Terça, 02 Abril 2019 17:33

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Paulo Wescley M. Pinheiro

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Universidade

 

Na fábrica de trabalhadores

Não mais apaga dores

Não mais quadros e cores

Só moedores de humanos

 

Tem espremedor de anos

Tem um ralador de sonhos

Tem fermento de intempéries

Tem forno, lenha e esteira

Para produzir em série

 

Tem tempero de arrogância

Tem corantes de ganância

No discurso do produto

E na ferramenta do mestre

Tem doença e tem cobrança

Tem tremores e tributos

Carne fresca de doutores

Tem de tudo e tem de nada

Tem de pasto e tem de peste

Na sala dos roedores

 

Entra semestre e sai semestre

A fábrica trabalha dores

 

1.1. Prolegômenos sobre a Máquina: (não) leia o manual

 

    A forma como temos lidado com a produção e socialização de conhecimento tem nos colocado em esparrelas capciosas para nossos espaços de trabalho e estudo. Entramelados numa robusta engrenagem vamos seguindo o curso das catracas intelectuais, lubrificando o sistema com nosso suor, queimando o combustível dos nossos neurônios até não sabermos mais quem somos nós e quem é a máquina institucional que vivemos boa parte de nossos dias.

    No dia 29 de março de 2019, em uma mesa do Pré-Encontro Nacional de Educação, no auditório da ADUFMAT, dialogamos sobre uma interrogação tão pertinente quanto espinhosa: conhecimento para que e para quem? Em tempos de desconstrução da universidades nunca foi tão necessário se perguntar sobre isso.

    As gavetas das especialidades da ciência burguesa tem apresentado sua forma mais grave de decadência ideológica nesses tempos de crise. Isso hipertrofia o caráter mercadológico da ciência e o conhecimento como mercadoria. Cada vez mais distante de uma perspectiva de práxis que aproxime ação e reflexão partindo das necessidades coletivas, vamos naturalizando uma formação procedimental e cultivando relações de estranhamento entre os sujeitos da comunidade acadêmica.

    Da sacralização da razão instrumental abstrata ao processo de demonização de todo conhecimento racional temos nos percebido longe da superação da falsa dualidade entre o conservadorismo e a crítica pós-moderna. Um apelo ao pragmatismo tem se ampliado nos espaços da academia. A universidade tem se transformado em um espaço cada vez menos possível de disputas contraditórias e cada vez mais afirmado, explicitamente ou de forma tênue, o caráter desumanizador, privilegiando o ser tecnificado, o irracionalismo e a mistificação da realidade.

    O prólogo para entender uma série de problemas que vivenciamos enquanto docentes, discentes e demais trabalhadores da universidade perpassa por compreender como temos constituído nossas relações, qual a essência dessa instituição e como ela tem aprofundado os preceitos de uma determinada sociabilidade. Tentaremos apresentar esse debate em cinco seções de textos (incluindo esse) que compõem aquilo que eu intitulei de “Ensaio sobre a magnífica máquina de moer gente”.

    Nessa primeira primeira parte, procuramos introduzir a questão e apresentar a ênfase que daremos ao longo das formulações: o processo de expressões de sofrimento e adoecimento mental na universidade. A lógica de formulação e socialização de conhecimentos sem sentido é expressão de uma sociedade sem sentido e, assim, temos manifestado características similares de ampliação da exploração, das opressões e de sofrimento tal e qual outros espaços de trabalho presentes em nosso tempo histórico.

   

1.2. Reflexões sobre o sofrimento mental na Universidade

 

O processo de adoecimento no âmbito acadêmico não é propriamente uma novidade. Tem sido frequente o crescimento dos debates sobre o assunto, embora os eventos e proposições estejam longe de encontrar respostas efetivas diante da complexidade do problema.

O Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (FONAPRACE), no ano 2018, desenvolveu um levantamento que demonstra a agudização dos processos de adoecimento mental entre os/as alunos/as. No ano anterior, ganhou as redes sociais uma campanha que explicitava uma série de formas do sofrimento discente dentro das universidades brasileiras.

Com o mote #NãoÉNormal, as imagens e textos circulavam denunciando a naturalização do modelo arcaico e hierárquico da academia, expressando a  perpetuação do autoritarismo, de diversas formas de preconceito e do silenciamento discente que, junto com diversos outros fatores, culminava em exposições de depoimentos sobre crises de ansiedade, processos depressivos, somatizações físicas, entre outras questões graves. Em matéria no dia 18 de setembro de 2017, o site Olhar Direto apresentou um dado expressivo que apontava que 10% das/dos estudantes da UFMT já pensaram em suicídio.

Não é preciso ser especialista em saúde mental para perceber que o cotidiano da universidade tem sido cada vez mais difícil. É perceptível a dificuldade progressiva em realizar processos efetivos em sala de aula. O que vemos são discentes cansadas/os, em sua maioria, aparentemente, desinteressadas/os ou desencantadas/os com o processo de formação. O sofrimento latente salta aos olhos de maneira multiforme, ora na apatia, ora de modo agressivo, outras vezes, desesperado. O difícil é tirar o véu da naturalização disso tudo e não cair em análises rasas, maniqueístas e imediatas da questão.

Não é raro a perpetuação de formas insistentemente equivocadas do trato sobre saúde mental e a concepção do que é ser saudável e doente nessa sociedade. Ora tratada como algo menor, do campo dos valores pessoais, da vida privada e de um plano afeito à “força de vontade”, também se chega ao processo de fetichização dos modismos de tratamento e, por fim, ao tradicional e limitado trato centrado em questões fisiológicas, genéticas, neurológicas e, em larga medida, protagonizando a centralidade do diagnóstico, da descrição de sintomas, do modelo biomédico como exclusividade e do uso de farmacos como principal elemento.

Na esteira do recrudescimento do conservadorismo, cresce ainda a imposição da moralização, da repressão e do disciplinamento como pilares importantes para fortalecer a desresponsabilização do Estado em detrimento do mercado e da refilantropização da saúde, além do enclausuramento, do proibicionismo, da desconstrução da laicidade e da focalização em ações individualizantes.

No tempo histórico da internação compulsória, das comunidades terapéuticas, da venda desmedida de remédios tarja preta, da política de “guerra às drogas” em detrimento da política de redução de danos, do senso comum dos livros de auto-ajuda e coach’s, além da assombrosa revitalização do manicômio, debater sobre saúde mental de forma rigorosa é mais que salutar, faz parte de uma reflexão sobre o caminho da barbárie que temos construído.

O que surge em nosso cotidiano é resultado de um vácuo nas políticas sociais, de uma forma reacionária do trato das expressões da questão social e da concentração de uma política de saúde mental que fortalece sua contrarreforma e privatização. A forma como temos atuado no “fazer ciência” não está alheia a tudo isso.

Entre tantas discussões e exposições de diversos olhares, quase sempre, se perde algo crucial: se está todo mundo mal deve haver algo de errado com esse lugar. Entra dia e sai dia, pessoas diferentes, com vivências particulares e distintas formas de acessá-las tem reclamado do cotidiano universitário e isso acontece entre alunos/as, professores/as e técnicos-administrativos/as. A conclusão óbvia é que numa sociedade profundamente adoecedora a universidade não é uma bolha.

Formar profissionais que não terão emprego para pessoas que não terão acesso aos serviços, produzindo pesquisas que não tem financiamento e socializando em periódicos que não são lidos tem sido a tônica da máquina de moer gente, dilapidando o espírito de quem sonha construir um outro processo educativo,diminuindo a resistência aos ataques às possibilidades de atividades emancipatórias dentro desse lugar.

Quando não nos concentramos em debater um projeto de universidade articulado ao desenvolvimento de um projeto de sociedade tendemos à articulação imediata das questões fenomênicas como elemento essencial. Assim, passamos a não refletir sobre quais as determinações de um cotidiano tão pesado e vamos apenas reagindo sobre ele.

Se não passarmos a pensar a universidade como um instrumento que precisa ser disputado para uma lógica efetivamente pública, garantindo um tipo de produção e formação que realize os sujeitos que a constroem e a classe que a alimenta estaremos aprofundando o caráter adoecedor desta instituição.

 

1.2. O estranhamento no espaço do conhecimento: universidade, relações sociais e coisificação

 

Nesse sentido, embora reveladora e importante, a campanha #Nãoénormal só expressa a ponta de um complexo fenômeno e, se percebida de modo isolado, tende a concentrar no/a professor/a o problema. Nas reflexões da maioria das pessoas que compartilhavam as peças da campanha a dimensão mais reproduzida era apenas uma crítica à forma de avaliação, à eventual tirania, ao ritmo exigido na formação acadêmica.

