de São Paulo, setores do governo chegaram a ensaiar pedidos de desculpas por essa tragédia. Todavia, Lula teria vetado (logo, censurado) qualquer tipo de manifestação por parte de quem quer que fosse de seu governo. Em outras palavras, sem palavras. Só o silêncio, onde impera a mordaça, como bem apreciam todos os antidemocratas, dos mais explícitos aos enrustidos, de direita e/ou de esquerda.
De minha parte, que circunstancialmente votei em Lula nas últimas eleições, mas apenas para ajudar a interromper um tipo de aberração política então em curso, afirmo que nenhum motivo do veto desse camaleônico mito de nossa política poderia ser maior do que a necessidade do forte embate discursivo. Infelizmente, o seu silêncio pode dar espaço para que a perigosíssima extrema direita revigore suas forças políticas para, mais uma vez, tratar cinicamente o golpe como ato revolucionário, e mais adiante tentar um retorno à presidência.
Mas por que a fala de Lula e, por extensão, a fala de todos os cidadãos verdadeiramente democráticos seriam tão importantes?
Porque, mesmo o país estando sob a égide de um momento democrático, censuras ainda se encontram bem presentes. Para dificultar o trânsito social das pessoas realmente críticas, a censura em nosso país tem se manifestado de formas diferentes, e por sujeitos sociais, em tese, também diferentes.
E, aqui, talvez, resida um dos maiores nós sociais que temos para desatar, qual seja, o abraço, ou o encontro mesmo, por meio de práticas antidemocráticas, de supostos esquerdistas com genuínos e assumidos extremistas da direita.
Para ser mais objetivo, tomarei o espaço escolar (em todos os níveis do ensino formal) como exemplo desse dificílimo caminhar social no fio da navalha. Sob a ótica do atual ambiente escolar brasileiro, como um microcosmo social, à lá O Ateneu, de Raul Pompéia, podemos ver como se tornou difícil escapar das censuras que se nos apresentam.
De um lado, extremistas da direita, que sempre vislumbram a ditadura, além de nos censurar com o que equivocadamente chamam de “ideologia de gênero” e seus congêneres, censuram-nos também com um tipo de “queima” de livros, como, por exemplo, o que estão a fazer com o romance O Avesso da Pele de Jeferson Tenório.
Do lado que se pensa ser oposto a isso, as censuras não são menos agressivas. Defensores de determinadas pautas de grupos sociais (principalmente, os afros, os feministas e os LGBTQIAmais...) nos impõem censuras que vão do uso – ou do impedimento do uso – de determinados termos linguísticos, do constrangimento público – que é um tipo de assédio moral –,a ameaças de agressões físicas, como uma pela qual passei em um evento do ANDES-SN (Sindicado Nacional do Docentes), ocorrido há alguns anos em Curitiba. Portanto, do “meu lugar de fala social”, do qual me faço valer neste momento, não estou a falar de coisas abstratas.
Por tudo isso, que realmente não é pouca coisa, o dia 31 de março deste ano, como os subsequentes também, jamais poderia(m) passar (ou ter passado) em branco, sem um discurso contundente do atual presidente da República, que se vende politicamente de mais democrático do que o antecessor, este, explicitamente um golpista, por ora, fracassado.
As memórias dessa fatídica data deveriam nos servir de embasamento para profundas reflexões e autoavaliações necessárias. Este momento, deveria ser (ou ter sido) um momento didático, de muito aprendizado, principalmente para as novas gerações.
Em tempo: assim que dei por concluído o artigo acima, com muita satisfação, li, no Correio Brasiliense, de 29 pp., que o “PT ignora Lula, condena golpe e cobra volta da Comissão de Desaparecidos”. Era o mínimo.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Do carnaval há pouco terminado, um dos episódios marcantes foi ver a cantora/pastora Baby do Brasil, aos berros, pregar o apocalipse em trio elétrico comandado por Ivete Sangalo, em pleno fervo do carnaval de Salvador.
De início, considerei aquilo como mais uma cena teatral deslocada, de tão bizarra e fora da normalidade, pois, disputando o microfone, Baby disse que o “arrebatamento”, ou seja, o fim do mundo, teria tudo para ocorrer entre cinco e dez anos. Cheguei mesmo a sentir uma pontinha de pena, misturada com vergonha alheia, vendo uma artista que carrega um passado tão brilhante e tão cheio de irreverências sociais expor-se numa situação tão inusitada, ainda que sua conversão a uma inscrição evangélica pentecostal tenha sido cantada em versos e muitas prosas, via inúmeras entrevistas.
Do outro lado, perplexa, Sangalo, de início, caiu na armadilha preparada por Baby, pois “Veveta” também fez sua esquisita pregação religiosa em nome do mesmo “Senhor”, e ainda enrolando a língua para pronunciar a palavra “apocalipse”. Na sequência, Ivete conseguiu sair das emaranhadas teias do discurso religioso de Baby, que pediu de forma absolutamente irônica, e, por isso, inteligente, como resposta musical, que Ivete cantasse “Minha Pequena Eva”, ou seja, uma canção que dialoga com o livro do Gênesis da Bíblia Sagrada. Detalhe: essa canção tornou-se famosa na própria voz de Ivete Sangalo, quando fez parte da Banda Eva, no início dos anos 90.
