Terça, 07 Agosto 2018 16:17

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza
 

Um possível jeito do mundo de hoje ser lembrado lá no futuro é o fato de termos criado as condições para que uma vassoura, feita lá em Xangai, na China, possa atravessar dois oceanos e vir parar no Centro Oeste brasileiro, para unir-se com um cabo vindo de sobral, no Ceará.

O caso acima, claro, é só um exemplo particular conhecido. Estou falando de uma vassoura e de um cabo que moram na minha casa, comprados involuntariamente num supermercado. Em muitos lugares do mundo, certamente, achamos exemplos análogos.

Repare que pra essa vassoura cruzar o índico e o atlântico foram necessários: as descobertas dos caminhos marítimos, a construção de um moderno e possante navio cargueiro, uma competente tripulação a bordo, um grande acordo de comércio entre nações e uma tecnologia de ponta, posta lá na órbita da terra, para vigiar todos os passos do navio em alto mar.

Isso sem contar com o pessoal de terra: os trabalhadores das fábricas de vassouras, os operadores portuários, os carregadores, os conferidores de notas fiscais, os cobradores de impostos, os caminhoneiros, os trabalhadores dos mercados e, por fim, os consumidores.

Mas o que justificaria essa viagem? Seria o Brasil incapaz de produzir as vassouras que a gente precisa? Ou, por outro lado, estaria o Brasil, de uma vez por todas, se inserindo no mundo moderno, no mundo da globalização, no mundo do consumo, no mundo do mercado? Seria isso o progresso?

Por mais homérica que tenha sido a viagem da vassoura, a do cabo também impressiona. Sim porque faz muito pouco tempo que cabo de vassoura viaja. Segundo porque, além de não viajar, ele não era sequer uma mercadoria. O cabo era parte integrante da vassoura até dias atrás. Aliás, houve um tempo em que a gente improvisava o cabo, fazia-o de um galho seco qualquer. Foi o mundo moderno, portanto, que deu identidade ao cabo de vassoura. Deu identidade, preço e até um código de barras, que é um símbolo de existência no mundo de hoje.

Seja como for, eu me dei conta dessa vassoura intercontinental num domingo de manhã, na hora em que me preparava pra varrer a casa. Estava enroscando uma peça na outra quando percebi, ali perto do made in China, o made in Sobral, indicando, assim como fazem os abstracts dos trabalhos acadêmicos, que o cabo também tinha pretensões internacionais.
 

 
Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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Terça, 31 Julho 2018 11:30

 

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Por Aldi Nestor de Souza
  
 

E graças à China, o ser humano poderá chegar ao ponto de não precisar mais apertar o tubo da pasta de dentes. É que os chineses lançaram no mercado o Kit Dispenser Automático, um aparelho que funciona como suporte pro creme dental e que possibilita, com apenas um toque feito com a escova, que a pasta caia direto nas cerdas, na medida certa e pronta pra escovação.
 
Quando soube disso pensei que fosse só uma brincadeira, uma invenção maluca como aquelas do guarda chuva pros pés ou da gravata com espelho. Que nada. Na loja Mercado Livre, na internet, por exemplo, encontrei um rebanho com mais de 100 modelos diferentes do aparelho. Várias cores, tamanhos, preços, etc. Um mar de opções, a perder de vista e a nos forçar a acreditar que a coisa só pode ser séria.
 
De onde será que veio a ideia pra essa criação? Quem terá sido o empreendedor dessa façanha? O que fará o ser humano com o tempo economizado com mais essa comodidade? Estaríamos nós, humanos, desenvolvendo mais um instinto natural: o de transformar tudo em mercadoria, a qualquer custo, por mais desnecessária que esta venha a ser? Estaríamos a caminho do fim, da condenação de sermos obrigados a não fazer nada, não pensar, não se mover, apenas parar?
 
A partir desse kit, é bem possível que, neste momento, algum empreendedor já esteja pensando em algo como: um aparelho pra escovar nossos próprios dentes e em um outro pra abrir a nossa boca e ficar segurando nossos queixos durante a escovação.
 
Seja como for, o que parece certo é que o Kit Dispenser Automático contribui com o PIB da China, o PIB que se assenhora dos economistas e governos do mundo todo e os faz render-lhe graças, copiá-lo, estudá-lo, endeusá-lo. O PIB que determina o que o mundo é, o que as pessoas devem ser, o que deve ser feito. O PIB que reduz as pessoas a meros números, que suplanta o nosso ser e que transforma a vida das pessoas num imenso vazio.
 
