Sexta, 15 Junho 2018 10:48

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT

 

A interrogação do título acima foi inspirada em “Paranoia ou mistificação?”, artigo escrito por Monteiro Lobato contra a exposição que Anita Malfatti realizou, em 1917, após ter voltado da Alemanha, berço do Expressionismo.
 
Impiedoso, Lobato desconsiderou a arte de Malfatti, embora reconhecesse seu “formoso talento”; inconformado com as inovações da exposição, disse:
 
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas... A outra dos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes...
 
Para Lobato, a segunda espécie cairia nas “trevas do esquecimento”.
 
Anita não caiu.
 
Mesmo ciente do erro lobatiano, correndo, pois, o mesmo risco seu, digo: grande parte da produção musical do que – hoje – se propõe a cantar a vez e “a voz do morro” não passa de relatos de vida.
 
Para reforçar a contundência dessa afirmação, tomo um “relato poético” de Drummond, que, no “Poema de Sete Faces”, enuncia sua trajetória existencial:
 
Quando nasci, um anjo torto// desses que vivem na sombra// disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida” (...)// Meu Deus, porque me abandonaste...// se sabia que eu era fraco (...)// Mundo mundo vasto mundo// se eu me chamasse Raimundo// seria uma rima, não seria uma solução...”
 
Mesmo na art engajé, há de se fugir da panfletagem. Até para denunciar a vida de miséria e violência das favelas, ou tratar do racismo, ou explicitar a condição social feminina e/ou do gay etc, há de se ter (e)labor(ação) poética(o), como nos versos drummondianos acima.
 
Ao artista, relatar não basta. Se – no plano da linguagem – não houver elaboração para a expressão artística, aquilo que se pretende/vende como arte não passa de denúncia de uma conjuntura social, econômica e política de exclusão e desigualdades.
 
O fato de relatos virem acompanhados por batidas envolventes, geralmente eletrônicas e repetitivas, por si, não é suficiente para elevar qualquer texto/discurso à condição de arte, por mais dorida e verdadeira que seja sua essência. Arte é suprarrealidade; não é a realidade em si.
 
Portanto, como relatos, respeito os discursos vendidos com registros musicais de inúmeros rapfunk... Como arte, não. Ao dizer isso, estou me afastando da hipocrisia e da visão populista de arte, mesmo quando me circunscrevo ao universo da arte popular.
 
Nessa perspectiva, exemplifico o que considero arte que pode dar voz a brasileiros das periferias, aos negros, a pobres, a mulheres, gays et alii.
 
No séc. 19, o romance que tem o olhar voltado aos da periferia é Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida. Já pelo processo de nominação das personagens, vê-se arte em suas páginas. Genial.
 
Muitos outros da arte-denúncia poderiam ser listados. Para este artigo, elejo Chico César: um negro, pobre, que nasceu em Catolé do Rocha (PB), driblou dificuldades para estudar em Caicó (RN) e depois em João Pessoa (PB). Um gênio. Na música autobiográfica “A prosa impúrpura do Caicó”, esbanja talento:
 
Ah! Caicó arcaico// Em meu peito catolaico// Tudo é descrença e fé// Meu cashcouer mallarmaico// Tudo rejeita e quer”.
 
Isso é relato, mas tão genialmente trabalhado que poucos chegam a compreendê-lo no cerne. Esses versos acionam referências repertoriais, tanto do universo cultural nordestino, quanto de Mallarmé, o poeta francês de Un coup de dés, que divide as águas da literatura ocidental.
 
Quando há talento, um relato vira arte maior. Do contrário, engana-se e viraliza enganos.
 
..........................................
 
PS.: por falar em arte, reforço meu convite já feito: domingo (17/06), às 20h, no Espaço Mosaico (Rua Floriano Peixoto, 512), realizarei uma experiência artística denominada “Só de Pérolas”, no qual cantarei, ao lado da cantora japonesa Akane Iizuka, um conjunto de músicas brasileiras poeticamente bem elaboradas. As músicas serão entremeadas por textos literários. Estão todos convidados. 

Quinta, 07 Junho 2018 13:17

 

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 Roberto Boaventura da Silva Sá

Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP

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A “greve dos caminhoneiros”, freada há alguns dias, ainda requer reflexões, afinal, aquele movimento causou uma impressionante paralisação no país.

A cobertura da mídia, que encobriu tudo o que não dissesse respeito àquela greve, fora prova disso. Nunca se patinou tanto em um mesmo tema. A sensação era de que, com os caminhões parados, os demais problemas tivessem sido estacionados, ou transportados a Marte.

Findado o movimento, é preciso tentar ver quem, e reflexionar sobre os porquês de tanta gente ter ido de carona – também chamada “boleia” – na mesma greve, fosse na cabine ou na carroceria dos caminhões.