Embora saibamos o quão problemática é a forma de avaliação, mesmo que não seja ficção os inúmeros casos de abuso de autoridade e, por fim, reconhecendo as intempéries do aligeiramento da formação, há muito mais a ser colocado em relação às questões que envolvem a temática central para que o protagonismo do problema não caia sobre os ombros dos sujeitos que também são atingidos: os/as trabalhadores/as da universidade, inclusive, os/as professores/as

O coquetel de uma instituição historicamente determinada pelas elites, aprofundada no tecnicismo, no conservadorismo e na lógica formal-abstrata é um pontapé para entender que a idealização da academia encobre que ela é fruto e reprodutora da sociedade e de seus valores hegemônicos. O aspecto contraditório e contra-hegemônico sempre enfrentou a violência maquiada nos legalismos, formalismos, burocracias e afins.

Sendo assim, o racismo estrutural, a naturalização machista, lgbtfóbica e misógina, a falta de acessibilidade para deficientes, a desigualdade regional das instituições, o acesso não universal e tantas outras formas de reprodução das opressões aparecem em práticas e em componentes de todos os sujeitos que compõem a comunidade acadêmica.

Esses elementos se expressam desde os trotes estudantis à insensibilidade nas aulas por parte de professores, aparecem na falta de políticas efetivas de assistência estudantil, na hegemonia de um conhecimento eurocêntrico da ciência burguesa, na reprodução da desigualdade de financiamento e estamento de profissões do ensino superior, na burocracia e no burocratismo dos processos internos, etc.   

A lógica do capital se capilariza por todos os espaços e a universidade, ao invés de ser a idealizada e romantizada “fábrica intelectual dos trabalhadores” é, apenas, uma fábrica de trabalhadores, produzindo sujeitos podados para a esfera do mercado e assumindo o individualismo e todas as suas formas de expressão ideológica, desde a culpabilização de sujeitos até a miragem do oasis meritocrático e empreendedor diante do desértico cotidiano desumanizador.

Na agudização da crise da sociabilidade hegemônica o esfacelamento estrutural do espaço universitário degrada condições de trabalho e estudo, fortalece perspectivas conservadoras no campo teórico, potencializa críticas meramente espontaneístas e voluntaristas, numa perspectiva irracionalista e infantilizada.

Tudo isso reverbera em atitudes e práticas dos sujeitos que materializam posturas coisificadas, autoritárias e violentas, sejam na reprodução do status quo, seja na suposta tentativa de bradar suas intempéries para a superação. As disputas pelos quinhões produtivistas diante do corte de verbas são expressões disso.

Ao invés de uma leitura profunda da lógica imposta há, costumeiramente, apenas um senso comum esclarecido, que percebe expressões cotidianas de reprodução da mesma e impõe à elas a essência enquanto imediaticidade. A partir disso se esgota a crítica estrutural e se constitui à “caça às bruxas”, nos supostos jogos do micro-poder, sem perceber que há algo mais amplo que promulga a vigência dessas relações estranhadas nos diversos sujeitos e grupos particulares que vivem da venda de sua força de trabalho.

Não podemos fechar os olhos para as manifestações de violência, preconceito e discriminação no espaço universitário. Isso implica perceber suas expressões e o que representam essas posturas, responsabilizar legalmente quem pratica e pressionar politicamente por respostas institucionais para além do punitivismo.  

É necessário pensar os processo de contradições inerentes dessa sociedade que pulsam em diferentes formas de desenvolvimento de atos desumanizadores. Seja na lógica elitista dessa estrutura, que possibilita a reprodução do autoritarismo em muitos docentes, passando pelo processo de redução da importância dos trabalho dos técnicos-administrativos e a diminuição de seus postos de trabalho, chegando ainda no espraiamento de uma concepção desvirtuada, reproduzida por  grande parcela de discentes, oriundos da educação bancária, que tratam a formação como uma mercadoria e o professor como um instrumento de trabalho.

Quando permanecemos apenas descrevendo as manifestações imediatas passamos a desresponsabilizar a estrutura, amortecemos o impacto da lógica institucional e jogamos novamente para os indivíduos a responsabilidade de lidar com coisas muito mais complexas do que o que surge no campo da aparência. Uma manifestação de coisificação da práxis educativa se solidifica.

Semelhante à alienação no processo produtivo, um não-reconhecimento diante daquilo que realizamos se constitui em nosso cotidiano. O/a professor/a não se realiza naquilo que produz, envolto nos prazos, formalismos do sistema de avaliação da graduação e da pós-graduação e baixo rendimento com os alunos em sala de aula, cresce uma frustração constante. O/a profissional não tem identidade com os seus pares, diante da concorrência e do fomento da competitividade como tática de resistência individual na busca por espaço físico, notoriedade acadêmica ou financiamento de pesquisa e nem se enxerga nos/nas estudantes, diante da precariedade do exercício profissional.

Os técnicos-administrativos também vivem semelhante sentimento. Numa condição de trabalho distinta dentro do espaço de saber, vivenciam a desvalorização do seu trabalho, diante de uma imagem historicamente constituída de sobreposição do trabalho intelectual, presenciam o processo paulatino de substituição de sua função, imbuída cada vez mais aos docentes, por via da tecnologia, imposta aos estudantes empobrecidos pela tática de pseudo-estágios, de uma pseudo-assistência estudantil, que coloca a condição de recebimento de bolsa diante de horas de trabalho administrativo. Para os assalariados da universidade, docentes e técnicos, o assédio moral vira uma prática tão recorrente quanto naturalizada.

Aos discentes essa condição também se reverbera e com muito mais força. Sem identidade com os/as professores/as, concorrendo com os/as colegas, sem encontrar sentido no que estudam e nas perspectivas profissionais, a formação vira um peso sem sentido, uma via crucis a ser ultrapassada sem saber porquê. O/a professor/a adoecido/a, assoberbado de encargos, realizando trabalhos fora do horário de expediente e expressando os processos de ataques a sua carreira é um anti-clímax para o alunado que espera uma imagem do profissional idealizado como modelo da sua profissão.  

Com os trabalhos, provas, seminários, listas de presença e tantos outros medidores o foco permanece na nota que será registrada. O espaço de aprendizado se torna um momento do dia a ser superado e não aproveitado. Estudantes disputam, comparam, cobram, fiscalizam dentro da competição naturalizada no espaço do saber. Dentro da própria categoria haverá a seletividade constante. Desde o sistema de entrada da universidade, passando pela disputa das bolsas de iniciação científica, extensão e monitoria, o fomento de uma cultura egoísta é sempre potencializada.

Na política de assistência estudantil, o viés focalista reproduz a disputa para provar quem é mais pobre. Cada vez mais o caráter universal vai perdendo força para uma percepção residual.  Isso contamina, inclusive, os coletivos políticos que afirmam lutar contra essa lógica

Nessa equação, existe ainda o conjunto de trabalhadores/as terceirizados/as, invisíveis, silenciados e cada dia mais precarizados em seus processos de trabalho, temperando o pesado ar da academia, que busca atalhos cruéis diante de seu processo de desmantelamento.

Assim, a “alienação intelectual” torna a experiência universitária um processo autofágico. Todos praguejam a falta de condições como algo universal, mas buscam saídas particulares. O individualismo é a primeira expressão, porém, além dele, o corporativismo também se fortalece. Cada setor, grupo, curso, departamento, instituto, categoria luta pelo seu pirão primeiro diante da pouca farinha que é garantida.

Na parte que nos cabe nesse latifúndio vamos cultivando um processo educativo anti-emancipatório. Partindo da questão discente é impossível não lembrar daquele conhecido conto de Rubem Alves onde Pinóquio entra humano na escola e vai virando um boneco de madeira ao longo da formação. A paródia que demonstra o avesso do processo de humanização é pertinente.

Diante de tudo isso, já podemos notar que não há como generalizar uma categoria e culpabilizar apenas um sujeito diante de questões tão complexas. Pensar a lógica da universidade e porque ela tem se perpetuado num cotidiano de disputas, lamentações e sofrimento mental é descortinar o cabo de guerra entre diferentes sujeitos que, tendo papéis distintos, sofrem de modo peculiar as expressões de uma estrutura problemática.

Isso significa pensar a totalidade, realizar uma crítica estrutural, cobrar responsabilidade institucional, mas também pensarmos criticamente como catalisamos esse processo, como contraditoriamente todos os sujeitos acabam por reproduzir essa lógica.