Esse kit me remeteu aquela produção científica universitária, feita como numa linha de montagem, com datas, metas, números e resultados previamente estabelecidos e implacáveis, a troco de pontos pra engordar o currículo lattes e fazer existir o pobre do pesquisador, num processo em que pesquisa e pesquisador não passam de meras mercadorias. Nessa produção viciada, segundo afirma Daniel Lettier, no artigo “Por que professores universitários estão escrevendo coisas que ninguém lê?”, 80% de toda a produção de artigos acadêmicos ninguém jamais vai ler e portanto, se isso for mesmo verdade, tal produção não vai conseguir sequer transformar-se num Kit Dispenser Automático.
 
O que diria, desse kit, o filósofo grego Sócrates? do qual se conta que costumava andar pelas ruas do comércio de Atenas a ressaltar pros seus discípulos, em meio às lojas abarrotadas de produtos: “Vejam só, meus jovens, de quanta coisa eu não preciso para viver!”
 
Pensei também no que diria minha saudosa mãe, uma nordestina forjada no solo seco do sertão, sem nenhuma escolaridade formal, mas que sabia extrair,da casca do tronco do juazeiro, o creme dental de nossa casa. Com uma faca peixeira, ela raspava a casca, punha no sol pra secar e, depois de seca, esfarelava, ou batia num pilão e extraía um pó fininho com o qual a gente escovava os dentes.
 
Pensei, por fim, que, nesse ritmo,  não há analgésico que nos seja suficiente e que é preciso muita tarja preta pra suportar a angústia de existir nesse mundo que nos condena a ser apenas inutensílios, mercadorias expostas numa prateleira pra nada.
 
Que graça tem o mundo se existe uma tecnologia até pra apertar o tubo da pasta de dente?
 
 
Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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Quarta, 25 Julho 2018 13:41

 

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Por Aldi Nestor de Souza*
  
 

A máquina chegou ao povoado, como convém às máquinas, pontualmente, às 8 da manhã de uma segunda feira limpa. Uma segunda feira de agosto.  Estávamos, todos, reunidos e de feijão pronto, esperando.  Cada casa, seu monte, a safra do ano, colhida e posta no sol para secar, pronta pra ser debulhada.
 
O costume no povoado era o de debulhar vagem por vagem. Devagar.  À mão. À noite. Sentados no chão, no claro de um candeeiro ou de uma lamparina, tomando café, contando e ouvindo histórias, causos, piadas, planos, aventuras e desventuras, íamos abrindo as vagens uma por uma.  Na base do mutirão, durava semanas, às vezes,  meses. Toda noite numa casa, até terminar o feijão de todo mundo. Era um ritual. Era o que era o povoado.
 
A máquina fez tudo em menos de uma hora. Tudo. Toda a produção anual do povoado foi devorada em questão de minutos. O barulho da máquina foi o que predominou  na operação. Nada de história, nada de café, nada de mutirão.  Só a máquina, no seu mastigado intermitente, controlado, milimetrado, triturando e triunfando sobre as vagens, moendo as cascas e derramando o feijão já ensacado, pronto pra ser comercializado. A máquina era o progresso, de garras afiadas, ali no povoado.
 
Quando debulhávamos à mão, entendíamos muito bem do esconderijo dos grãos, ouvíamos o estalar das vagens, sentíamos e conhecíamos os detalhes da textura, do tamanho, da cor, do formado, do pelo. Sabíamos, só de olhar, as vagens que davam mais trabalho de ser abertas, as murchas, as chochas. Debulhar à mão é saber do grão pela vagem.
 
À máquina, todas as vagens são iguais, tratadas do mesmo jeito. À máquina, não existe vagem boa de ser aberta, vagem disputada na debulha, nem vagem deixada pro final. À máquina, tudo não passa de um número.
 
Após cada debulha manual, as cascas, ainda plenamente cascas, eram cuidadosamente armazenadas, pra virar ração pro gado.  Com a máquina, as cascas caem no chão desfiguradas, semi destruídas, sem qualquer identidade, um bagaço que o gado mal tem o trabalho de mastigar. A máquina mexe até no tempo de mastigar.
 