Na cabine, onde se encontra o sistema de direção desses veículos, poucos duvidam de que, ali, estiveram muito mais os poderosos empresários de transportes do que os motoristas propriamente ditos, embora fossem estes, e não aqueles, os filmados pela mídia.

Paradoxalmente, os motoristas – que deram visibilidades à greve, não no “chão das fábricas”, mas no asfalto das estradas – foram os primeiros a ir de carona: um conjunto deles, de forma espontânea; outro, induzida. Em tais greves, o locaute é antigo. Na recém encerrada greve, basta ver a quem o conjunto de “conquistas” favoreceu de fato.

Os caminhoneiros autônomos – que aderiram ao movimento por conta própria – foram como os demais brasileiros que, espontaneamente, apoiaram a greve. Os motivos disso passam por uma complexa e estrutural saturação econômico-social vivenciada pela maioria de nosso povo.

Essa postura de apoio vindo da população – que, por conta da greve, padecia pela ausência de produtos diversos – contrariou nosso passado, quase sempre de repulsa, perante quaisquer movimentos de luta.

Em geral, a tendência da maioria, influenciada pela atuação da mídia, sempre foi de se colocar contrária a qualquer tipo de paralisação, independentemente da categoria. Mas a estrutural saturação acima de que falei (falta de emprego, de governo, de perspectiva etc.) parece ter sido maior do que a falta de qualquer tipo de necessidade imediata, fosse onde fosse, em postos de combustível, supermercados etc.

Todavia, no miolo da onda nacional de um apoio impensável a uma greve das mais estranguladoras socialmente falando, grupos anônimos de oportunistas, de antagônicos lados político-ideológicos, também pegaram carona no vácuo da mesma greve.

Juntos, quiçá, com objetivos diferentes, tais agrupamentos impuseram-nos um clima de preocupação. Por conta disso, a presidente do STF, há alguns dias, fez defesa pública da democracia e da República.

Como ápice da estupidez, registro as manifestações, alhures, pedindo a volta dos militares. Cito como exemplo, um vídeo que recebi. Ali, em importante cidade paranaense, um grupo fizera apologia ao militarismo em frente a um batalhão.

Estarrecedor!

Mal sabem aquelas pessoas que, em ditaduras, até mesmo manifestação daquele teor seria, no mínimo, vigiada. Impossível não se lembrar de “Não chores mais”, versão de Gilberto Gil a “No woman, no cry” de Bob Marley:

Bem que eu me lembro// Da gente sentado ali// Na grama do aterro sob o sol// Ob-observando hipócritas// disfarçados, rondando ao redor

A lógica mais elementar das ditaduras é a de vigiar e proibir a presença pessoas reunidas, independentemente da quantidade. Para tais regimes, isso já é sinal de motim.

Lamentável ver tais caroneiros em marcha ré, rumo à força militar. Mesmo com problemas, jamais poderíamos menosprezar a democracia, que, sem dúvida, precisa ser esmerada; contudo, trocada, nunca mais. 

Quarta, 06 Junho 2018 14:30

 

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Em 1989, logo após o término da ditadura, os “Engenheiros do Hawaii” lançaram a canção “Nau à deriva” por conta do desgoverno Sarney, que, à época, embora fosse do Maranhão, pertencia ao PMDB do Amapá.

Sarney era vice de Tancredo, morto inesperadamente assim que fora eleito – ainda que pelas vias indiretas – na disputa com Maluf, hoje, um político decrépito e preso, ainda que em regime domiciliar.

Não tardou, e Sarney, sempre de mãos dadas com os militares, atirou o país em profundo caos; daí que, para os “Engenheiros”, a “nau” (metáfora de Brasil) estava “à deriva, no asfalto ou em alto mar”, “longe demais/ do cais do porto/ perto do caos”.

Hoje, o caos já preocupa; e outra vez nos encontramos nas garras do PMDB, agora, repaginado como MDB. Aliás, esse partido, há décadas, se revitaliza em torno dos ensinamentos do príncipe de Falconeri, qual seja, “tudo deve mudar para que tudo fique como está” (O Leopardo, de Lampedusa).

Ao demarcar o MDB, não esqueço de nenhum outro partido que já tenha ocupado a presidência pós-golpe/64. Cada qual aprontou as suas, ou no campo da política, e/ou no da ética. Desta, de forma mais direta, refiro-me, em especial, a mensalões e a petrolões de tucanos e de petistas, gêmeos da mesma política neoliberal, herdada de Sarney e Collor. 

Por isso, tucanos e petistas não podem ser isentados de nada deste momento. São igualmente corresponsáveis pela atual tragédia. Ambos são irmãos políticos do MDB de Temer et caterva. Infelizmente, todos são espécies do mesmo balaio.

