Sexta, 19 Abril 2024 08:13

 


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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

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Aldi Nestor de Souza*

 

No próximo semestre darei aulas de uma disciplina que, entre várias outras coisas, se ocupa de explicar ou fornece a teoria matemática do movimento dos robôs. Aparentemente não há nada de estranho em se fazer isso. Afinal de contas, é tarefa de qualquer disciplina repassar para as novas gerações parte do conhecimento acumulado pela humanidade. Além disso, os robôs, há muito, saíram da ficção e meteram-se na vala comum do diário. Tem robô até para passar pano no chão. Porém, há vários elementos que insistem em se apresentar, pelo menos para mim, como potenciais problemas.

Antes de entrar neles, pontuo o fato de que as disciplinas de matemática gozam do curioso prestígio de, aparentemente, poderem prescindir da realidade, de suas contradições, se esconderem tranquilamente debaixo do guarda chuvas da abstração e da “neutralidade” e se manifestarem apenas do ponto de vista teórico e “lógico”: “Um robô é feito disso, ele se movimenta assim, assim, e assado e isso se dá por isso, por isso, por isso e ponto final.”

Para começo de conversa, e já abrindo mão do sossego teórico fornecido pela disciplina, convém esclarecer qual é mesmo essa vala comum do diário na qual os robôs se meteram e que tipo de chão é esse no qual eles andam passando pano. Para essa finalidade, é sempre bom ter em mente que um robô não é um bem da natureza, tipo o ar que respiramos, mas é algo construído socialmente e apropriado privadamente. Em consequência disso, a vala comum e o chão aos quais eles servem, são selecionados pela inevitável luta de classes que, até o presente momento, definiu as sociedades.

Por falar em chão e em luta, é emblemático o caso aqui da universidade, instituição que se ocupa de ensinar o movimento dos robôs e outras diversas e avançadas formas de tecnologia, mas que tem seu chão limpo e passado o pano por mãos bem humanas, munidas de vassouras e rodos e submetidas a regimes de trabalho precários e a salários escorchantes. A sala de aula que vai servir de palco para o ensino do movimento dos robôs vai ser limpa por essas mãos. Diferentemente do ar que respiramos, a posse dos robôs é uma posse de classe.

Convém também esclarecer, na perspectiva da soberania dos povos, que moramos num país que não produz robôs. Aliás, o Brasil não produz (apesar de já ter produzido), sequer, um mísero computador. E é desconfortável constatar que esse mesmo país vê, diariamente, há séculos, sair de suas entranhas e viajar pro exterior (para os países que fazem robô), milhares e milhares de toneladas da matéria prima, dos minerais, utilizados justamente na fabricação dos robôs em particular e dos computadores em geral. O que uma universidade pública, que sem nenhum pudor ensina o movimento dos robôs, tem a ver com o destino de um país como esse? Ela pretende ensinar o movimento dos robôs para quê, exatamente?

Meses atrás o jornal O Globo publicou uma matéria, cujo título sugeria que, finalmente, o Brasil entrava como protagonista nesse mundão da tecnologia. Dizia a matéria: “Como é o supercomputador brasileiro que está entre os mais rápidos do mundo?”. Ao ler a reportagem descobri que, na verdade, o supercomputador foi apenas comprado pelo Brasil, pelo preço de 50 milhões de reais e que o mesmo foi desenvolvido e produzido na França. O supercomputador, chamado de Santos Dumont, é usado para pesquisas científicas e encontra-se abrigado no Laboratório Nacional de Computação Científica.

É também conveniente esclarecer que os trabalhadores convivem com a ameaça diária de perder seus empregos para algum tipo de tecnologia. Em particular, para os robôs. É possível, inclusive, que isso tenha ocorrido ou venha a ocorrer com algum aluno da turma da futura disciplina. E como fica uma aula sobre o movimento dos robôs nessas circunstâncias? Seja como for, as perspectivas que a disciplina apresenta são, contrariando o conforto de uma teoria fria, as do mais acirrado embate da velha e boa luta de classes e seus intermináveis desdobramentos.

Como encarar uma disciplina como essa, num país como esse, se parte dos alunos engenheiros, advogados, professores, etc, inclusive formados nessa universidade, por falta de emprego em suas áreas, tornam-se motoristas ou entregadores por aplicativos? A força da ideologia da tecnologia, sabemos bem, é muito grande. Mas ela consegue dar conta desse transbordamento de contradições?