Desligado o motor, conforme combinado, o pagamento. Ali, na hora, como convém às máquinas. Em feijão.  A máquina levou, por menos de uma hora de trabalho, mais do que muitos de nós levou meses pra produzir.  Assim, de súbito. Seria o progresso o fim do trabalho?
 
Levamos o resto do dia, da semana, do mês, a filosofar sobre a rapidez da máquina, a precisão, a economia de tempo, o lucro. Sim, o lucro. Por aquele quarto de hora de serviço e algumas gotas de óleo, a máquina lucrou mais de uma saca de feijão. O futuro é a máquina? O progresso é a máquina?
 
Ninguém mais sequer cogitou voltar às debulhas manuais, às histórias, aos causos, ao café. Ninguém.  Aos encontros que eram, por assim dizer, o melhor que havia no povoado, a hora da partilha, da comunhão, da união, nem mais um sinal. Nada. O progresso engoliu tudo isso a seco. O progresso não tem história, não tem passado, não tem futuro, não sente dor, não sente amor, não sente saudade. É a máquina!
 
 
*ALDI NESTOR DE SOUZA
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
 

Quarta, 11 Julho 2018 09:29

 

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Aldi Nestor de Souza*
 
  

Aí você nasce. Cortam-lhe o cordão que te ligava ao mistério. Limpam-lhe o sangue e o choro. Vestem-lhe de fraldas.  E você começa a crescer. Engatinha, anda, corre, fala, rir, mija e caga em tudo que é lugar. Lá pelos seis, sete anos de idade, metem-lhe na escola. Estuda o corpo humano e dos bichos, a terra, a água, o ar, o mundo, as letras, os números, as geografias, as filosofias, as artes, as artimanhas.  Soma, subtrai, lê, reflete, sonha, faz planos, irrita, irrita-se.
 
E você chega ali aos dezoito, já com doze anos de escola nas costas. Dois terços da vida, portanto, indo diariamente à sala de aula. E entre tantas opções: as drogas, o álcool, o mercado de trabalho, a vagabundagem, você decide encarar o Enem e tentar entrar na universidade.
 
E se prepara copiosamente para tal. Faz cursinho extra, pega pesado nas exatas, sacrifica noites, domingos e feriados, abdica de uma saidazinha, guarda o amor pra depois, educa os hormônios, dorme segundo os especialistas, come na dosagem indicada, lê jornais, vê notícias, compra todas as apostilas.
 
Chega o grande momento. É o ano de 2017, você tá com a idade do milênio.  E bem ali, diante da prova da temível matemática, algo inusitado: uma questão para te fazer rever a vida, os planos, as escolhas, a farra perdida, a transa
calada:
 
“Um menino acaba de se mudar para um novo bairro e deseja ir à padaria. Pediu ajuda a um amigo que lhe forneceu um mapa com pontos numerados, que representam cinco locais de interesse, entre os quais está a padaria. Além disso, o amigo passou as seguintes instruções: a partir do ponto em que você se encontra, representado pela letra X, ande para oeste, vire à direita na primeira rua que encontrar, siga em frente e vire à esquerda na próxima rua. A padaria estará logo a seguir.” A partir do mapa, e das indicações do amigo, diga em que ponto encontra-se a padaria.”
 
Você começa achando a questão uma humilhação para com esse lugar maravilhoso que é uma padaria. Questiona, sendo você também um menino, esse tipo de amigo que lhe estende um mapa diante da pergunta que, em geral, responde-se com um esticar de braços e dedos, um franzido nos lábios e, no máximo, um “dobre à direita”. Lembra que ninguém nesse mundo fala “oeste” e pensa na enorme perda de tempo que foi aprender tantas trigonometrias, tantas geometrias, tantas equações polinomiais, tantas matrizes, tantas funções, para, no final das contas, ser obrigado a descobrir a posição de uma padaria, num bairro, a partir de um diálogo fictício e impossível de acontecer.
 
E você lembra que estamos a galope no novo milênio e que ninguém pergunta mais endereço. Que tem aplicativo pra tudo, que a humanidade não sabe mais direito nem o sentido de existir, posto que, aparentemente, há uma tecnologia substituta para cada manifestação do nosso ser.
 
E você pensa na universidade, esse lugar cuja entrada depende desse tipo de questão. E aí você se levanta, pega a prova sem responder, entrega-a ao fiscal e sai.
 
 

*Aldi Nestor de Souza
Departamento de Matemática