Para a sorte geral dos foliões do carnaval, ou seja, a festa consentida da “carne” –aliás, buscada na Idade Antiga para o medievo católico, que cria, simultaneamente, a quarta-feira de cinzas –, Ivete ignorou o pedido ardiloso de Baby.
Todavia, no calor daquela impertinência discursiva, o máximo que Sangalo conseguiu pensar como resposta, foi o óbvio e oportunista, ou seja, lançar mão de um hit do momento chamado “Macetando”, uma “m...” de música que mistura elementos do funk com o pagode baiano, gravada por ela mesma e por Ludmilla.
Em outras e diretas palavras, algo nada genial; ao contrário, trivial e chulo. Ah! Aqui, se algum relativista cultural se incomodar com essas minhas considerações, vou de Roberto Carlos: “Quero que tudo vá para o inferno”... e, de preferência, bem antes do tal apocalipse da Baby.
Mas qual seria a melhor resposta musical que Ivete poderia ter tido como repertório para um momento como aquele, produzido – de propósito – por Baby?
Muito simples, e até desconcertante para qualquer ser que ainda insiste, em pleno 2024,na pregação desse discurso sem lastro do arrebatamento. Bastava cantar “E o Mundo Não Se Acabou”, de Assis Valente, gravada em 1938 por Carmen Miranda:
“Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar/ Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar/ Até disseram que o sol ia nascer
antes da madrugada:/Por causa disso nesta noite/ lá no morro não se fez batucada// Acreditei nessa conversa mole/ Pensei que o mundo ia se acabar/ E fui tratando de me despedir/ E sem demora fui tratando de aproveitar/ Beijei na boca de quem não devia/ Peguei na mão de quem não conhecia/ Dancei um samba em traje de maio/ E o tal do mundo não se acabou(...)”
Pois é. Faltou à Ivete a rapidez do raciocínio. Essa canção seria a melhor resposta. Doravante, todos os cantores de festejos precisam ter essa e outras canções guardadas na memória. Muitos poemas também valem como repertório necessário. Motivo: vendo a repercussão que teve isso tudo, tive a feliz oportunidade de encontrar a matéria “Baby do Brasil: a teologia do domínio por trás da cena rocambolesca da cantora/pastora”, publicada pela Fórum, no último dia 12. Ali, o veículo deu voz ao cientista político e sociólogo Joscimar Silva (professor da UnB), que “chama a atenção para o que está de fato em evidência na situação aparentemente amalucada ocorrida em Salvador”.
Para o professor Joscimar, “Baby não é mais a ‘Baby do Brasil’, mas a ‘Baby das Nações’, como disse seu líder apostólico Renê Terra Nova (um Malafaia menos conhecido) há alguns anos. Baby agora é parte de uma coalizão apostólica global”.
Assustador!
Nas palavras do colega da UnB, essa “coalizão apostólica global é um movimento que busca ‘restaurar’ o governo apostólico, considerando todos os outros "chamados" ministeriais (pastor, profeta, mestre, evangelista) subjugados a um/a apóstolo/a... A ‘restauração’ ou criação de rede de apóstolos trata-se de um projeto maior de domínio (...).A “Apóstola Baby das Nações, agora, trabalha no projeto de expandir a cultura gospel para os espaços não alcançados”, conforme já dito por ela mesma.
E continua o pesquisador: “Na perspectiva da Teologia do Domínio, à qual Baby e a coalizão apostólica internacional se filiam, a sociedade é constituída por ‘montes’ sob os quais o conservadorismo cristão deve governar: igreja, educação e ciência, economia e negócios, governo, cultura e entretenimento. O carnaval, sendo a maior festa popular do Brasil, não iria ficar de fora dessa. A Teologia do Domínio diz que as igrejas não devem mais fazer retiros, mas devem ficar e ocupar as cidades lutando contra os deuses carnavalescos...”
No fundo, Baby nos fez um grande favor, pois nos possibilitou conhecer o que de fato está por trás de seu discurso, apenas aparentemente amalucado, como adjetivou o cientista político.
Diante dessa perigosa e autoritária “luta apostólica”, a sociedade deve estar bem preparada em todos os campos possíveis – principalmente, nos espaços de eleições e decisões políticas – para a devida resposta a essa luta. Não há nada pior socialmente do que o retorno ao retrógrado pensamento e práticas do teocentrismo à lá Idade Média.
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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Professor de Literatura; aposentado da UFMT
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Desde que, há poucos dias, o IBGE divulgou o resultado do Censo de 2022, diversos de seus dados me chamaram a atenção. Para este artigo, destaco aqueles acerca do número de estabelecimentos religiosos, expostos, por alguns veículos da mídia, em quadro comparativo com os números de escolas e de postos de saúde existentes no país.