Por conta desse quadro de degradada igualdade entre nossos velhos e velhacos políticos, podemos estar à beira de um enorme equívoco eleitoral. Fato ou foto concreto(a) é que, perante o acúmulo de tantos problemas na condução política de nosso país, está se escancarando, agora, uma porta pra lá de perigosa: o apoio à militarização no país.

Era o que faltava! No caos, o que está ruim realmente parece que pode ficar ainda pior. Impressionante.

Durante a greve do setor dos transportes rodoviários, inicialmente, induzida e conduzida, como sempre, por sagazes empresários desse setor, pôde-se ver de tudo. E de tudo que se pôde ver, destaco os aplausos aos militares, aliás, já convocados por Temer por mais de uma vez para “botar ordem na bagunça geral”.

A aceitação tranquila de pontuais intervenções militares – muitas vezes e alhures até aclamada por cidadãos mais jovens – é o resultado concreto da falência no ensino de História e disciplinas correlatas. Tais aceitações e aclamações são estarrecedoras.

Portanto, pior do que o fracasso decantado, em prosa e verso, dos ensinos de Língua Portuguesa e Matemática, incluo agora o desastre do ensino de nossa história contemporânea.

Pela explicitação do completo desconhecimento do significado das “páginas infelizes” (citando Chico Buarque), produzidas por golpistas de 64, talvez alguns estudantes possam até saber quem descobriu o Brasil, mas não aprenderam, ou não compreenderam, quem fez tanta gente partir “num rabo de foguete”.

Fazendo a referência acima, extraída de J. Bosco e A. Blanc, com raras exceções, tenho a sensação de estar – aos do público mais jovem – desperdiçando metáforas, construídas tão bela e dolorosamente com base nos tempos de arbítrio.

Pena que os “pancadões” não dão conta de profundidade alguma. Por isso, muitas pancadas poderão vir por aí, afinal, parece que se pavimentam perigosas esquinas, as mesmas das quais se referia Belchior em “Como nossos pais”.

Quanto risco!

 

 
 
 
 
Quarta, 23 Maio 2018 17:16

 

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Após publicar o artigo “Livre de Lula” (10/05/18), trocadilho com o qual me contraponho a “Lula livre”, diversos (e)leitores se manifestaram, ora se identificando, ora se opondo ao meu ponto de vista. Seja como for, importante é garantir o debate; e se estivermos abertos aos argumentos alheios, melhor.

Assim pensando, li todas as ponderações, com atenção às divergências. Nelas, busquei algo com que pudesse concordar. Nada. Todavia, encontrei elementos para este artigo: as considerações que pontuam Lula como o político que mais investiu nas universidades.

Será?

Pergunto porque somos descendentes de crendices pra lá de estranhas. De todas, destaco o sebastianismo, ou seja, a “crença no movimento profético que surgiu em Portugal, em fins do século XVI, como consequência do desaparecimento do rei Dom Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir. Uma vez que não havia um corpo, acreditava-se que ele voltaria para salvar Portugal de todos os problemas surgidos após seu desaparecimento”. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sebastianismo).

Antes de tudo, a transcrição acima serve para mostrar nossa ancestralidade em crenças, mitos, fantasias... A realidade nem sempre nos é relevante. Logo, meias-verdades já podem ser tornadas dogmas. Eis o caso.

Na questão em pauta, a centralidade não é comprovar a quantidade de investimentos e políticas voltadas ao ensino superior, mas ver como isso foi feito no governo Lula, e com quais motivos tudo foi arquitetado.

Às instituições particulares, nunca se canalizou tanto recurso público. Além do ProUni e do FIES, há de lembrar dos generosos financiamentos – via BNDS/CEF – à estruturação física daquelas instituições. Contudo, não nos esqueçamos de que, com raras exceções, as privadas não têm nível superior; só legalidade como tal. Logo, nunca se iludiu tanto nossa juventude.

Por que isso foi feito?

Três motivos: 1º) salvar da inadimplência um dos setores da economia; 2º) fomentar eleitores fiéis, pela ilusão de pertencimento à universidade; 3º) dar longevidade político-eleitoral ao PT.

E nas instituições federais?

Dom Lula reinou. Pós-ditadura, ele foi o que mais ingerência impôs às universidades, subjugando-as.

Para sustentar sua ingerência, manteve listas tríplices à escolha de reitores. Como a última palavra cabia ao “rei”, sobre que reitor gestaria aqui e acolá, ele cresceu e foi, com auxílio de súditos partidários espalhados alhures, impondo políticas ditas de “inclusão”.

As cotas foram as primeiras experiências. Sem mexer na estrutura que sustenta a desigualdade social do país, até para não atrapalhar os lucros do capital, nas federais, Dom Lula fez – via políticas focalizadas – acomodação para o mundo ver.

