Quarta, 22 Junho 2016 15:22

 

Roberto Boaventura da Silva Sá

Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP

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Dedico este artigo à memória de Cazuza, um confesso filho da burguesia, a George Israel e a Ezequiel Neves. Juntos, eles cantaram o fedor dessa classe social, consolidada na França nos marcos de 1789. Para os três, “Enquanto houver burguesia/ Não vai haver poesia”.

 

Não mesmo. Nem sequer a genuína arte, incluindo a fotografia, como, p. ex., a mostra “Cinco Elementos do Cerrado” de Tchélo Figueiredo, que teve suas fotos censuradas por um bispo evangélico e seguidores, além da “recomendação” da Polícia Militar ao Shopping Goiabeiras (Cuiabá) para que as fotos fossem retiradas de um de seus corredores. A mostra – que exibia o nu artístico de mulheres em cenários típicos do cerrado – foi considerada inadequada para ser exibida em um shopping.

 

Excetuando alguns artigos que condenaram a censura, muitos leitores aplaudiram-na. E o fizeram dizendo que pelos shoppings transitam todo tipo de gente, principalmente a “família tradicional”: pai, mãe, filhos.

 

Aliás, as crianças foram os grandes escudos dessa grotesca e perigosa censura. Parece ter havido entre muitos leitores o acordo de que as “crianças não têm capacidade de entender aquilo”.

 

O “aquilo” trata-se do nu artístico; por isso, as crianças deveriam ser poupadas de ver as fotos. Em nome da pureza dos infantes, os adultos, repletos do cinismo burguês, acataram a censura. E quem acata uma censura está aberto a aceitar outras tantas que possam vir.

 

Diante de tudo, fiquei pensando o quão asfixiante é a nossa cultura; essa cultura que já nos coloca no mundo como corresponsáveis por pecados alheios. Consoante a Bíblia, Adão e Eva, ao desobedecerem seu Deus, de imediato, sentiram pudor de suas genitálias. Por isso, cobriram-nas com folhas. 

 

A imagem daquele arquetípico pudor, que em nada é salutar à mente humana, fica explícita na “Carta” que Caminha, em 1500, endereçara a Dom Manuel, rei de Portugal, sobre as pessoas aqui encontradas:

 

“(...) Em geral (os indígenas) são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto...”

 

Para os portugueses, as genitálias eram também chamadas de “vergonhas”. Para os indígenas, elas não passavam de uma parte a mais do corpo humano, do qual tudo tem função natural.

 

Que inveja tenho das culturas consideradas bárbaras por nós, civilizados e cristianizados. São tão naturais! Tão sadias! A nudez para esses povos é, ou pelo menos era antes de conhecerem nossa religião oficial, algo natural. Talvez por isso que, dentre os diferentes povos indígenas antes de quaisquer contaminações culturais, não tenhamos muitas informações – quiçá nem as tenhamos – sobre práticas do estupro, p. ex., algo típico de mentes doentias de sociedades como a nossa e congêneres.

 

É pena que os adultos comecem a desnaturalizar nossas crianças assim que elas nascem. É lamentável que os já adultos, com suas malícias à flor da pele, pensem que as crianças sejam ou possam vir a ser iguais a eles. E infelizmente serão mesmo. Se encarássemos a nudez com naturalidade desde a tenra idade, certamente não colheríamos tantos distúrbios incontornáveis.

 

Termino este artigo dizendo que a única cena que eu não gostaria de que as crianças vissem ou ficassem sabendo é que, naquele mesmo shopping, um dia, um trabalhador foi torturado, assassinado e jogado em um daqueles carrinhos que passam de loja em loja recolhendo o lixo que a burguesia produz.

 

Isso, sim, é inadequado. Ou não é?

Quarta, 15 Junho 2016 15:16

 

 

Roberto Boaventura da Silva Sá

Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP

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Hoje, falo de nudez. Embora isso seja originariamente natural entre os animais, inclusive os “racionais”, falsos moralistas – que abundam por todos os lados – fingem dela correr desde que Eva mordeu a maçã tão malsã. De lá para cá, para alguns tipos humanos, parece que toda nudez deve ser mesmo castigada; e no bojo desses castigos também estão as censuras ao nu artístico.

 

O motivo deste artigo nasceu da leitura que fiz da opinião de um bispo evangélico em Cuiabá – “Chega do politicamente correto” – sobre uma exposição de fotografias de Tchélo Figueiredo.

 

Após ter lido o tal artigo – repleto de preconceitos e equívocos conceituais – e visto a exposição, fiquei por entender o título do texto do bispo. Não há na proposta da exposição nenhuma sugestão sobre o “politicamente correto”. Também não entendi a adesão que a “equipe de marketing” (do Shopping Goiabeiras, o local da exposição) teria feito, na opinião do bispo, “ao marxismo cultural”. Sem sentido. “Papagaíces” de censores desinformados.  

 

Em contrapartida, o título que o artista dá ao seu trabalho – “Cinco Elementos do Cerrado” – estabelece diálogo lógico com o conjunto fotográfico. O cerrado exposto por Tchélo ora se materializa em cenários campestres/aquáticos, ora se desnuda no meio de avenidas do centro da capital de Mato Grosso, a tórrida Cuiabá.

 

O resultado é o inesperado. Tudo muito bem pensado e bem dirigido pelo artista, até para que o público visse e apreciasse, mas incrivelmente nem tudo enxergasse das nuas modelos/personagens. Nada é pornográfico, como afirma o bispo.

 

Assim, a cada foto, uma delicada surpresa. Em uma, vê-se a modelo (à lá tela viva) com o corpo pintado por outro artista mato-grossense (Adir Sodré). Em outra, uma mulher deitada sobre cajus, sensualmente, mordendo-os. Em algumas, a mulher “passeia” sobre verdejantes campos de soja, a verdadeira rainha do agronegócio. Em outras ainda, as modelos se fazem confundir com peixes, pássaros e/ou retorcidas árvores, bem típicas do cerrado. Nestes casos, a confusão se dá pelo amálgama dos chifres de bois, também retorcidos, postos sobre as cabeças das modelos/personagens.

 

Nas fotos em que os cenários são pontos urbanos subjaz a possibilidade de uma lembrança: no escaldante asfalto, a vegetação do cerrado um dia existiu tão nua quanto as despidas modelos/personagens que agora – entre signos da urbe – por ali desfilam, quase sempre com sombrinhas a protegê-las do sol.

 

Em que pese toda essa “poesia visual”, a mostra de Tchélo – que deveria ficar no citado shopping até o dia 20/06, conforme o Portal G1 Centro América (14/06) – teria sido retirada “por orientação da Polícia Militar”, que teria recebido denúncias de clientes do estabelecimento.

 

Inaceitável.

 

Mais inaceitável é saber que atos de censura não se restringem à arte. Vivemos perigoso momento de retrocesso no Brasil. Precisamos lutar conta o casamento da ignorância com o rancor. A luta é de todos os querem uma sociedade livre de preconceitos, além do predomínio da liberdade de expressão.

 

Em tempo: a OAB-MT acolheu a mostra em sua sede a partir do dia 23. Conforme a entidade, a acolhida se deu por conta da “exaltação à cultura mato-grossense” que a mostra faz, bem como pela “defesa da liberdade intelectual e artística asseguradas na Constituição Federal pelo direito de liberdade de expressão". A partir de 14/08, a exposição estará no Palácio da Instrução, em Cuiabá.

 

E contra a instrução, não há quem possa. Todos à mostra. Vale a pena vê-la ou revê-la.