Conforme o referido censo, no Brasil, há mais de 579 mil templos ou outros tipos de estabelecimentos religiosos, contra 264 mil de ensino e 247 mil de saúde; ou seja, os templos religiosos superam em mais de 68 mil a soma das edificações de escolas e de postos de saúde. Se nessa comparação fossem inseridos os teatros, que também são templos da cultura de um povo, a surra que as artes tomariam poderia ser ainda maior.
E é justamente por meio da arte que tentarei pensar um pouco o que pode ter nos levado à essa realidade. Começo resgatando o poema “O Padre Passa na Rua”, de Carlos Drummond, inserido no livro Boitempo, de 1968; aliás, esta não é a primeira vez que faço uso desse texto, posto tê-lo como um dos discursos artísticos basilares para nos auxiliar na compreensão da “alma” de nosso povo.
Eis abaixo o poema, paradoxalmente, tão curto quanto abrangente:
“Beijo a mão do padre// a mão de Deus// a mão do céu// beijo a mão do medo// de ir para o inferno// o perdão// de meus pecados passados e futuros// a garantia de salvação// quando o padre passa na rua// e meu destino passa com ele// negro// sinistro// irretratável// se eu não beijar a sua mão.”
Para contextualizar o poema, trago pelo menos duas informações: 1ª) na década dos anos 60, a Igreja Católica era quase um monopólio religioso em nosso país;2ª) os padres – via de regras, de batina escura –ainda visitavam as casas dos paroquianos; logo, beijar suas mãos era o mínimo que se fazia diante do auto proclamado “representante de Deus”, ali, tão perto dos mortais, induzidos, desde o nascimento a terem medo de arder no fogo do inferno por conta de seus pecados.Desse panorama, predominantemente católico, Drummond,como poucos, soube captar essa nossa captura mental exercida desde a chegada da primeira caravela nos idos de 1500.
Hoje, os padres – como também os religiosos de inúmeras outras inscrições, que quebraram o monopólio da fé católica –continuam entrando nas residências de seus fiéis, mas pela TV e redes sociais. Alguns entram como pop star; outros surgem como versões deprimentes de palhaços, usando chapéus, calças arrochadas e outras excentricidades. Seja como for, essas “visitas” virtuais são ainda mais constantes e contundentes; por elas, continua-se a pregar a mesma ladainha ancestral, qual seja, o medo de ir para o inferno. Alguns, pregam mais sutilmente; outros berram e fazem gestos teatrais inusitados. Tudo muito deprimente e oportunista, pois vivemos ladeados de seres que ainda acreditam que a Terra é plana.
A outra manifestação artística que me auxilia nessas reflexões é a canção “Guerra Santa” de Gilberto Gil (In: Quanta/1997), composta por conta daquele bispo que, em 1995, chutou a imagem de Nossa Sra. Aparecida durante um dos programas "Palavra da Vida", da Record. Claro que a “evolução” daquela criatura só poderia ter desaguado em um desses seres que, hoje,são proclamados ou se auto proclamam de “terrivelmente cristãos”, mas que, na verdade, têm a essência humana duvidável; por vezes, até irreconhecível como tal.
Pois bem. Aqui, vale dizer que a canção de Gil, de forma sutil, dialoga com o poema acima. Isso pode ser percebido melhor nos dois primeiros versos da primeira estrofe: “...Ele diz que tem como abrir o portão do céu// ele promete a salvação...”
Nos versos que completam essa mesma estrofe, é dito que “ele (o bispo) chuta a imagem da santa// fica louco-pinel// mas não rasga dinheiro, não”. Neste momento, Gil começa a pontuar que a fé popular tem sido usada para o enriquecimento de pessoas e grupos ditos religiosos, que vão das “pequenas igrejas, grandes negócios” aos impérios salomônicos e semelhantes propriamente ditos.
Nas duas estrofes finais da canção, Gil condena a intolerância religiosa, dizendo:
“Eu até compreendo os salvadores profissionais// sua feira de ilusões//
só que o bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz// deixa o outro vender limões// Um vende limões,//o outro vende o peixe que quer//
o nome de Deus pode ser Oxalá// Jeová, Tupã, Jesus, Maomé// Maomé, Jesus, Tupã, Jeová// Oxalá e tantos mais// sons diferentes, sim, para sonhos iguais”.
Corretíssimo o nosso poeta da MPB! Mas, como é dito em outro poema drummondiano, por mais pedras que possam ter no meio do caminho de nossas existências, é lamentável que a saída para tanta gente seja a busca daquela “feira de ilusões”, aludida acima por Gil. Quem sabe um dia ainda venhamos a ter mais escolas, postos de saúde e teatros do que tantas “feiras de ilusões”?!
Quem sabe?!
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Consoante o narrador de Grande Sertão: veredas, um clássico de Guimarães Rosa e referência ímpar da literatura brasileira, “...cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães…”.
Com o risco do exagero, arrisco a dizer que nós, brasileiros, nunca vivemos um momento tão propício a emitir opiniões... ou opiniães. Nunca havíamos tido tanta oportunidade de expressar, e até esbanjar, o que chamamos de “liberdade de expressão”.