Na mesma linha, criou programas diversificados, que, com raras exceções, tinham intenção apenas eleitoreira.

Na base do toma-lá-dá-cá financeiro, impôs um programa de reestruturação e expansão, irresponsável socialmente; hoje, as federais estão na penúria. As mais recentes, forjadas às pressas, não têm estrutura elementar.   

 Mais: impôs a ilusão do ENEM, que nos obrigada a conviver com injustiças e denúncias a cada edição.

Em contrapartida, nunca foram construídos tantos prédios nas federais, invariavelmente, de péssima qualidade. Desconsiderando os inacabados até hoje, muitos estão vazios, e sem condições de uso. Detalhe: as empreiteiras não reclamaram de nada...

No limite de um artigo, eis algumas considerações minhas sobre a relação Lula e as universidades.

Há quem aprove isso.

Eu não.

 

Quinta, 17 Maio 2018 17:22

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT
 

Hoje, escrevo para me contrapor ao artigo “Ocupar ou usurpar, eis a questão!” (Mídia News; 15/05/2018). Excetuando a paráfrase, à lá Shakespeare, contida no título, no mais, só lugar-comum.

Ao terminar aquela leitura, lembrei do “Blues da Piedade”, de Cazuza e Roberto Frejat, destacando os seguintes versos:

Agora vou cantar pros miseráveis// Que vagam pelo mundo derrotados// Pra essas sementes mal plantadas// Que já nascem com cara de abortadas// Pras pessoas de alma bem pequena... Pra quem vê a luz// Mas não ilumina suas minicertezas...Vamos pedir piedade, Senhor...// Pra essa gente careta e covarde...
 
Extasiante! Pede-se piedade às criaturas gigantescamente pequenas; àquelas que, mesmo vendo alguma luz, não iluminam. Suas certezas são “mini”.
 
Antes, farei o que o autor daquele texto não fez, posto ter atropelado a didática. Quando escrevemos, devemos buscar a lógica preconizada pelos filósofos da antiguidade, bem mais confiáveis do que muitos dos que se pensam filósofos hodiernos.
 
De início, é preciso situar bem o leitor sobre o que será tratado, principalmente quando nossas publicações não são endógenas. Não podemos supor que todos detêm as informações prévias às nossas reflexões.
 
Por isso, localizo a centralidade daquele artigo: a ocupação – por parte dos acadêmicos da UFMT – de prédios da Instituição. Antes dos prédios, eles ocuparam uma das guaritas. Por ordem judicial, foram obrigados a reabri-la.
 
Detalhe: tudo, democraticamente, deliberado em assembleias amplamente divulgadas. Em uma delas, mais de 1.500 estudantes fizeram-se presentes. Emocionante.
 
Mas por que esse movimento?
 
Porque a reitoria, administrando cortes orçamentários, provocados por sucessivos governos, e secundarizando a luta pela universalização/gratuidade da universidade pública, anunciou o aumento da refeição de 1 real para 5,50, que somados (almoço e jantar) totalizam 11 reais/dia. Percentualmente, o aumento é estratosférico.
 
Há quem dirá que a proposta não é absurda. Todavia, o cerne da questão é a manutenção, nas universidades federais, de todos os seus espaços públicos, como sugere o adjetivo em pauta. Simples assim.
 
Mas essa simplicidade sempre encontra “pedras no meio do caminho”. Pior: algumas delas, devidamente personalizadas, se atiram contra os que pensam diferentemente.
 
Por isso, estou me contrapondo ao artigo que considero uma pedra na luta em pauta. Aliás, artigo tão inconsistente que não é preciso sair da introdução para saber se tratar de um equívoco; ali, já é afirmado que “Professores, estudantes, servidores privatizam a universidade quando deliberam pelas greves e ocupações; decidem que estão acima da sociedade civil e que podem instrumentalizar a universidade para defenderem seus interesses privados”.
 
Se o termo final fosse “particulares”, eu aceitaria que, em aglomerações humanas (de direita, centro e esquerda), aproveitadores sempre estão presentes. Mas não é o caso. Assim, contraponho-me à afirmação central do artigo: que os que aprovam ocupações e/ou greve não gostam do debate político.
 
Gostamos, sim; e temos preparo para o enfrentamento político.
 
Quem não gosta é gente como o autor daquele artigo, que quando aparece em assembleias, é derrotada pelo voto. As forças conservadoras ainda não cobriram com suas tenebrosas sombras toda a vida universitária. Ainda resistimos aos guardiões do status quo. Estes, sim, são antidemocráticos. Como tais, despreparados para tudo; às vezes, até mesmo para escrever um simples artigo.