 

Sexta, 15 Março 2019 10:35


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Paulo Wescley M. Pinheiro

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Os primeiros meses de 2019 se arrastam. Entre tragédias ambientais, incidentes, acidentes, caricaturas de seres humanos no poder, espraiamento da violência, reverberação do preconceito e anestesia geral na indignação coletiva organizada caminhamos naturalizando a unidade Estado Penal/Mercado ditatorial como elemento inexorável. A vida cotidiana sangra.

 

Na Nova Era dos Mitos, abrimos nossa caixa de Pandora e soltamos os espíritos da barbárie com a autorização simbólica da agressividade, das práticas bélicas como costume e da falsificação do real como religião. Não é só pau e pedra, são os tiros de sempre e, cada vez mais, achamos que é o fim do caminho. 

 

Na enxurrada diária mães e pais choram crianças mortas, enlameadas, incendiadas, assassinadas.  Quem acha que não estamos produzindo a barbárie na sociedade da exploração, opressão e da repressão comunga com acomodação de uma vida sem sentido, da banalização do que é humano e das dores inimagináveis. 

 

Sempre que somos acometidos por diversas tragédias um dessabor se espraia no cotidiano e logo surgem as mais diversas explicações para o conjunto de desgraças. Quando nossa lama não é somente moral, mas concreta, afogando trabalhadoras e trabalhadores, quando jovens sonhadores são carbonizados enquanto sonhavam serem jogadores de futebol, quando o vermelho perseguido não é somente ideológico, mas principalmente do sangue da juventude negra, da população LGBT e de tantas outras pessoas historicamente oprimidas, quando crianças são alvejadas friamente por jovens com seus troféus bélicos nas mãos, quando as farsas tomam contornos trágicos, quando os mitos desmascaram-se do seu moralismo e o conjunto da obra aparece em noticiários... quando tudo parece (e é!) um caos se estabelece o desencanto. 

 

Nesses momentos, não é incomum buscarmos no pensamento mágico as justificativas mais mirabolantes. Sobre os crimes ambientais e sociais assinados por CNPJs, ao invés da inoperância da regulação pública e da revelação pujante do aspecto mais feroz da mão invisível do mercado, despejamos as lágrimas e a direção dos olhos para o sobrenatural: castigo divino, provações, nuvens carregadas sobre o país, energia negativa, a via crucis de sempre. Quanto aos mitos e mentes perversas... a fé de sempre: o fundamentalismo religioso condimentando as notícias falsas.

 

Um tsunami por dia se estabelece na vida brasileira e não há sequer tempo para digerir um novo escândalo, uma fala bizarra de uma ministra, um depoimento irracionalista de um ministro, uma soberba descabida de um deputado. Ao mesmo tempo, não há como não engolir a seco os números, as mortes, o medo social diante da barbárie.

 

Assistimos, ainda estarrecidos, a universalização do sofrimento vivenciado nas periferias. O caminhar cheio de incertezas diante da vida, a convivência imposta diante da possibilidade da morte. O gosto amargo da vivência caótica nivela por baixo nossa indignação e o tempero dos discursos é puro torpor. As coisas se misturam, a avalanche de notícias nos toma, o espetáculo mórbido da vez precisa de seus espectadores.

 

Dos programas policiais aos cultos televisivos permanecemos aprofundando uma overdose de obscenas formas e cores de intolerância, descasos e modos de jogar para debaixo do tapete a complexidade do que vivemos. O nosso almoço é temperado pelo espetáculo das dores. Contra o ódio? Mais ódio! Contra as armas? Mais armas! Contra as mentiras? Mais mentiras! Contra as interrogações das perguntas difíceis, as exclamações violentas e repletas de cinismo.

 

Diante de tal quadro há muitas formas de pseudo-escape. A negação “memética” do ciberespaço, acostumada ao “desespero que é rir de tudo”, zombando do que chama de politicamente correto e dissimulando a famigerada liberdade de expressão. Há ainda as pequenas frestas de humanidade, evidenciando o reconhecimento da dor do outro, a empatia momentânea, ainda que se expresse quase sempre no minuto anterior das justificativas místicas e da resignação fatalista diante do suposto imponderável. 

 

No entanto, a energia que nos falta não é a do pensamento positivo, não é uma nuvem sobrenatural que nos acomete. Nossa tragédia é material, se concretiza quando degustamos cotidianamente a desumanização e cozinhamos nossas possibilidades nos fornos do protofascismo ou na fogueira das vaidades.

 

Entre a aurora assombrosa e o crepúsculo de fios de esperança costuramos nossos dias, com seus tecidos de contradições, limites e possibilidades, com a materialização de pesadelos e a necessidade de reconstruir sonhos coletivos. Os espaços genuinamente da classe trabalhadora ainda cheiram mofo, estão cobertos pelas migalhas neoliberais, conciliatórias e/ou pós-modernas. O ar rarefeito do carreirismo ainda toma de conta e a ausência de experiências humanizadoras grita: é a lama, é a lama! 

 

Quando o trágico é naturalizado, quando aprendemos a arte de catapultar suas causas e condicionalidades para o além ou para o aquém, matamos também a nossa possibilidade de reação. E quando, por um instante, a sensibilidade nos permite criar laços com aqueles que sofrem, vem o conjunto de uma sociabilidade alienada e alienante, com seu anzol e suas iscas, transformando o laço em nó... na garganta.

 

No terceiro mês do ano colecionamos perdas irreparáveis, muitas pessoais, outras tantas coletivas. As tórridas águas da onda da Nova Era anunciam o aprofundamento de um cotidiano cada vez mais distante de condições dignas de vida. O desmantelamento das esfareladas políticas sociais, as contrarreformas em curso, a educação punitivista e militarizada, a hostilidade como política e a a autorização simbólica para matar.

 

Se as lágrimas de março fecharão o seco verão não sabemos, mas já é hora de pensarmos em florescer uma nova primavera dos povos. Se não pararmos de constituir uma lógica desumanizadora, cada dia mais, nos amorteceremos diante da morte. O fast food de escândalos e tragédias tendem a acostumar nosso paladar. No espetáculo do caos o aperto no peito faz parte do combo. Até quando?

Sexta, 26 Outubro 2018 11:36

 

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Wescley Pinheiro

Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT

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        Não há como não se afetar com os elementos presentes na conjuntura. Não existe ninguém satisfeito com as coisas como estão e, seja qual for a posição política diante do quadro atual, é inegável que o agravamento das questões atravessam nossas relações pessoais, atinge nossas emoções e causam sofrimento. Isso ocorre de diferentes formas e níveis e por distintas motivações. Nesse sentido, com o processo de recrudescimento do conservadorismo e ascensão do protofascismo, legitimado pelas parcas estruturas democráticas, temos a tônica de algo tão doloroso quanto real: a hipertrofia da violência vivida no cotidiano.

        Esse fenômeno tira do armário todos os preconceitos, vilipendia qualquer concessão civilizatória, vomita tudo de desumano que se encontrava aparentemente domesticado em nossas relações e, sem necessidade de lógica e coerência, os espaços da singularidade e das particularidades são tomados de assalto por todas as formas de opressões historicamente determinadas. Dos púlpitos das cátedras ou das catedrais, dos bancos ou das bancadas, das piadas infames ao relativismo das desigualdades impera a explosão de violações travestidas de neutralidade, boa vontade ou explicitamente agressivas. Entre a patologização da questão social, a normalização da exploração e das opressões, a medicalização da vida e a moralização da barbárie caminha nosso processo de individuação entre relacionamentos abusivos, práticas intolerantes e relações adoecedoras no desencaixe dos espaços comuns.

        Com isso as violências morais, simbólicas e psicológicas cravam as possibilidades mais severas por via de instituições tão caras ao nosso tempo histórico. Por tudo aquilo que colocamos no texto “O ovo da serpente foi chocado: protofascismo brasileiro e novos desafios frente ao obscurantismo contemporâneo” cresce a necessidade da busca pelos culpados nos espaços cotidianos diante daquilo que nos desumaniza.

        Para aprofundarmos o entendimento de como um projeto autoritário ganha força nos setores populares e de como isso faz com que fortaleça opressões históricas é preciso compreender a estrutura da hegemonia e sua retroalimentação ideológica para além da política formal, perpassando a mídia, a religião, a ciência, além dos diversos aparelhos ideológicos, instituições e ambientes importantes para a propagação e reprodução da cultura, inclusive o lócus de socialização primária. Quando aquilo que chamamos de “esquerda”, por diversas razões, perdeu espaço, abriu mão ou se equivocou na construção da contra-hegemonia, com táticas reformistas e/ou reproduzindo práticas de estranhamento no trato nas relações particulares, o vácuo possibilitou a ampliação avanço protofascista.