Com a massificação das redes sociais, cada um de nós tem se visto no direito de compartilharas nossas opiniões, mesmo as mais esdrúxulas, em geral, desprovidas de lastro, ou seja, de repertório qualificado; aliás, a qualificação para opinar é o que menos parece nos incomodar na era da máxima exposição dos egos inflados. Se houvesse essa preocupação, básica para os diálogos profícuos e saudáveis, as fakes, p. ex., não seriam tão fartamente promovidas, tampouco, promoveriam tantos e desnecessários antagonismos entre nós todos.
Diante desse quadro, de fakes e antagonismos, muitas relações profissionais, familiares e amistosas foram sendo esmaecidas ou simplesmente canceladas, acentuadamente nos últimos cinco anos. Quem não passou ou passa por algum desgaste desse tipo que atire a primeira pedra. Quase impossível.
Do meu grupo de amigos, por conta de recentes artigos, culminando com o que intitulei “Do tropicalismo ao cristianismo” (https://www.midianews.com.br/opiniao/do-tropicalismo-ao-cristianismo/435718), alguém, aderente à onda bolsonarista, aproveitou o momento para tentar me mostrar que cada um tem o direito de ter sua própria opinião sobre todas as coisas. Para isso, foi-me encaminhada a letra da canção “Ponto de Vista”, de Eduardo Lyra Krieger e João Cavalcanti.
Na referida canção, cuja estrutura textual tem as construções anafóricas como predominantes de seus versos, busca-se mostrar que a interpretação de tudo que vemos e/ou que nos circunda, depende do nosso ponto de vista, “...e ponto final”. Sendo assim, é dito ali que, “Guardado no bolso do louco/ Há sempre um pedaço de deus/ Respeite meus pontos de vista/ Que eu respeito os teus... // Não é preciso por lente nem óculos de grau/ Tampouco que exista somente// Um ponto de vista igual...”
Sem discordâncias.
De fato, em termos de “ponto de vista”, tudo pode ser relativo, e as certezas, fluidas. Nesse sentido, creio que o ponto de vista mais intrigante de nossa literatura, p. ex., reside naquele famoso olhar de “cigana oblíqua e dissimulada” de Capitu, personagem fabulosa de Dom Casmurro de Machado de Assis.
Com essa obra, de 1899, Machado, se estivesse vivo, continuaria se divertindo com o leitor, que se digladia tentando provar, sem conseguir, mas, paradoxalmente, sem poder descartar, um possível adultério de Capitu imposto a Bentinho. Assim, cada leitor vai tendo seu ponto de vista sobre aquele contexto romanesco.
Logo, o ponto de vista está para o modo particular de como entendemos, julgamos e/ou percebemos as coisas e as pessoas (suas ações, obviamente) que estão ao nosso redor. A pluralidade das particulares opiniões – que materializa nossa liberdade de expressão – estará sempre presente e garantida naquilo que venha a ser o nosso “ponto de vista; e, mais uma vez, “...ponto final”.
Todavia, muito do que muitos expressam, hoje, não se trata de simples “ponto de vista”, mas de concepção de vida; e aí, os pontos de vista, para terem lastro, precisam estar todos sob o mesmo guarda-chuva, ao qual chamo de Constituição Federal; “...e ponto final”. Tudo o que estiver fora dessa guarda-chuva está alheio ao ordenamento legal do nosso país; e é sobre isso que estamos nos confrontando diuturnamente, e não sobre meros e “inocentes” pontos de vista disso ou daquilo.
Em palavras bem diretas, defender o golpe militar, p. ex., como extremistas da direita brasileira estão fazendo à frente de quartéis do Exército, desde que foram derrotados nas urnas, não se trata de um simples e inocente ponto de vista. Os golpistas, completamente fora da lei, estão externando uma concepção de vida, que, antes de tudo, agride a legislação do nosso país e desconsidera nosso estado democrático de direito; logo, são seres, sob a ótica da lei, criminosos, aderentes ao golpe e à ditadura militar, bem como tudo o que isso significa: fechamento das instituições, como o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, exílios, torturas, assassinatos sumários de opositores do regime, censura à imprensa, às universidades, aos sindicatos, às entidades de representação democráticas etc etc etc.
De minha parte, no lugar da canção “Ponto de Vista”, acima referida, bonita, mas limitada por não abranger nossas concepções de vida, encerro este artigo com um fragmento de um diálogo de Dom Quixote: II/LVIII, de Miguel de Cervantes, que pode nos servir como uma reflexão sobre a importância da liberdade, que jamais pode ser perdida; por isso, deve ser defendida sempre, e com veemência:
“— A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens (...)”.