 

Quinta, 10 Maio 2018 13:10

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá

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Depois do artigo “Longevidade da razão cínica”, publicado no dia 03/05/18, no qual trato do cinismo de artistas e intelectuais, que parecem ter deliberado pelo cultivo de um tipo de amnésia seletiva, além de uma conveniente cegueira, decidi expor minha oposição ao movimento que pede a liberdade de Lula. Por isso, na contramão do “Lula Livre”, lanço o trocadilho “Livre de Lula”.

Começo por uma leitura da música “Lula livre”, um sambinha de última qualidade, recheado de bizarros clichês, composto por Claudinho Guimarães, e cantado por Beth Carvalho, intérprete de tantos sambas de excelência. Que triste ver essa bamba cair, agora, não mais nos sambas de “cartolas”, “noéis” e outros menestréis, mas na panfletagem chula em prol de uma “Ideia” perversa e obsecada por corrupção. 

Pois bem. Do texto em análise, no plano formal, nada mais há de relevante do que um conjunto de rimas, se não pobres, nada nobres; no entanto, todas óbvias. Só por isso, o texto/panfleto já está condenado à miséria artística. A arte sempre pede um quê de imprevisibilidade. Ali não há nada disso. Nenhuma metáfora.

Na linha dos interdiscursivos, identifico algo próximo da excrescência musical “Pra frente, Brasil”, produzida durante a ditadura militar por Dom e Ravel. Daquilo, destaco:

...Todos juntos, vamos, pra frente Brasil... De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão. Todos ligados na mesma emoção. Tudo é um só coração (...)”.

Agora, vejam os infelizes versos de Claudinho Guimarães para Beth Carvalho cantar em defesa da liberdade de Lula:

Pro Brasil andar pra frente// vamos caminhar// Seja elo da corrente...// Ele (Lula) andando livre no país// Ele une o país// Semeando amor...”.

De ambos os textos, há coincidências literais de três palavras/expressões-chaves: “pra frente (Brasil)”; “vamos”; “corrente”.

Fora dessas coincidências, mas na mesma lógica semântico-discursiva, destaco, do texto “Lula livre”, o verso “Ele une o país”, que se aproxima de “...todos juntos...”, da composição dos anos 70.

Por essa de “Lula livre” com “Pra frente, Brasil”, um signo da ditadura que se apropriara do sucesso da Seleção de Futebol no México, para ludibriar nosso povo, politicamente, muito sonolento, nem eu esperava. Em suma, são dois textos miseravelmente panfletários. Ambos mentirosos. Cada qual em seu tempo, ambos perigosos.

Mas por que “há perigo na esquina” (ops.), ou seja, na música/panfleto “Lula livre”?

Porque, por trás desse movimento – que, ao contrário do que diz o panfleto de Guimarães, Lula só desune o país – há uma prática preocupante de desmoralização do judiciário, que é falível, mas não a ponto de ter cometido qualquer perseguição política.

Nesse sentido, o ministro Gilmar Mendes lembrou, em entrevista (EFE: 04/05/18), que, dos onze ministros do STF, oito são indicados do PT. Disse mais:

O que ocorreu foi que, quando assumiu o PT, que tinha uma pequena base parlamentar, buscou apoio de outros partidos aos quais propôs como contrapartida a distribuição de recursos".

Mendes referiu-se, primeiro, ao esquema do Mensalão; depois, o Petrolão: um “produto” tipo exportação. Que o digam alguns países africanos, latinos e caribenhos.

Enfim, hoje, no Brasil, não há nenhum perseguido político que precisasse ser libertado. Contra todos os políticos e empresários já tornados réus, há fatos e fartas provas.

Contra fatos, só a amnésia, a cegueira e/ou o cinismo político; ou seja, perigosos chamarizes que podem chamar o que não se deseja...

 

Quarta, 02 Maio 2018 14:02

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá

Dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT

 

Envolto ao clima do 1º de maio, reflito sobre os recentes acontecimentos que envolveram o PT e sua militância. Até agora, eu nada publicara sobre a prisão de Lula. Meu silêncio, ainda que não fizesse parte de razões cínicas, não escapava da covardia acadêmica, algo nada nobre.

 

Mas, afinal, de que “razão cínica” quero falar?

 

Respondo, usando parte das considerações que César Benjamin – um dos fundadores do PT – fez publicar no artigo “O triunfo da razão cínica” (Revista Caros Amigos, n. 80; nov/2003).