        Quando a crise do capital degrada a condição de vida das pessoas, o Estado busca tomar as rédeas para administrar a possibilidade das taxas de lucro de modo mais agressivo e a moral aparece como instrumento mistificador da realidade, engabelando possíveis resistências diante das questões essenciais e dirigindo olhares para a superfície. Por isso, as relações subjetivas, os espaços cotidianos de trabalho, assim como a família, os lugares coletivos onde buscamos fortalecer o espírito, as relações de amizade, entre outros afetos surgem com toda a violência possível, materializando em nossas vidas aquilo que se projeta, se propaga e se consolida no fascismo contemporâneo.

        A negação dos elementos que fundamentam a realidade frente aos fragmentos da cotidianidade se alastram na constituição individual em tempos de acirramento das contradições de classe. O sofrimento subjetivo busca o pensamento mágico, particularismos e esquivas diante do real. Nesse sentido, tanto conservadores quanto muitos daqueles que buscam desconstruí-lo desenvolvem suas manifestações de mistificação.

        No entanto, mesmo nos meandros da fantasia a realidade existe. Ela é inexorável, objetiva, concreta, complexa, cheia de determinações, se expressando no cotidiano irremediavelmente heterogêneo, imediato, fragmentado, insuprimível. A realidade se esconde e se revela sorrateira, surge com vendas em nossos olhos, nos permitindo conhecê-la parcialmente por nossas experiências. Ela se manifesta caleidoscópica, cumprindo suas armadilhas de sugerir-se inteira a partir das vivências particulares.

        Entre um ser humano inteiro e o inteiramente humano vamos dançando o baile entre nosso cotidiano e a realidade. Permanecemos passeando pelo que nos salta aos olhos, comumente sem conseguir ultrapassar o alcance da nossa visão, ainda com esforço, mesmo que pintemos esse espetáculo com os sentidos que queremos. A tarefa não é simples, sobretudo num tempo de confusão, onde o ar é pesado, as falas são duras e os laços frígidos.

        Buscando atalhos há quem acredite não haver o real, embora ele esteja lá, há quem acredite que o real é apenas aquilo que vive, ou ainda que é possível somente por ali conhecer todas as mediações que o constituem. Há também quem molde um real amplo para o seu particular, quem mergulhe nas buscas profundas, mas se afogue em seu próprio ar. O tempo da barbárie também é o tempo da vaidade e da ultrageneralização.

        Diante desses desafios tudo tende a ser reduzido ao binômio causa-consequência ou à falácia da impossibilidade. Criam-se mitos para dar sentido às percepções, referendam-se crenças nas mudanças singulares ou nas respostas microscópicas ou ainda naquelas que são supostamente amplas. Por outro lado, se confunde universalidade com totalidade, jogam as apostas nas mudanças de sentido e significado, blefam na dinâmica da imediaticidade rivalizando, fulanizando, umbiguizando as coisas.

        Nesse jogo, nessa dança, nesses olhares, a busca pela trajetória mais difícil tem sucumbido, perdido ressonância, vivido um descompasso. O temor é que não haja mais tempo nem espaço para se aprofundar. Que seja realmente o espetáculo do maniqueísmo, da dieta da consciência aparentemente radical, temperada com hedonismo ou individualismo, com moralismo ou fatalismo, com as tintas e cores moribundas e verossímeis, mas perecíveis. O temor subjetivo é que seja isso tudo nosso espectro do tão pouco.

        O desespero e o desamparo constitui sujeitos armados de metralhadoras giratórias, vociferando o não-diálogo, ampliando o irracionalismo e abstraindo que aquilo que aparece como fórmula mágica para a resolução de problemas políticos viola seus comuns. Para quem sofre com as opressões e com a possibilidade direta de perda de direitos, aquilo que é aparentemente uma opinião divergente é, na verdade, pura reprodução de desigualdade, risco iminente.

        A violência física e simbólica, aparente nos números oficiais, obscurecida nas percentagens oficiosas e tão relativizadas em tempos sombrios atinge cada vez mais os setores que sempre estiveram às margens das mínimas garantias da emancipação política do Estado democrático de direito. Mais que atiradores de elite, o medo social, aliado ao moralismo e catalisado pelo fundamentalismo religioso se funde à seletividade do judiciário e a criminalização midiática para multiplicar atiradores da elite. Com as desculpas fundamentadas e capilarizadas, sem o devido contraponto estabelecido, essa forma de violência funde com ferro e fogo nas marcas da sociabilidade cotidiana da classe trabalhadora brasileira para garantir um cotidiano paramilitar. O baile de máscaras entoa o canto da serpente fascista para multiplicar ódios, rancores e afogar qualquer luta emancipatória.

        Entre os eleitores de Bolsonaro existem os que organizadamente militam pela potencialização dos preconceitos e da discriminação, no entanto, há também os que são tomados pelo saudosismo mistificador, que se veste com o moralismo reacionário para acalentar uma suposta reestruturação da sociedade, deslocando tudo isso da política e fingindo que isso trará atenuantes às expressões da questão social.         Essa direção ganha contornos absurdos para um país que nunca efetivou a laicidade do Estado, não amadureceu a democracia e não enfrentou sua tradição autoritária, patriarcal, racista e machista. Os sujeitos querem resoluções imediatas, buscam um discurso seguro, absorvem a tragédia e a farsa bonapartista pela sua carência de projeto coletivo e qualquer simbologia que dê uma direção que pareça diferente do vento que nos carrega, ainda que seja apenas um sopro mais forte para o caos, é uma aposta a se fazer.

        Para esses sujeitos, há uma abstração do cotidiano, o moralismo é percebido como mero discurso, com materialização distante de seus comuns, algo no campo das ideias e, ainda que sejam capazes de refletir sobre discursos violentos, preferem fechar os olhos para o óbvio e apostar que o discurso de ódio seja exagero, efeito colateral de uma proposta de ordem e progresso. Assim, submersos nas turvas águas das fake news, de discursos de pastores inescrupulosos e de bravatas de asseclas da econometria, abstraem que amigos/as, filhos/as, tios/as que pensam diferente ou que simplesmente existam, sejam nordestinos/as, negros/as, LGBT´s, mulheres estarão sofrendo ainda mais riscos dentro do protofascismo legitimado.

        Quando o moralismo e a violência simbólica não são somente abstrações que potencializam o aumento das estatísticas, mas aparecem entre nós, nos grupos de whatsapp, nas reuniões de família, nas relações mais prosaicas, ainda que saibamos as razões, criamos a expectativa, pela famosa empatia, de um processo mínimo de identificação e sensibilidade. Desejamos a compreensão, ainda que limitada, de que a ferida aberta e cutucada por tudo aquilo que virou moda possa ser entendida como a propagação de uma ideologia capaz de estruturar coisas que farão sangrar seus semelhantes. O sofrimento se amplia quando percebemos que isso tende a não ocorrer.

        O (des)afeto dentro desses grupos, por sua própria estrutura conservadora, acaba por cavar buracos ainda mais profundos, desavergonham os preconceitos, retiram laços, enchem os espaços de perversidade diante do diferente. O tempo do protofascismo se constitui também pelo mascaramento da realidade e desmascaramento de violências entre as pessoas próximas, onde o ódio ou a indiferença crescem ao som da trilha sonora da crueldade, do relativismo, do desdém oriundo dos discursos de autoridade que consideram tudo coitadismo.

        No livro os “Sofrimentos do Homem Burguês”, Leandro Konder reflete sobre nós, aqueles do tipo humano da sociedade burguesa, seres ontologicamente sociais, que transcendem e potencializam sua individualidade por via da coletividade, que criam possibilidade pela diversidade através da nossa capacidade de fazer história, mas que, numa sociedade fundada na apropriação das coisas e das pessoas, buscamos (e não encontramos) essa essência em coletividades estranhadas, em relações alienadas e alienantes e, assim, o autor reflete como nossos arranjos e relações familiares e toda sua carga histórica são passíveis de naturalização de opressões, como nossas religiões mistificam o mundo concreto, normalizam o hegemônico e moralizam a diferença, como a mídia rebaixa tudo em mercadoria, como a história é vista apenas como passado e não como possibilidade concreta de construirmos o presente e o futuro.