Salve a liberdade! Salve a democracia, que não é uma questão de opinião ou de “opiniães”, mas de uma concepção de vida que preza pela liberdade. Sempre.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
No universo das artes, é sempre difícil à crítica se manifestar de forma coerente diante de possíveis desvios de percurso de artistas que já tenham atingido um ponto de excelência e de reconhecimento público. Sendo assim, ao famoso, tudo é permitido: o que dele vier, a ele, aplausos e mais aplausos retornam. Em “outras palavras” – expressão que coincide com o título de uma genial canção de Caetano Veloso (1981) –,um artista de renome, depois que a fama “pegou”, raramente é questionado naquilo que faz.
Mas por que começo a tratar de arte, ou do artista famoso, neste artigo?
Porque em um bate-papo com amigos – todos preparados academicamente para a crítica artística –houve recepção naturalizada da gravação de “Deus cuida de mim”, com o pastor/cantor/compositor gospel Kleber Lucas e Caetano Veloso, um ex-ateu, um expoente do Tropicalismo, bem como um dos mais “ácidos” dos “Doces Bárbaros” da MBP. A anuência de meus amigos pode estar embutida no silêncio ou, quando muito, nas meias-palavras, ditas quase em sussurros, de meia-dúzia de críticos, sobre esse trabalho empreendido pela Sony Music.
De um dos amigos, acerca da gravação, previamente relativizando um estranhamento, é dito que seu ateísmo não é impeditivo para ver Caetano “sempre ‘caetanear’”; logo, “arrasar”. Encantada, uma amiga até filosofou! Por isso, cá estou refletindo sobre esse “caetaneamento”, que, desta vez, além de não “caetanear” nada, ainda se prontificou a cantar um gospel, poeticamente falando, longe da genialidade, repito, de “Outras Palavras” e de quase tudo o que compôs ao longo de décadas.
Artisticamente, a gravação desse gospel – estilo que tem elevado os lucros de artistas e empresários às alturas– é um susto daqueles de fazer o sujeito cair das nuvens! É mesmo de “arrasar”, mas não no sentido positivo que esse termo até pode assumir.
Mas antes que alguém gaste energia me praguejando por conta dessa franqueza, quase sem filtros, digo que meu susto não está na conversão do “mano Caetano” de Bethânia, que, ao Fantástico (Rede Globo: 04/12/22),disse que essa gravação só pode ter sido “coisa de Deus”, embora reconheça não ter sido, até ali, “propriamente religioso”.
Como tudo isso, a mim, soou inusitado, fui tentar entender essa novíssima “força estranha” na obra de Caetano. Rapidamente, encontrei a matéria “Fé no vídeo! Mídia NINJA dirige novo clipe de Caetano Veloso e Kleber Lucas”, assinada por Felipe Altenfelder, de 04/12/22.
De início, o jornalista contextualiza a aproximação de Caetano com o NINJA, iniciada há quase dez anos (2013), durante o movimento Black Bloc, e continuada por conta da “regulamentação do ECAD, do show no Ocupa MINC..., das apresentações em apoio ao surgimento da chapa dos sonhos de Guilherme Boulos e Sônia Guajajara...”
Depois, Altenfelder passa a “celebrar o nascimento do clipe de ‘Deus Cuida de Mim’, dirigido pelo Mídia NINJA...”, que estava em ativismo político pró-eleição de Lula contra Bolsonaro. Para isso, às vésperas do segundo turno (última semana de outubro/22), inúmeros artistas participavam, na sede do NINJA, da gravação do clipe “Vamos lá votar”; na verdade, uma “convocação geral” para “lular”.
Nessa conjuntura, com as pesquisas mostrando empate técnico entre Lula e Bolsonaro, Altenfelder diz que todos passaram a fazer “...um respiro criativo, trazendo novos entendimentos para o fluxo de trabalho da campanha que canalizou no trabalho coletivo que sinergizou articulação, curadoria, estrutura, música, vídeo e fé”.
Na sequência, eis um recorte do depoimento do mesmo jornalista:
“...É difícil recordar do momento exato quando acabou a gravação de ‘Vamos lá Votar’, e Caetano e Kleber começaram a cantar ‘Deus Cuida de Mim’. Foi daqueles momentos em que todas as pessoas que estavam no estúdio assumiram suas funções e a mágica foi acontecendo”.
Em outros espaços da mídia, ficamos sabendo que os dois cantores já haviam se encontrado – na casa do expoente da MPB – para os cuidadosos ensaios dessa “mágica”.
Mas voltando à matéria de Altenfelder, quase em seu final, é registrado que, “num diálogo sincero de um dos maiores mestres da MPB, Caetano diz que não é mais ateu e adentra no mundo gospel num novo tempo de esperança para mandar uma mensagem divina para os mais de 60 milhões de brasileiros dessa religião”.(!!!)
Pois bem. Nas pegadas das sandálias do padre Anchieta e de outros jesuítas dos tempos coloniais, desejo ao pretensioso e mais novo mensageiro da fé, boa sorte na missão; ademais, para nosso conforto, diante de uma conversão exposta de forma tão aberta, é sinal de que nenhum oportunismo (político e/ou econômico) está em jogo, como esteve em nosso passado na atuação dos jesuítas durante a exploração portuguesa.