 

Há quinze anos, César deixava o PT. De seus motivos, destaco:

 

  1. “O PT está morrendo... suas posições históricas - sobre previdência, transgênicos, política econômica, FMI ou qualquer outro assunto - estão sempre prontas a ser sacrificadas no balcão em que se fazem as negociações...”;
  2. “Os que construíram o PT e não se corromperam nele não têm mais lugar... É tênue a separação entre política e negócios. Candidatos a deputado, até ontem assalariados, falam em levantar 10 ou 20 milhões para suas campanhas, sabe-se lá de que forma... Não há mais pudor...”;
  3. A crise do PT é a mais profunda da esquerda... A cooptação do PT pelo sistema de poder é a mais vergonhosa de todas, pois vem desassociada de qualquer ganho real para a base social que ele deveria representarLula aceitou ser o algoz dessa base...”;
  4. No lugar da verdade, marketing, dissimulação e engodo, uma enorme operação de deseducação política. No lugar de uma ação coletiva, um líder que... começa a se considerar semideus (“Eu sou uma ideia”, já disse Lula). No lugar de um projeto, espertezas... No lugar de diálogo, ameaças, chantagens, nomeações, demissões. No lugar da luta de ideias, movimentos sempre nas sombras. É o triunfo da razão cínica”
  5. “Aos pobres, Lula pede infinita paciência, enquanto atende com presteza... os financiadores de campanhas...”.

 

O artigo de César foi ignorado.

 

Não tardou, e, em 2005, explodiu o escândalo do Mensalão do PT. Mesmo diante de fatos, os cínicos, incluindo intelectuais, saíram dizendo que aquilo não passava de artimanhas das elites.

 

Não eram. Eram conchavos do PT com agentes das elites. Resultado: líderes do Partido foram condenados e presos. Dali em diante, o PT passou a promover uma divisão social, perguntando: e os outros (corruptos do PSDB et alii)?

 

Sua preocupação (a do “nós”) com os “outros” foi bem maior do que a ética devida. Na sequência, mais sofisticado e perverso, nova bomba: o Petrolão, ou seja, corrupção tipo outra camada do mesmo bolo podre.

 

Tanta falta de ética não isentaria, ad aeternum, Lula, hoje, devidamente preso. Outros petistas e líderes de outros partidos, igualmente corruptos, deverão ter direito aos mesmos metros quadrados. É necessário. Nossa democracia não pode sofrer golpe nesse processo em curso; aliás, seria o único até agora.

 

E é justamente em cima da palavra “golpe” que a razão cínica se revitaliza, tornando-se longeva. Que apeados do poder e apartados das tetas do Estado chorem, é normal. Senhores feudais e absolutistas também já derramaram lágrimas. Agora, é demais que intelectuais e artistas, que se enganaram um dia, queiram continuar se enganando.

 

Qual é o problema de – à lá Cazuza – reconhecer que nossos heróis morreram todos? Intelectuais também erram. Todavia, se insistirem em erros, há ditados populares que machucam, mas definem bem a postura.

 

Enfim, o cinismo de artistas e intelectuais me preocupa. Isso ajuda a consolidar a mentira de que Lula seja preso político. Não é.

 

Simples (e complicado) assim.

 

Quinta, 26 Abril 2018 09:45

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo pela USP/Professor da UFMT
 

 

Na antiguidade, o romano Terêncio – dramaturgo e poeta – dissera um enunciado lapidar: “Eu sou homem, e nada do que é humano me é estranho”.

No início do século XX, o russo Mikhail Bakhtin – filósofo da linguagem – apontara-nos que nenhum signo verbal se realiza fora de um contexto social.

Sendo assim, o enunciado de Terêncio – para o bem ou mal – tinha alvo mirado. Do nada, aquele romano “das antigas” não teria dito aquilo.

De minha parte, tenho relutado em aceitar a frase terenciana, principalmente quando sua seta está mirada para o que há de pouco nobre nas realizações do humano, que não são poucas e tampouco suaves; custa-me crer em muitas coisas das que fico sabendo. Deliberadamente, evito saber de muitas coisas.

Todavia, nem sempre essa disposição fica incólume, pois, assim como Terêncio, sou um ser da espécie humana; logo, bakhitiniamente falando, um ser eminentemente social.

Por essa destinação, uma vez que não sou árvore, pedra ou outra coisa qualquer, dias atrás, fui informado da existência de Jojo Todyinho, uma “artista” até então desconhecida por mim.

Pois bem. A referida “artista” conseguiu me chocar, não pelos gigantescos seios, que parecem ser sua marca artística, mas por sua ascensão meteórica; num estalar de dedos, eis que começaram a surgir convites para shows, com altos cachês, participação em programas de TV, entrevistas e matérias jornalísticas; até artigos de opinião, como este, por exemplo.

Resumindo: isso tudo, somado a outros meios de divulgação, resultou em Jojo Todyinho:  “artista” de projeção, que, paradoxal e obviamente, não tem peso artístico algum. Sua “obra” solo é entretenimento chulo a mentes vazias; por isso mesmo, naturalmente, agiganta-se; é quase imbatível. Contudo, pouca coisa se poderá criar depois de sua presença no mercado das futilidades, vendidas, aos desatentos, como manifestação artístico-popular da periferia. 