        Numa reprodução hegemônica do discurso de que democracia é a ditadura da maioria e não a convivência da diversidade de pensamento, onde os valores moralistas circulam sempre nas práticas políticas, onde público e privado sempre se confundiram, onde combater privilégios e a intolerância foi e é visto como ataque aos direitos, numa sociedade absolutamente perversa e que amorteceu possibilidades amplas de construções coletivas com sentido, o cotidiano, espaço privilegiado de naturalização daquilo que é construído socialmente, apura seu caráter mistificador, imediatista, heterogêneo, capaz de negar qualquer lógica, racionalidade e elementos da realidade.

        Assim, o descolamento do real é característica do nosso tempo. Não importa se o sujeito que diz que “odeia o pecado, mas ama o pecador” defende líderes políticos que potencializam crimes de ódio, se defende a vida e, ao mesmo tempo, a tortura, se estuda para concursos públicos e milita para o fim dos mesmos, se sonha com educação para seus filhos e aprofunda a desconstrução dela como direito, se é contra a corrupção e a mentira, mas desconsidera as práticas corruptas de seus mitos diante da necessidade de vencer o inimigo. Não importa o real, as evidências e tudo aquilo que aponta a direção que estamos seguindo, a ideia de que é preciso mudar, ainda que para pior, constitui o sadomasoquismo social do “sofrimento do homem burguês” e negar a realidade faz parte disso.

        Tudo aquilo que produziu a possibilidade real de hegemonia do protofascismo constituiu também subjetividades dilaceradas, visões opacas diante do outro, relações ainda mais coisificadas. O discurso pautado no mito de dois extremos quando, na realidade, só há um, aquele da violência sob todas as formas, amplia no cotidiano as atitudes de poder e desvalor sobre as pessoas tidas como “não-normais” e, portanto, compreendidas como menos humanas. A apatia ou a agressividade diante do caos cotidiano, ação desmedida, desenfreada, sem projeto coletivo ou sobreposta de pura reprodução das opressões atinge em cheio nossas subjetividades.

        A insensibilidade diante do fato que poderemos perder o emprego ou nunca ter um, que poderemos ser “varridos”, agredidos, violentados, presos ou mortos nos afeta quando vem como discurso personificado por aqueles que nos conhecem e sabem que não somos uma caricatura. A desumanização é ainda mais devastadora quando vem daqueles que nutrimos afetos, que construímos projetos ou histórias e que, ainda assim, não são capazes de perceber que o discurso que reproduzem afeta a vida concreta daqueles que dizem amar. A profusão de um sentimento reificado se constitui mútuo, mas a decepção e o sofrimento aparecerão muito mais do lado de quem é coisificado.

        Diante de rupturas particulares em relações tão caras, diante de posicionamentos tão duros e irresponsáveis com aquele/as que dizem nutrir afeto, num tempo histórico onde nossa emoção é estranhada e o irracionalismo toma de conta atingimos a agudização do individualismo. Ele vem fantasiado de preocupação com o futuro, de conversão religiosa, de afeto familiar, de amizade, mas sempre traz na mão o punhal das opressões e a bainha do preconceito.

        Precisamos reinventar coletivos com sentido, necessitamos construir tanto a resistência objetiva quanto a subjetiva. Elas caminharão juntas. Até as coisas se revelarem, até conseguirmos suspender o cotidiano, até demonstrarmos todas as determinações que nos levaram ao protofascismo muito sofrimento se aprofundará. Nenhum espaço de nossa vida pode ser desprezado na luta contra reprodução da exploração, da violência e das opressões. Construir formas de disputa no campo dos valores, apreendendo a vida concreta e a cultura dos setores populares para um projeto emancipatório é fundamental. Para isso precisaremos pleitear novos valores em todos os âmbitos de socialização e também exercitar formas de autocuidado.

        Os espaços onde nos encontramos, onde socializamos nossas angustias, medos e vontades, onde apreendemos que essas experiências são constituídas historicamente, onde desnaturalizamos as coisas e mostrando possibilidades para outra sociabilidade, onde potencializamos as respostas coletivas podem nos fortalecer enquanto indivíduos e nos ajudar na construção de relações mais profundas.

        Na exacerbação da forma mais grave da sociabilidade capitalista a reprodução do protofascismo exigirá de nós a necessária construção coletiva, a paciência histórica e o exercício da lucidez. Entre as estratégias e as táticas, entre as reuniões e os atos, entre sofrimentos, desapontamentos e desafetos, entre a necessária resistência e a vida cotidiana haverão ainda mais desafios. O exercício de diálogo, de enxergar as pessoas, de construir relações para visibilizar nossa humanidade nos outros será também rebeldia em tempos de cólera. O desafio é enorme pois não haverá relações com sentido numa sociedade sem sentido.

 

Segunda, 22 Outubro 2018 09:01

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

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Wescley Pinheiro
Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT

 

É chegada a hora do eclipse da potência e do ato. O ovo foi chocado e a serpente está solta, sua pele não é mais a mesma e seu rastejar não precisa exatamente das estruturas corriqueiras. O veneno explode no cotidiano e se naturaliza na histórica repressão e no aprofundamento do estado penal-policial. Seu veneno vem de diversas formas, poderá ser mais forte a depender do sufrágio mas ele já é bebido por aí.

Ébrios de todo o ódio possível, o/a trabalhador/a objetifica a vida, coisifica relações, enxerga coisa em outro/a trabalhador/a, enxerga objeto no diferente, normaliza a desumanização e ataca a superfície diante da degradação da vida que somente sobrevive. Sem referências coletivas, sucumbido numa política que parou no moralismo e separou-se da realidade concreta ele perdeu a crença nos instrumentos de sua classe e a fé na sua própria humanidade, aposta tudo no nada, no discurso vazio de conteúdo, mas assertivo na forma. A cobra sabe gritar. A serpente sabe mentir, sabe acalentar desesperos e temperá-los com as desigualdades mais diversas que alimentamos por aí. A serpente se alimenta de medo.

O seu veneno e o seu rastejar perfuram pessoas, potencializam históricas opressões, dilapidam a racionalidade e cresce da inoperância da aparente oposição cibernética, performática, identitária. Enquanto o saudosismo reacionário romantiza os anos de chumbo, obscurece suas contradições, relativiza sua concretude, a abstração da maior parcela supostamente contra-hegemônica romantiza a resistência, fantasiando estratégias e táticas de um outro tempo ou mistificando sua política numa bolha culturalista, obscurecendo suas ações para um autoritarismo muito mais complexo! A cobra trocou de pele.
 
Para sabermos o que fazer é necessário saber onde estamos e para onde iremos nesse barco à deriva no mar de raiva e incoerência. Para sabermos o que fazer é importante entender como chegamos aqui, como alimentamos essa serpente e como seus ovos foram espalhados e chocados por aí. As difíceis perguntas respondidas com respostas simplistas tendem aos desvios. É fundamental questionarmos o óbvio: como uma importante parcela de nossa classe pode espontaneamente abrir mão da democracia e, pelo caminho “democrático”, defender a desestruturação das mínimas conquistas que atingiu?
 
É preciso nos perguntarmos mais: a conjuntura atual demonstra o esgotamento da emancipação política ou somente desvenda seus limites? Seria o Estado penal-policial o amadurecimento do estado capitalista? A violência que nos atinge e que parece nos perseguir em sua radicalização num futuro próximo se dará pelos mecanismos formais ou estamos pintando o inimigo olhando para o passado e não para o presente? Muitas perguntas e poucas respostas materiais. No entanto, há caminhos para entendermos tudo isso.
 
Compreendermos as raízes históricas do nosso país, sua modernização conservadora, seu processo de revolução burguesa pelo alto e o desenvolvimento dependente e combinado com o imperialismo é o primeiro passo. Refletirmos sobre nossa história recente e como reproduzimos nossa estrutura não sendo capazes de acertarmos as contas com a última ditadura que aqui se colocou, também é importante. Por fim, é fundamental perceber como potencializamos o avanço do conservadorismo ao perdermos a capacidade da disputa de hegemonia, fazendo algo que partisse da vida concreta dos sujeitos de nossa classe e que não caísse no pragmatismo do status quo.
 
Perpetua-se na imagem estereotipada do Brasil elementos curiosos de uma formação repleta de contradições. Seja em importantes episódios de sua história, na própria conjuntura atual ou mesmo nos valores culturais, a simbiose de diferentes setores sociais em suas negociações políticas, a permanência de pensamentos arcaicos sob roupagens modernas e, por fim, elementos do cotidiano de brasileiras e brasileiros explicitam o limiar de uma constituição social peculiar.
 