E se de fato nenhum tipo de oportunismo se faz presente, melhor assim, mesmo não nos cabendo ter qualquer senão contra empreendimentos profissionais no campo das artes, tampouco na militância política de quem quer que seja; todavia, convenhamos, tem sido cansativo e constrangedor ver tanta gente usando o recurso da fé para interesses em nada afeitos à fé em si mesma. Numa proposital cacofonia, é fé demais neste país de cultura de menos, e, pelo jeito, desde sempre e pelos séculos e séculos.
Seja como for, um momento ímpar como esse merecia ter sido, poeticamente, melhor preparado e apresentado ao público que admira Caetano e, creio, ao próprio Senhor dos Céus. Cá venhamos, uma conversão de um ateu desse nível e projeção merecia uma poesia de maior qualidade, que se aproximasse, pelo menos, daquele velho “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos. Claro que muitos religiosos dirão o contrário; que em Matheus, 19.14, não se lê que o céu pertence aos intelectuais e eruditos, aos ricos e poderosos, mas àqueles que são semelhantes às crianças, aos simples. Se for assim, a canção que embala a conversão de Caetano está no patamar adequado, poeticamente falando. Tudo é muito raso; logo, longe de uma grande inspiração, humana que seja!
Como contraponto disso tudo, resgato a canção, inteligentemente engajada, intitulada “Eterno Deus MU-Dança”, de Gilberto Gil, composta em 1989, ano de sua eleição como vereador de Salvador-BA, bem como da primeira eleição presidencial pós-golpe-ditadura militar/64, antagonizada, no segundo turno, por Collor e Lula.
Naquele momento, o eu-lírico de Gil, ao invés de pedir cuidados exclusivos de Deus para si, numa perspectiva de obtenção dos privilégios individuais, apostou na força da multidão por meio de uma brincadeira fonética, que faz da primeira sílaba de “MU-dança” o nome de um deus hipotético, a quem o futuro se assemelha a uma dança, que aposta na dinamicidade da existência humana, marcada pelos processos de ruptura, e não de aceitação e/ou de resignação, com o establishment.
Bem ao contrário dessa conexão trazida por Gil, arraigada à terra e à Terra, o mítico e o eflúvio celestial parecem ter tomado conta do espaço da gravação do clipe acima citado, culminando, mesmo em um ambiente de “conscientizados políticos” do campo progressista brasileiro, em uma retumbante vitória do teocentrismo à lá Idade Média, pautado pelo extremista de direita Jair Bolsonaro, aliás, de forma tão abrangente como nenhum outro político conseguiu, até então, pautar; quiçá, nem mesmo algum religioso tenha tido tanta força para esse tipo de imposição, intimamente, vinculada às pautas de costumes, tão rompidos, em idos tempos, justamente por Caetano e tantos outros ícones de nossa MPB, via de regras, magnífica em conteúdos e formas.
Assim, ironicamente, Caetano, um opositor e crítico de Bolsonaro, a partir de sua conversão religiosa, materializada na gravação de “Deus cuida de mim”, coloca-se sob o mesmo manto do pesado lema “Deus acima de tudo e de todos”.
Mistérios da “força estranha... no ar”?
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Em 1970, no auge dos crimes da ditadura militar, imposta a nossa democracia pelo golpe de 64, Miguel Gustavo compôs a canção “Pra frente Brasil”, cantada pelo Os Incríveis, que virou tema da Seleção Brasileira de Futebol, tornada tricampeã no México. De lá para cá, essa canção-tema, dentre as outras compostas para os mundiais subsequentes, é a mais resgatada de nossas memórias, seja por qual motivo for.
Naquele momento, nossa população era de 90 milhões, dado inserido no 1º verso daquela canção. Na sequência, como forma de desconsiderar o presente vivido sob as crueldades dos ditadores militares contra os que se opunham ao regime, geralmente rotulados de comunistas, mesmo que não fossem, a ufanista canção ordenava o olhar para o futuro; daí o título “Pra frente, Brasil”, inserido em seu2º verso, e repetido inúmeras vezes. Dali em diante, eis o que segue no texto:
“(...) Todos juntos, vamos,/ pra frente Brasil/ Salve a seleção!/
De repente é aquela corrente pra frente,/ parece que todo o Brasil deu a mão!/ Todos ligados na mesma emoção,/ tudo é um só coração! (...)”
Por décadas, a esquerda, antes de aceitar a cartilha do neoliberalismo, em 2002, denunciou usos e abusos que o poderio militar exerceu sobre a Seleção, visando à “manipulação das massas”. Muitas vezes, a esquerda incentivou, sem sucesso, boicotes aos jogos das copas, realizadas, quadrienalmente, desde 1930. Aquela antiga “razão” da esquerda sempre foi goleada pela emoção que o futebol exerce por aqui, em maior ou menor intensidade, a depender da conjuntura do momento.
