Sexta, 19 Abril 2024 08:13

 


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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

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Aldi Nestor de Souza*

 

No próximo semestre darei aulas de uma disciplina que, entre várias outras coisas, se ocupa de explicar ou fornece a teoria matemática do movimento dos robôs. Aparentemente não há nada de estranho em se fazer isso. Afinal de contas, é tarefa de qualquer disciplina repassar para as novas gerações parte do conhecimento acumulado pela humanidade. Além disso, os robôs, há muito, saíram da ficção e meteram-se na vala comum do diário. Tem robô até para passar pano no chão. Porém, há vários elementos que insistem em se apresentar, pelo menos para mim, como potenciais problemas.

Antes de entrar neles, pontuo o fato de que as disciplinas de matemática gozam do curioso prestígio de, aparentemente, poderem prescindir da realidade, de suas contradições, se esconderem tranquilamente debaixo do guarda chuvas da abstração e da “neutralidade” e se manifestarem apenas do ponto de vista teórico e “lógico”: “Um robô é feito disso, ele se movimenta assim, assim, e assado e isso se dá por isso, por isso, por isso e ponto final.”

Para começo de conversa, e já abrindo mão do sossego teórico fornecido pela disciplina, convém esclarecer qual é mesmo essa vala comum do diário na qual os robôs se meteram e que tipo de chão é esse no qual eles andam passando pano. Para essa finalidade, é sempre bom ter em mente que um robô não é um bem da natureza, tipo o ar que respiramos, mas é algo construído socialmente e apropriado privadamente. Em consequência disso, a vala comum e o chão aos quais eles servem, são selecionados pela inevitável luta de classes que, até o presente momento, definiu as sociedades.

Por falar em chão e em luta, é emblemático o caso aqui da universidade, instituição que se ocupa de ensinar o movimento dos robôs e outras diversas e avançadas formas de tecnologia, mas que tem seu chão limpo e passado o pano por mãos bem humanas, munidas de vassouras e rodos e submetidas a regimes de trabalho precários e a salários escorchantes. A sala de aula que vai servir de palco para o ensino do movimento dos robôs vai ser limpa por essas mãos. Diferentemente do ar que respiramos, a posse dos robôs é uma posse de classe.

Convém também esclarecer, na perspectiva da soberania dos povos, que moramos num país que não produz robôs. Aliás, o Brasil não produz (apesar de já ter produzido), sequer, um mísero computador. E é desconfortável constatar que esse mesmo país vê, diariamente, há séculos, sair de suas entranhas e viajar pro exterior (para os países que fazem robô), milhares e milhares de toneladas da matéria prima, dos minerais, utilizados justamente na fabricação dos robôs em particular e dos computadores em geral. O que uma universidade pública, que sem nenhum pudor ensina o movimento dos robôs, tem a ver com o destino de um país como esse? Ela pretende ensinar o movimento dos robôs para quê, exatamente?

Meses atrás o jornal O Globo publicou uma matéria, cujo título sugeria que, finalmente, o Brasil entrava como protagonista nesse mundão da tecnologia. Dizia a matéria: “Como é o supercomputador brasileiro que está entre os mais rápidos do mundo?”. Ao ler a reportagem descobri que, na verdade, o supercomputador foi apenas comprado pelo Brasil, pelo preço de 50 milhões de reais e que o mesmo foi desenvolvido e produzido na França. O supercomputador, chamado de Santos Dumont, é usado para pesquisas científicas e encontra-se abrigado no Laboratório Nacional de Computação Científica.

É também conveniente esclarecer que os trabalhadores convivem com a ameaça diária de perder seus empregos para algum tipo de tecnologia. Em particular, para os robôs. É possível, inclusive, que isso tenha ocorrido ou venha a ocorrer com algum aluno da turma da futura disciplina. E como fica uma aula sobre o movimento dos robôs nessas circunstâncias? Seja como for, as perspectivas que a disciplina apresenta são, contrariando o conforto de uma teoria fria, as do mais acirrado embate da velha e boa luta de classes e seus intermináveis desdobramentos.

Como encarar uma disciplina como essa, num país como esse, se parte dos alunos engenheiros, advogados, professores, etc, inclusive formados nessa universidade, por falta de emprego em suas áreas, tornam-se motoristas ou entregadores por aplicativos? A força da ideologia da tecnologia, sabemos bem, é muito grande. Mas ela consegue dar conta desse transbordamento de contradições?

E o que dizer, finalmente, da alta taxa de evasão nas graduações brasileiras que, somente nos cursos de Tecnologia da Informação, que ironia, segundo matéria do Jornal O Estado de São Paulo, de 8 de julho de 2023, é de quase 70%?

As contradições acima parecem tão pujantes que mesmo que a disciplina se esforce para se esquivar da realidade, não consegue. Por exemplo, como muitas vezes ocorre, a sensação de que a disciplina não passa de mera notícia de um mundo distante, de um noticiário do mundo dos impérios, apresentado a uma espécie de colônia distante, e que, em função disso, os estudantes não conseguem vislumbrar que lugar da fila do pão dos robôs eles poderão ocupar parece um inequívoco e ensurdecedor barulho dessas contradições.

Tudo isso nos leva a acreditar que, por mais festivo que seja o movimento dos robôs, por mais que a ideologia por trás deles seja poderosa e por mais que a teoria fria, pronta, inquestionável, precisa e lógica que os explica, tente se impor, a realidade insiste em se mostrar maior e indiferente a todos esses elementos. E disposta a atacar por todos os lados e a expor todas as fraturas sociais, políticas, econômicas, educacionais, etc., presentes. A matemática do movimento de um robô é a parte mais simples de todo esse processo. Entender como os robôs movem e são movidos pela sociedade é a parte mais fascinante dessa história.

*Aldi Nestor de Souza
Professor do Departamento de Matemática da UFMT-Campus Cuiabá
Membro do GTPFS, Grupo de Trabalho em Política e Formação Sindical da ADUFMAT-Ssind
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