Os conhecidos sinais de cordialidade e alegria do povo brasileiro vêm acompanhados pela naturalização de contradições e incoerências: a propagada característica de um povo pacífico, oculta processos de autoritarismo das elites ante levantes populares, o famoso “jeitinho brasileiro” explicita estratégias de sobrevivência ante as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, a reprodução delas com a banalização do patrimonialismo e de tradições antidemocráticas.
 
O país do carnaval e da fé, do sagrado e do profano, do povo trabalhador e do mito da malandragem disfarça, em seus estereótipos, as cisões que se construíram a partir da processualidade histórica de uma nação formada como colônia de exploração, calcada na escravidão dos povos africanos, na matança dos povos originários, no desenvolvimento rural a partir da monocultura, na industrialização precária e atrasada, no desenvolvimento regional irregular e desproporcional, na construção da cultura com fortes elementos do patriarcado, do machismo e do racismo.
 
Essa estrutura fundamentará a questão social no Brasil perpetuando uma dimensão de classe muito mais complexa. É essa lógica que moralizará a questão social e irá patologizar comportamentos contra-hegemônicos, justificará o encarceramento e o extermínio de uma parcela da classe trabalhadora, objetificará corpos, naturalizará violências e mercantilizará tanto os sujeitos historicamente oprimidos como buscará capitular e mercantilizar suas resistências coletivas e individuais.
 
No entanto, o autoritarismo burguês não é somente uma particularidade brasileira ou latino-americana. Na crise estrutural do capital a tendência de universalização das práticas fascistizantes se asseveram. A ideia de uma característica antidemocrática como exceção da sociedade capitalista reproduz a visão dualista entre democracia x ditadura, coerção x consenso, quando, na verdade, dentro da história, o processo elástico da emancipação política conflui num processo de unidade de contrários, de continuidade na descontinuidade e no processo de pressão de classe que esbarra em limites estruturais desta sociedade. A dimensão autoritária da burguesia faz parte do seu amadurecimento político oriundo de sua consolidação com seus projeto de sociedade e sua hegemonia política.
 
O que se apresentou como novo imperialismo foi na verdade a manifestação atual dos mesmos fundamentos que determinaram o modelo imperialista de todo o modo capitalista enquanto totalidade, que não se furtou de abarcar as particularidades para explorar ainda mais parcelas da classe trabalhadora, a partir de questões de gênero, raça/etnia, cultural, política e geográfica arregimentando a acumulação dos países centrais e a possibilidade de reprodução do capital.
 
O fascismo clássico, radicalização do poder do estado burguês como alternativa violenta, explícita e evidente às crises do capital da época foi articulado por uma necessidade histórica que perdeu hegemonia frente ao keynesianismo-fordismo, mas que nunca morreu enquanto possibilidade, muito menos sufocou seus elementos ideológicos e, por fim, não impossibilitou que o autoritarismo e a agressividade com os oprimidos permanecesse nos países democráticos no pós-guerra.
 
O fascismo contemporâneo revela nuances importantes que manifestam a agudização do papel do estado para o capitalismo destrutivo, que consolida a minimização para os direitos e políticas sociais e a maximalização para a repressão à resistência coletiva e estruturação do lucro do capital, seja pelo financiamento direto com o fundo público, seja como base estruturada para ampliação da mais valia absoluta e relativa. Ovo da serpente multiplica formas clássicas, mas também convive com as novas características do capital.
 
Há outros elementos importantes. A diluição das práticas autoritárias vão para além da estrutura formal do Estado. O binômio força-consenso se faz presente no cotidiano. O veneno se espalha na violência autorizada contra a diferença e a divergência. Não precisamos de um golpe clássico para que ela ocorra. A trágica forma limitada da democracia representativa e as distorções potencializadas pela mídia, pelo fundamentalismo religioso e pelo mercado já carregam de bandeja uma consciência coletiva reificada que legitima o autoritarismo. As forças armadas não precisam de Ato Institucional, podem marchar por aí para combater o tráfico de drogas, o crime organizado e, sem quebrar a institucionalidade, fazer uso da lei anti-terrorismo que foi aprovada dentro dos trâmites do estado democrático de direito.
 
E fica pior. A serpente do fascismo não tem seu principal exército no estado, o para-militarismo é e será a tônica principal! O problema maior não é “o guarda da esquina”, mas o vizinho, o colega de trabalho, o desconhecido que te olha na rua. A autorização da violência potencializará milícias, autorizadas pelo clima construído, pela inoperância e permissividade dos homens de toga, pela potência incoerente, mas imponente da grande parcela dos pastores inescrupulosos e do sensacionalismo midiático com sede de dinheiro, poder e ódio.
 
O agravamento da repressão virá com o armamento desmedido da lógica obscura, abjeta e objetificada de uma elite historicamente autoritária, de uma classe média rancorosa, e, de modo informal ou ilícito, de uma parcela da classe trabalhadora despolitizada, que reproduz o desencanto com a coletividade e se encontra em coletivos alienantes e alienados, que servirão de ponta de lança do capital, do genocídio da juventude negra, do feminicídio, da LGBTfobia, da xenofobia interna e externa e da morte quem buscar defender as liberdades democráticas, falseada pelo moralismo como defesa do comunismo ou como exclusividade da esquerda.
 
Contra a serpente não há para onde correr. Não há exílio. O levante autoritário é internacional. A particularidade brasileira é perversa, no entanto, o crescimento da barbárie é evidente e incendeia na “guerra ao terror”, na tragédia dos refugiados, na potencialidade da xenofobia e na divisão despolitizada de uma classe trabalhadora que vê o capital mundializado, o alto desenvolvimento das forças produtivas, a constituição de novas formas de exploração, mas que naturaliza tudo isso e quando as coisas se agravam e, no seu cotidiano, só enxergam inimigos tão próximos quanto falsos.
 
Quando naturalizamos o possibilismo, quando fingimos que a saída eleitoral é a única possível, quando perpetuamos a lógica do fim da história, quando abandonamos o trabalho de base, deixamos de disputar os espaços da cultura do povo, quando apontando somente reparos e não uma lógica emancipatória, deixamos espaço para o fascismo tomar de conta, aparecer como o encanto da sua serpente dizendo que remediará os problemas da contradição capital-trabalho pela força.
 
Quando o reformismo tardio e requentado apontou sua institucionalização forjada nas regras do jogo das elites e saiu das periferias, voltando somente com as políticas sociais do Banco Mundial, consolidou um artifício que não se sustentaria por muito tempo diante da crise iminente. Quando a lógica da política pós-moderna abstraiu a vida das pessoas e ofereceu apenas o campeonato das opressões e a caricatura de disputas privilégios, sem pensar a lógica interseccional e consubstancializada, perdeu força diante da potência moralista de nossas raízes históricas. Quando os coletivos autônomos e classistas sucumbiram em pequenos focos de resistência, distantes também da vida cotidiana, dos aparelhos ideológicos, da cultura e das bases populares, deixamos lacunas ocupadas por aqueles que tem fórmulas mágicas, discurso fácil e o vazio que cabe toda forma de opressão.
 
Enquanto se jogava para debaixo do tapete às contradições do “pacto social”, da “conciliação”, da coalização com sujeitos individuais e coletivos representantes do capital, se abandonava a capacidade de organização, de formação e de aprofundamento de uma cultura contra-hegemônica nos setores populares e se caçava de forma cruel e efetiva qualquer crítica séria.
 
Achar que as diversas expressões conservadoras e protofascistas surgem do nada, voltam de modo anacrônico ou por meio de devaneios faz parte de uma lógica que quer continuar crendo no jogo marcado da estrutura social vigente. Não estamos voltando para a idade média, isso é capitalismo, isso é decadência ideológica da burguesia, isso é a reprodução social buscando saídas dentro de uma crise estrutural e as caricaturas expressas em Temer´s, Bolsonaros, Dórias e afins são assustadoramente do nosso tempo, o tempo da barbárie. Não nos esqueçamos que o combate aos golpistas, aos fascistas, aos autoritários que estão no poder ou que almejam o poder passará necessariamente por quebrar a lógica atual e isso não se fará com atalhos.
 