Para provar que não há arte em seu trabalho, destaco alguns “versos” produzidos por essa funkeira, de 21 anos, que saiu da internet para ocupar espaços antes impensáveis:

Que tiro foi esse?// Que tiro foi esse que tá um arraso?!// Que tiro foi esse, viado?// Que tiro foi esse que tá um arraso?!// Samba na cara da inimiga// Vai, samba// Desfila com as amigas...// Quer causar, a gente causa// Quer sambar, a gente pisa!// Quem olha o nosso bonde, pira// Quer causar, a gente causa...”

A transcrição acima é um exemplar, longe de ser único, do baixíssimo patamar cultural e educacional em que já chegou nosso país. Temo pelo dia em que só nos restará o bizarro, pois sua naturalização é humanamente espantosa.

Mais do que nunca, precisamos de políticas públicas para as verdadeiras manifestações culturais. Contudo, teremos de ter discernimento entre o que de fato é manifestação cultural de nosso povo e o que não passa de produto mercadológico; afinal, em sociedades capitalistas, sobretudo, e sobre todas, nada do que é humano pode espantar alguém.  

P.S.: já findado o artigo, fiquei sabendo, pelo UOL, que Todyinho acabara de lançar outro hit: "Vou Com Tudo". Nele, a “artista” enfrenta uma amiga falsa e ordena: “Tira a mão das minhas gavetas, bebê”.

Conforme explicações suas, esse bordão pode ser traduzido por: “Você está levando a pessoa no ‘blindão’ e a pessoa fica de sacanagem”.

Detalhe: a funkeira, apoiando-o nos volumosos seios, assinou um contrato com a Universal Music para o lançamento desse e dos próximos singles.

Trauma foverever.

Um país culturalmente rico não merecia tamanha indigência.

Sexta, 20 Abril 2018 15:19

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Roberto Boaventura da Silva Sá

Dr. em Jornalismo pela USP/Professor da UFMT

Na linda canção “Pranto do Poeta”, Cartola registra uma certeza sua diante da morte: em “Mangueira// Quando morre um poeta// Todos choram”, embora, paradoxalmente, seja “um pranto sem lenço// Que alegra a gente”.

No dia 16/04/18, não a Mangueira, mas o Império Serrano e o Brasil inteiro viveram a experiência da morte, aos 96 anos, de Ivone Lara, uma compositora/poeta, que aos 13 anos de idade, brindou-nos com “Tiê”, uma canção feita a um passarinho que havia ganhado como presente de aniversário:

“...Passarinho estimado// Que me deu inspiração// Dos meus tempos de criança...”

E a inspiração daquele juvenil momento perdurou até pouco antes de sua morte. Ivone Lara teria deixado aproximadamente quarenta canções feitas nos últimos quatro anos.

Mas, independentemente dessas novidades, até por conta de sua saúde, bem debilitada nos últimos anos, o que já havia composto era suficiente para que ela fosse reverenciada por todos os que apreciam uma canção liricamente bem feita. Reverência que lhe rendeu o respeitoso tratamento de Dona, a dama do samba.

Dentre seus apreciadores, estão os principais nomes da MPB. Maria Bethânia e Gal Costa talvez tenham sido as admiradoras mais importantes para sua carreira. Ambas gravaram a antológica e delicada canção “Sonho Meu”, composta por Ivone Lara, em parceria com Délcio Carvalho:

“Sonho meu// Vai buscar quem mora longe... Sinto o canto da noite// Na boca do vento// Fazer a dança das flores// No meu pensamento// Traz a pureza de um samba// Sentidos, marcado das mágoas de amor// Um samba que mexe o corpo da gente// E o vento vadio embalando a flor// Sonho meu”.

“Sonho Meu” veio a público no final dos anos 70. Por isso, ainda que não houvesse confirmação alguma, ficava bem difícil não imaginar que aquele poema musicado não fizesse referência a exilados políticos. Vale lembrar que o país vivia seus piores anos do regime militar; logo, o exílio fizera muita gente querida viver distante da terra onde os sabiás cantavam nas palmeiras ou nas laranjeiras.

Seja como for, na esteira de Clementina de Jesus e Jovelina Pérola Negra, Dona Ivone Lara completou uma singular tríade de mulheres negras, que viveram e venceram preconceitos, mas sem nunca servirem, deliberadamente, de bandeira ideológica a nenhuma militância de grupos.

Questionada sobre os preconceitos de que era vítima, Ivone Lara, com um lindo sorriso negro, respondeu que não ligava para isso; que, sempre firme, seguia adiante sua vida, compondo e cantando.