Por ironia das coisas e causas da política, em 2014, a copa ocorrida justamente no Brasil –sob um governo, considerado, ainda por muitos, de esquerda –foi a que menos envolveu a torcida brasileira. Naquele ano, por razões óbvias, a dita “esquerda” não incentivou o boicote; contudo, com diversos movimentos sociais pulverizados no tocante às demarcações do campo político, cujo ápice se deu em 2013, não faltavam denúncias de corrupção, também – mas não apenas – nas obras projetadas diretamente para a Copa.
Na lógica da “vida que segue”, quatro anos depois, a Seleção permaneceu sem o hexa. Agora, eis-nos no início da Copa de 2022, que se realiza no Catar, um país riquíssimo, mas tão autocrático quanto preso a práticas inconcebíveis, se vistas sob as perspectivas de direitos humanos e da legislação trabalhista. As denúncias são de causar repugnância. Pior: as tentativas de manifestações, por parte de atletas, estão sendo dificultadas, quando não proibidas sumariamente. Só para lembrar, as sociedades não democráticas são assim!
Paralelo a isso, como sempre ocorre, temos o nosso contexto político influenciando mais uma edição da copa; e este momento traz peculiaridades inusitadas, pois, após a derrota de um grande disseminador de ódio e de fakenews que este país ainda tem como presidente até o final deste ano, é a extrema direita, sempre mais ufanistas do que a razão deveria permitir, que tenta desestimular o interesse pelo jogos do Catar; aliás, desde a derrota dessa extrema direita, muitos de seus signatários continuam bloqueando estradas; outros ainda estão na frente de quartéis, pedindo, criminosamente, por um novo golpe militar.
Em contrapartida, aproveitando-se desse atordoamento desses golpistas, a centro-esquerda do lulo-petismo, em união estável com a centro-direita de Alckimin, “todos juntos” e misturados com outros partidos de tendências diversas, tenta – quem diria? –resgatar o verde-amarelo de nossa bandeira, subtraída pelos extremistas da direita; e isso está sendo feito justamente na carona de nossa Seleção. Para marcar esse resgate, muitas bandeiras nacionais trazem a inscrição “É pra Copa”.
E parece que tudo conspira a favor do resgate em pauta no cenário hodierno, do qual apresento os seguintes destaques:
a) a Seleção– com foco no atacante Richarlison, o “pombo” que, conscientemente, tenta disseminar a paz e a leveza em nosso país dividido– já está classificada para a próxima etapa;
b)a lúcida postura política, novamente, de Richarlison, que se sobrepõe à de Neymar, que teria dito que, se fizesse um gol, homenagearia o presidente derrotado nas urnas eletrônicas, aliás, desde sempre, inquestionáveis quanto à segurança que oferecem;
c) as vinhetas e enunciados da Rede Globo – como o “Tamos juntos pela Copa”, repetido várias vezes pelos narradores – que ajudam na tentativa de fazer o país suplantar este difícil momento político, recheado de discursos de ódio e de ameaças golpistas;
d) algumas das publicidades dos patrocinadores da Seleção, auxiliadas por intervenções dos narradores das partidas e de diversas reportagens da mesma emissora, bem como de matérias de outros espaços na programação da rede, dentre outras coisas, exaltam a volta da churrasqueira, numa evidente analogia do discurso político de Lula, que não perde a chance de lembrar dos saudosos churrascos em família e entre amigos, quando de seus governos num passado recente;
E assim, salvo pontualidades estarrecedoras, como o ataque de um jovem nazista a duas escolas no Espírito Santo e as ofensas verbais a Gilberto Gil, em um dos estádios do Catar, parece que a tendência é a de termos dias menos tensos, pois a cada vitória da Seleção, o povo brasileiro poderá ver arrefecida essa divisão, entre nós, produzida pelos odiosos golpistas de plantão, que são pouquíssimos, mas barulhentos e perigosos. Talvez, até as famílias, estupidamente esfaceladas por antagonismos políticos, possam ir se reconstituindo em bases fraternas; quiçá, a belicosidade ceda lugar à delicadeza perdida.
Enfim, por ora, e por uma das mais retumbantes ironias do destino, a melhor aposta, ou a postura política mais humanizada, com ou sem o hexa, é torcermos para os versos de 1970 surtirem algum efeito em 2022:
“...De repente é aquela corrente pra frente,/ parece que todo o Brasil deu a mão!/ Todos ligados na mesma emoção,/ tudo é um só coração”.
Para o jornalista Pedro Vedova, o Brasil já avançou na simbologia das mãos dadas, pois já nos abraçamos. Consoante sua bela matéria no Fantástico/Globo, do último dia 27, “...foi o movimento de capoeira que fez o Brasil se abraçar”, numa pertinente referência ao segundo gol de Richarlison contra a Sérvia.
Seja como for, depois da copa, que continuemos a lutar pela não disseminação do ódio, das fakes, e sem os extremismos, da direita ou da esquerda; e de preferência, com muitos voleios, ou danças... de capoeira, do pombo...