Quando potência e ato se unem na língua da serpente a violência se exacerba e as possibilidades mais irracionalistas se consolidam. Explicitar a responsabilidade de cada força política que age em nossa sociedade para que tenhamos chegado até esse ponto é importante, colocar nossos desafios, idem. Isso não se remete em sermos irresponsáveis, abrindo mão de uma unidade imediata com todos os setores democráticos do país, sejam eles liberais e/ou reformistas. Não há como se abster: na agudez do tempo histórico não podemos titubear na tarefa frente as eleições presidenciais. Barrar a legitimação do fascismo é fundamental e qualquer posição abstrata, seja ela sectária ou moralista é perder o chão da história.
 
No plano mediato precisaremos conquistar corações e mentes frente ao (desen)canto da serpente, nos posicionando nos nossos espaços coletivos, ampliando as estratégias e táticas de autocuidado, endurecendo sem perder a ternura, cultivando lucidez frente a barbárie e reaprendendo à disputa de consciências.
 
A serpente está viva. Para além da tragédia das urnas ela continuará rastejando e o que temos pela frente serão anos de ascensão da violência. Enquanto transformam os instrumentos de luta da classe trabalhadora (sindicatos, partidos, etc) em palanques para promoções privadas, espalha-se ainda mais o seu veneno: o recrudescimento do conservadorismo e os riscos da instauração de um governo autoritário militarizado e também paramilitar.
 
Precisamos frear o fascismo nas urnas e esgotá-lo nas ruas. A regressão de direitos exige dos sujeitos coletivos comprometidos com a emancipação humana uma visão certeira, madura e estrategicamente firme dos limites da emancipação política, sem reducionismos e sectarismos, mas sem cair na condescendência minimalista e naturalizadora da reprodução do binômio exploração-opressão.
 
A serpente rastejará por dentro e por fora do estado. O veneno será bebido por todos os lugares. Aquilo que já era regra contra a classe trabalhadora empobrecida, negra, moradora da periferia e que também se expressava publicamente contra os setores autônomos, combativos e organizados contra o desmonte dos direitos hoje galopa de modo evidente, mais profundo, violento e apressado para dilapidar tudo e todos.
Qualquer alternativa que não busque o difícil, tortuoso, complexo e fundamental caminho para uma ruptura com a essência disso tudo será apenas a perpetuação do mesmo. Um dia chega o vendaval e a poeira sob o tapete vem para os nossos olhos. A serpente tem medo da verdade e seus ovos apodrecem com a força coletiva, por isso não há outro caminho que não seja o da luta emancipatória.

Sexta, 22 Junho 2018 14:33

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Vanessa C. Furtado e
Paulo Wescley Maia Pinheiro

Docentes da UFMT

 

Na última segunda-feira aconteceu uma reunião do CONSEPE, onde foi aprovado retorno do calendário acadêmico. Agora a PROEG solicita aos colegiados de curso que encaminhem propostas de calendário, porém na quarta-feira estudantes, em ampla MAIORIA, aprovaram a manutenção da greve, portanto, A ESTE DOCUMENTO da PROEG SÓ HÁ UMA RESPOSTA...


Não cabe à administração superior universitária ditar as pautas e/ou início ou fim de movimentos que se insurgem contra suas imposições. O movimento de greve é instrumento legítimo de luta, de resistência e, obviamente de subversão da lógica da ordem dada. E, neste caso, decidida em assembleia com ampla maioria de votos da categoria estudantil.


Vivemos uma burocratização de nossas vidas, a própria colocação das ações universitárias em sistemas que tem data para abrir e fechar nos dá a sensação que ficamos reféns dos prazos que nós mesmos nos damos. Quebrar essa lógica é próprio da atividade humana enquanto sujeitos instituintes que somos, em última análise, instituintes de nossa sociedade como todo. E se somos nós quem instituímos a regra, a lei, a ordem, então, cabe a nós questioná-las quando essas regras se voltam contra nós mesmos como ato de insurgência e luta, neste caso, contra o desmanche da universidade pública! O que será de nós, espécies em extinção, sem estudantes no campus? Daremos aulas às cadeiras? Pois a falta de políticas de permanência estudantil vai mitigar esta instituição e por fim a universidade pública brasileira! Portanto, em defesa de nossos empregos, SÓ HÁ UMA RESPOSTA A ESSE DOCUMENTO…


Por vezes, naturalizamos as letras e números dos que vem de cima, confundimos a suposta legalidade com legitimidade e tendemos a pensar espaços e decisões procedimentais como algo normal somente por serem pintadas pela aparência da institucionalidade, ainda  que não tenham sido efetivamente dialogadas nos espaços e que surjam como artifícios para supostas resoluções de problemas.


Dessa forma, não é de se entranhar que todos nós que estejamos em cargos de coordenação pedagógica, chefia de departamento, direções de faculdades, centros ou institutos ou somente compondo os nossos colegiados tenhamos estranhado e nos perguntado em como reagir diante da aberração criada pela administração superior dentro de sua saga para deslegitimar as ações dos nossos estudantes. Como trabalhadores dessa universidade temos o dever ético de questionar ações desse teor, como educadores não podemos vilipendiar o rolo compressor em curso, seja ele nesta ação, seja em tantas outras como as manobras de supostas negociações e na conivência judicialesca. Portanto, SÓ HÁ UMA FORMA DE RESPONDER  A ESSE DOCUMENTO...


Tenhamos cada um de nós posicionamentos quaisquer sobre a tática da greve, as pautas construídas ou o tempo que ela se estende, estamos todos preocupados com os impactos  de toda essa crise em nosso cotidiano de trabalho e, principalmente, temos o dever pedagógico de desvendar o percurso nebuloso que tem caminhado nossa universidade ao tentar fingir que não ocorre algo legítimo entre os discentes. Sejamos nós favoráveis ou não ao movimento grevista é inegável que todas as suas ações foram tomadas em assembleias amplas, convocadas legitimamente e que, quando a administração superior busca atropelar uma categoria, esse ataque é,na verdade, ao princípio da convivência paritária, ética, respeitosa  entre toda comunidade acadêmica. Logo, SÓ HÁ UMA FORMA DE RESPONDER A ESSE DOCUMENTO...


O ambiente acadêmico exige de nós a garantia de maturidade política para fomentar a tradição da pluralidade de ideias, ações e, portanto, devemos bradar pela autonomia das decisões do movimento discente. No mínimo, admitir uma ação dessa natureza sem crítica é deixar um precedente que pode chegar um dia em questionamento de qualquer ordem em nossas ações como professores e professoras e sem a devida discussão e normatização.
Ademais, a pauta da volta do calendário acadêmico teve uma votação atropelada que sequer cumpriu os trâmites corriqueiros de reuniões de conselhos deliberativos. Não houve discussão e o que temos é a imposição da administração superior em retomar o calendário acadêmico, como se isto fosse decisão suficiente para definir o fim ou não da greve que é estudantil! Por isso, SÓ HÁ APENAS UMA RESPOSTA A ESSE DOCUMENTO...


Não há como prever um calendário de atividades de cursos com uma greve em andamento, tampouco, ratificar a atitude autoritária de uma reitoria que sequer respeita os conselhos deliberativos desta instituição. Para tanto, já fora protocolado processo de anulação desta reunião dada a truculência com a qual a reitora a conduziu. Atitude, aliás, que desvela a intransigência com que ela vem conduzindo esta greve, se recusando a negociar com o Comando de Greve de Cuiabá. Então, SÓ HÁ UMA RESPOSTA A ESSE DOCUMENTO….


Não cabe aos colegiados de curso dizer o que e como devemos retomar as atividades acadêmicas, principalmente, após a manutenção da greve estudantil por assembleia. A nós, docentes que não estamos com nossa categoria em greve, cabe comparecer ao nosso espaço de trabalho, mas respeitando a autonomia da categoria estudantil e apoiar o movimento estudantil é justamente dar A ÚNICA RESPOSTA POSSÍVEL A ESSE DOCUMENTO...


Não vamos referendar, nesta universidade, posturas autoritárias e ditatoriais, nem, de forma alguma,  referendar a criminalização do movimento paredista legítimo de luta por seus direitos. Portanto, a saída pedagógica que temos e A ÚNICA RESPOSTA POSSÍVEL A ESTE DOCUMENTO é: dizer que aguardaremos o julgamento do recurso de anulação da reunião CONSEPE do dia 18 de junho 2018 (segunda-feira) e que nos posicionamos em respeito a greve da categoria estudantil e, ao término desta, discutiremos calendário de atividades, o que respeita, também, os espaço democráticos de decisão desta Universidade.