E por falar em sorriso negro, este foi o título de uma de suas canções – lírica e politicamente – mais lindas. Com base estrutural consolidada em um forte conjunto anafórico, tudo ali é feito com muita delicadeza poética. Às vezes, a sutileza da arte pode ser uma bandeira, mas sem que seja identificada como tal:

“Um sorriso negro, um abraço negro// Traz... felicidade// Negro sem emprego, fica sem sossego// Negro é a raiz da liberdade// Negro é uma cor de respeito// Negro é a inspiração// Negro é silêncio, é luto// Negro é... a solidão//  Negro que já foi escravo// Negro é a voz da verdade// Negro é destino, é amor// Negro também é saudade...”

E saudade é o que nos deixa Dona Ivone Lara. Todavia, sua falta física entre nós será sempre diminuída toda vez que, em algum lugar desse imenso e miscigenado país, em algum show ou roda de samba, no lugar do pranto, alguém, respeitosamente, cantar qualquer uma de suas inúmeras canções, todas, poeticamente, emocionantes.

Quarta, 11 Abril 2018 15:45

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Roberto Boaventura da Silva Sá

Dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT

 

 

“Nunca, como antes, na história deste país”, vivemos dias tão tensos quanto inusitados. Por isso, falar de nossa atual conjuntura é pôr em risco até velhas amizades.

 

Mesmo ciente disso, “data venia", arrisco dizer que, na sessão do STF, de 04/04/18, depois da qual se pôde prender o ex-presidente Lula, o país teve uma importante aula sobre democracia e postura coerente. Explicarei adiante.

 

Como sou amante da arte do discurso, assisti à transmissão daquele evento praticamente o tempo inteiro.

 

De chofre, destaco a qualidade dos discursos dos onze ministros, independentemente de seus votos. Poucos foram os momentos de fragilidade na abordagem que cada qual fez para consolidar sua posição diante da matéria em pauta.

 

Porém, do conjunto de discursos, saliento o voto de Rosa Weber: ápice daquela “aula”. Como todos sabiam, além de outras mais, aquele seria o voto que:

 

1º) poria em risco – ou não – a estabilidade jurídica no país, pois, naquele momento, o STF tinha direcionamento coletivamente aprovado em 2016 para balizar a matéria. Até que haja reversão, o norteamento está dado, querendo ou não;

 

2º) selaria a existência pessoal e os rumos políticos de Lula;

 

3º) poria em constrangimentos futuros – ou não mais – a existência de diversos agentes da elite (políticos e empresários), já presos ou prestes a isso;

 

4º) redefiniria os rumos da própria eleição presidencial de outubro.

 

Mas não quero falar – pelo menos não neste artigo – desse futuro. Quero falar de duas das qualidades mais difíceis de serem vistas em tempos de relativizações gerais: a coerência e o pleno exercício democrático.

 

Ser coerente e democrata não são posturas para qualquer um. Por isso, exalto situações nas quais a coerência e a prática da democracia ficam evidentes, mesmo quando não agradam muitos da plateia; aliás, foi o que fez Rosa na sessão do STF já referenciada.

 

Em rápidas palavras, em 2016, a maioria do pleno do STF deliberou que as sentenças de condenados em segunda instância já poderiam ser cumpridas, em regime de reclusão, sem prejuízo de o réu continuar recorrendo a instâncias superiores.

 

Pois bem. Rosa foi uma dos cinco derrotados à ocasião. A partir disso, de 58 habeas corpus que julgou, não acatou 57 deles. Logo, não poderia, naquele momento, agir diferentemente no caso de Lula. A demanda de Lula era igual as dos demais recusados anteriormente.

 

Em outras palavras, Weber, mesmo pensando diferentemente da maioria, com o colegiado ficou para se manter como um ser democrático. Atitude rara, que deveria ser normal em sociedades democráticas. Caso agisse de forma diferente do que fez, agiria de maneira casuística. De resto, por nada, ninguém deveria defender atitudes tais.

 

Ao respeitar a colegialidade, Rosa manteve a linha da coerência, outra característica rara, que também deveria estar na normalidade de nossas ações, mas nem sempre está.

 

Não por acaso, no presente cenário político, cito, como exemplo, a vivência nas universidades, ressalvando as exceções. Apesar da indiscutível estrutura democrática de tais espaços, a experiência da democracia, por conseguinte, da coerência, é algo que raramente podemos dizer que vivenciamos de maneira plena. Não raras são as vezes que nossos representantes desrespeitam a colegialidade, em prol de suas interpretações e/ou interesses. Daí a dificuldade de muita gente, hoje, inclusive no meio acadêmico, entender o que é respeito a decisões coletivas. 

 

De qualquer forma, as lições de Rosa nos foram dadas; pena que em circunstâncias tão constrangedoras.