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Dias atrás, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal foram assediados em Nova York, onde participavam de um evento. As abordagens foram feitas por brasileiros inconformados com a derrota de Bolsonaro para Lula. Um deles, enquanto filmava sua “entrevista”, questionou se Barroso iria “...responder às Forças Armadas”; se deixaria “...o código fonte (das urnas) ser exposto”. De chofre, Barroso voltou-se para o “repórter” e disse: "Perdeu, mané. Não amola".
Depois disso, antes que o arrependimento de Barroso – embora desnecessário – se tornasse público, não demorou para que o enunciado ganhasse incontáveis memes, vindos da oposição ao golpismo de bolsanaristas, que não aceitam a derrota nas urnas, aliás, seguras, auditáveis, exemplares e tudo o que se quiser apontar de positivo sobre elas.
Do lado dos derrotados, recebi o texto apócrifo “Nós, os manés”, onde é dito que foram acordados “de uma letargia”; por isso, não aceitam mais “mentiras e falsidades...”; que os “manés” descobriram “... os verdadeiros amigos” e tiraram “as máscaras dos inimigos”; que encontraram “um líder” que lhes “fez ver o perigo que corriam”.
De minha parte, limito-me a dizer que, se neste momento pós-moderno, como cada um vê o que quer e da forma como quer, fazer o quê se essas pessoas pensam que não aceitam “mais mentiras e falsidades”? Alguém há de convencê-las se disser que todos os inconformados estão atolados em fakenews? Que não enxergam um palmo à frente do nariz? Que são nutridos por mentiras repassadas ininterruptamente pelas redes sociais?
Não, até porque essas criaturas não querem ser convencidas de nada que lhes possa tirar do conforto das mentiras que se lhes abatem. E o mito, a quem chamam de líder, é mesmo um líder, mas em disseminar mentiras e desavenças entre nós, brasileiros.
Mas sigamos. No final do texto em questão, depois de alguns palavrões contra os ministros do STF, o autor anônimo registra que “...com sorrisos debochados, nos jogam na cara (no caso, Barroso) a fala do ladrão quando nos rouba... “Perdeu, mané!”.
O restante do texto é recheado de pragas. Bobagens. O que me interessa é a afirmação de que “perdeu, mané” refere-se à “fala do ladrão”, quando anuncia um roubo.
Até pode ser mesmo, mas antes de ser uma expressão apropriada por ladrões, “mané” vem dos morros cariocas; vem, portanto, das camadas populares, que não podem ser confundidas com ladrões por conta de seu registro linguístico.
Para ilustrar, resgato o samba “Linguagem do Morro”, composta em estrofe única de dezessete versos por Padeirinho, gravada por Jamelão em 1961.
Logo após ser dito que “Tudo lá no morro é diferente”, e que “Daquela gente não se pode duvidar”, o eu-poético, no sétimo verso, passa a falar da “linguagem de lá (no caso, do morro)”. Eis uma parte do “dicionário” própria de várias comunidades cariocas:
“Baile lá no morro é fandango/ Nome de carro é carango/ Discussão é bafafá/ Briga de uns e outros dizem que é burburinho/ Velório no morro é gurufim/ Erro lá no morro chamam de vacilação/ Grupo do cachorro em dinheiro é um cão/ Papagaio é rádio/ Grinfa é mulher/ Nome de otário é Zé Mané”.
Mais recentemente, em 2000, a “malandragem artística” de Bezerra da Silva especifica o significado de “mané”, mas sem o “Zé” da música de Padeirinho/Jamelão. Isso ocorre na canção “Malandro é Malandro e Mané é Mané: o poeta falou”.
Como estou a comentar sobre o “mané”, deixarei para a curiosidade de cada um o que o eu-poético de Bezerra diz sobre o “malandro”, e já recorto os versos que definem o “mané”:
“...o mané, ele tem sua meta/ Não pode ver nada/ Que ele cagueta/ Mané é um homem/ Que moral não tem/ Vai pro samba, paquera/ E não ganha ninguém/ Está sempre duro/ É um cara azarado/ E também puxa o saco/ Pra sobreviver/ Mané é um homem
Desconsiderado/ E da vida ele tem/ Muito que aprender…”
Salve, Bezerra! Esse é o retrato do “Mané” enunciado por Barroso: de alguém que, no mínimo, precisa aprender muito da vida. O resto, sem contar o preconceito linguístico por trás de determinadas afirmações, é chororô de inconformados.
Já o “não amola”, pedido de Barroso ao “mané” de Nova York, faz parte dos “Termos e expressões do coloquial do cotidiano da zona rural no Brasil central no século XX”, título da obra de Ismael David Nogueira, que, a quem quiser, pode ser assim encontrada na própria internet.
Portanto, Barroso, ao dizer “Perdeu, mané. Não amola”, foi ao falar mais popular possível. Claro que, com isso, ele causou estranheza, posto transitar sempre na expressão erudita, nas sessões do STF, que, aliás, poucos são os brasileiros que conseguem acompanhar sua linha de raciocínio, principalmente quando se põe a tratar da importância de envidarmos todos os esforços para a manutenção do nosso estado de direito. Isso, sim, é o que deveria importar a todos, manés e malandros, deste país tão dividido.