Sexta, 25 Novembro 2016 07:42

 

Profa Vanessa C Furtado*

Prof Paulo Wescley Maia Pinheiro*

Prof Kader Assad*

 

Em 2015 construímos a greve mais longa da categoria docente (4 meses e 22 dias), diante de um quadro crítico do ensino superior público no país. Naquele momento o governo optava pelo avanço dos cortes nas universidades, expressando as escolhas político-econômicas distantes dos interesses dos/das trabalhadores/as e próximas àqueles que buscam garantir as taxas de lucro em detrimento de qualquer direito.

 

Durante o processo de resistência que se espalhou pelas universidades de todo o país, alguns preferiram ficar como espectadores desse movimento, seja garantindo seus projetos individuais (continuidade das pesquisas, viagens, etc), seja de dentro de casa em frente ao seu computador. Muitos assistiram a greve de 2015 e ao serem convocados a retornarem à sala de aula, assim o fizeram, satisfeitos com seus 5.5% de “aumento” em agosto/2016 e 5% prometidos em janeiro/2017. Ainda que os anúncios de cortes no orçamento do MEC chegassem a 46%.

 

Dentro dessa parcela da comunidade acadêmica, seja pelo distanciamento dos debates e noção superficial de representatividade, ou  pela explícita discordância com o projeto de universidade pública, gratuita e socialmente referenciada, uma gama de argumentos, supostamente pertinentes, compunham o coro dos contrários a greve. Nessas assertivas, algumas questões se destacavam sem nenhuma novidade, já que, sempre retornam quando uma categoria toma como tática o movimento paredista, a saber: seria egoísmo/corporativismo pautar reajuste salarial no contexto de crise; seria preciso pensar outras formas de luta sem parar as atividades; e, a greve esvazia a universidade, não trazendo mobilizações massificadas para pressionar o governo.

 

No outro lado, atacada pelos setores conservadores dentro e fora da universidade, ignorada ou criminalizada pela grande mídia, duramente reprimida pela polícia nas manifestações e desconsiderada pelos governos, a parcela da comunidade acadêmica que se mobilizou naquele momento, via  suas reais pautas e seu histórico de diferentes formas de mobilização permanecerem invisíveis  para a grande maioria da sociedade.  

 

Nesse sentido, é preciso que desmitifiquemos algumas questões. Afinal, a greve teve como centralidade o reajuste salarial, não?

 

Não! É necessário recordar que, no momento da radicalização, várias universidades estavam com risco de pararem suas atividades por falta de verbas para questões básicas, como por exemplo, o pagamento de serviços terceirizados da limpeza (ponto revelador da privatização), cortes de bolsas, entre outros. O processo de desmantelamento das universidades era um projeto que se anunciava de modo explícito e progressivo como tática das escolhas econômicas e fiscais do estado.

 

Vale lembrar que quem tornou pública a falência das universidades como escolha política de governo, pressionando a abertura de contas das Instituições Federais de Ensino Superior – IFES –, mobilizando para que não se aumentassem os cortes e, pelo menos, jogando para o futuro os elementos mais amplos dessa desconstrução, foram, justamente, os setores em greve.

 

Dessa forma, se não houve avanço na pauta de correção dos salários de acordo com a inflação (e não de aumento salarial), se não se obteve êxito na mudança da carreira docente devastada em 2012, foram professores/as, técnico-administrativos e discentes que, mobilizados naquela greve, pressionaram para que houvesse condições mínimas de continuidade de funcionamento dos campi. Se por um lado, muitas reitorias estavam de “pires na mão”, por outro o processo de tensão consequente do movimento paredista não permitiu o aprofundamento dos cortes.  

 

Em 2015 o cenário posto para as IFES eram cortes que atingiram a casa dos 9 bilhões de reais, redução anunciada (pasmem!) pela equipe do então governo  Dilma – PT. Em setembro do mesmo ano a mesma equipe anunciou uma série de medidas de austeridade, conhecidas como “pacotaço”, prevendo vários cortes no orçamento da união. Em entrevista, o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, apela ao congresso nacional que votem os projetos de leis e PEC que tramitavam (e ainda tramitam) pela casa. Aqui, o então ministro, já faziam referências à PEC 241, agora PEC 55, bem como ao PLP 257 enviado diretamente do gabinete da presidenta Dilma.

 

Ao sairmos da greve, indicamos a necessidade da construção da unidade na luta para enfrentar e barrar a aprovação das referidas matérias no Congresso Nacional e Senado. Desde então, viemos trabalhando duramente para a construção dessa articulação ampla em todo país, realizando mesas de debates, atos públicos unificados, reunião com parlamentares, visita aos gabinetes na câmara em Brasília-DF.

 

O ANDES-SN e suas seções sindicais não pouparam esforços em realizar todas as outras formas de enfrentamento contra a aprovação dos projetos em tramitação e que representam a retirada de direitos historicamente conquistados, ou seja, um ataque direto a nós trabalhadoras/es. Assim, nunca se tratou de uma luta corporativista da categoria docente apenas por seus direitos.

 

A partir da retirada de Dilma da presidência, o agente executor, o ilegítimo Michel Temer, vem cumprindo e ampliando a agenda regressiva já anunciada desde o ano passado. O mais afrontoso ataque é a Emenda Constitucional 241/55 que altera a Constituição Federal, limitando os investimentos em Seguridade Social (saúde, educação e assistência social) aos índices inflacionários do ano anterior, índices esses indicados pelas agências do governo. A proposta que vincula os investimentos do Estado aos ditames do mercado e não aos interesses e necessidades da população faz parte de um pacote de ataques que perpassa a contrarreforma da previdência, a desconstrução dos direitos trabalhistas, o ataque ao pluralismo e ao debate crítico na educação, entre outros.

Diante desse quadro, a construção da Greve Geral da classe trabalhadora se afirma como elemento fundamental de pressão e visibilidade das pautas contra as necessidades presentes para a população. A conjuntura atual urge a pela paralisação da produção e reprodução para pressionarmos o governo e aqueles que o financiam. São igualmente urgentes: a ocupação das escolas, universidades, fábricas, corações e mentes diante dos retrocessos, do avanço do ódio, da intolerância e da desigualdade. Nesse sentido, a Greve não é para atrasar a formação dos discentes, mas, sobretudo, para garantir que ela ainda exista de forma pública e gratuita.

 

A urgência de reconstruirmos uma educação e uma vida com sentido não são pautas partidárias, revanchistas e nem corporativistas, mas tarefas do nosso tempo histórico, exigência para que a universidade seja um direito e não um privilégio ou mercadoria. E, assim, para que nossos/as discentes tenham direito a qualidade, que, quando formados, possam ter direitos como trabalhadoras/es, que possam almejar condições de trabalho dignas, estabilidade e qualidade de vida.

 

É fundamental que possamos desconstruir os equívocos de que o processo de mobilização radical é uma construção imediata e irresponsável. É imperativo mantermos as diversas atividades, atos públicos, tentativas de negociação e demais iniciativas ao longo desses meses. É inexorável frisar que nenhuma greve surge do nada e nem é construída sem sujeitos. Dessa forma, o histórico esvaziamento da universidade, apontado por alguns grupos, só será superado com a ampliação do número de pessoas que ocupem os espaços de mobilização. Devemos fazer desse processo uma construção coletiva, pedagógica e cidadã, demonstrando que seremos capazes de ensinar, aprender e construir conhecimento de modo crítico, combativo, autônomo e pleno de sentido diante de um quadro devastador para a educação.

 

O chamamento da greve e ocupação não é para a paralisação, e sim para a mobilização. Paralisados estamos quando permanecemos inertes, mergulhados em nossas atividades, assoberbados na precarização, na esperança que nossos projetos individuais sejam capazes de nos fazer superar as dificuldades. A convocação para a luta não é para o esvaziamento da universidade, é para sua ocupação real e popular, com aulas públicas, com atos, manifestações, com a nossa comunidade acadêmica ultrapassando nossos muros e mostrando a importância dessa instituição, abrindo as portas e o diálogo para com a população. Assim sendo, possibilitar uma construção pedagógica muito mais ampla do que a formação técnica para a empregabilidade, mas como elemento da formação humana, questão que deveria ser fundante da universidade.

 

Portanto, a construção da greve é tão dura quanto necessária! Não porque lutamos pelo corporativismo salarial, mas sim porque acreditamos que este é o instrumento que nos resta de resistência contra os ataques que o governo vem efusivamente empenhando contra os direitos da população brasileira. Vamos á luta!

 

 

*Professores da UFMT