E o que dizer, finalmente, da alta taxa de evasão nas graduações brasileiras que, somente nos cursos de Tecnologia da Informação, que ironia, segundo matéria do Jornal O Estado de São Paulo, de 8 de julho de 2023, é de quase 70%?

As contradições acima parecem tão pujantes que mesmo que a disciplina se esforce para se esquivar da realidade, não consegue. Por exemplo, como muitas vezes ocorre, a sensação de que a disciplina não passa de mera notícia de um mundo distante, de um noticiário do mundo dos impérios, apresentado a uma espécie de colônia distante, e que, em função disso, os estudantes não conseguem vislumbrar que lugar da fila do pão dos robôs eles poderão ocupar parece um inequívoco e ensurdecedor barulho dessas contradições.

Tudo isso nos leva a acreditar que, por mais festivo que seja o movimento dos robôs, por mais que a ideologia por trás deles seja poderosa e por mais que a teoria fria, pronta, inquestionável, precisa e lógica que os explica, tente se impor, a realidade insiste em se mostrar maior e indiferente a todos esses elementos. E disposta a atacar por todos os lados e a expor todas as fraturas sociais, políticas, econômicas, educacionais, etc., presentes. A matemática do movimento de um robô é a parte mais simples de todo esse processo. Entender como os robôs movem e são movidos pela sociedade é a parte mais fascinante dessa história.

*Aldi Nestor de Souza
Professor do Departamento de Matemática da UFMT-Campus Cuiabá
Membro do GTPFS, Grupo de Trabalho em Política e Formação Sindical da ADUFMAT-Ssind
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Segunda, 21 Agosto 2023 14:14

 

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Por Aldi Nestor de Souza*

 

 

“Traga-me um copo d'água, tenho sede
E essa sede pode me matar
Minha garganta pede um pouco d'água
E os meus olhos pedem o teu olhar”
Dominguinhos – Tenho Sede

 
Beber água, fazendo as mãos de cuia, na beira de um córrego, é uma coisa. Beber água, abrindo uma geladeira, escolhendo uma garrafa e um copo adequados, é outra muito diferente.  A sede pode até ser semelhante, o ato social de matá-la, não.

Quando a água era coisa que dava nos rios, de graça e não cogitava virar uma mercadoria, bastava à humanidade, acossada pela sede, talvez após uma caminhada, curvar o corpo, esticar os braços e tomá-la natural, pura e à vontade, direto da fonte, sem intermediários, numa relação certamente próxima de natural. Não havia, nessa altura da história, com respeito a forma de matar a sede, muita diferença entre o ser humano e os outros animais.

Com o passar do tempo, a água foi invadindo as moringas, os potes, os tonéis, os barris, os tanques, os filtros até, finalmente, as geladeiras, seu estágio atual. Cada mudança dessa foi forjando a sede e, fundamentalmente, foi desnaturalizando a forma de matá-la. Diversos intermediários foram se aproximando, entrecruzando e intervindo na trajetória da sede. O artesão do pote, do barril, do tonel, o fabricante da geladeira são alguns exemplos. O ser humano também foi se alterando. O que bebe água gelada certamente é outro tipo de ser, tem o paladar muito distinto daquele que fazia as mãos de cuia.

A água, hoje, tem dono, está privatizada, inclusive a do subsolo, dos confins da terra. Está até na bolsa de valores. Virou uma commoditie. Ganhou rótulos, marca, código de barras, data de vencimento, enfileirou-se em prateleiras.  Uma cadeia produtiva, de proporções gigantescas, está por trás de um simples copo d’água. E a humanidade nem se assemelha àquela natural, que ia ao córrego. Também se distanciou daquela que usava moringas, potes, barris, filtros e que ia aos artesãos. Matar a sede se tornou algo muito mais complexo, exige até conhecimento científico.

A geladeira depende de uma linha de montagem e de uma quantidade quase incontável de pessoas no seu entorno. Tem modelo específico, cor, design, nível de consumo de energia, capacidade em litros, marca. É produzida por certo tipo de trabalhadores, com variadas formas de direitos trabalhistas. É vendida numa loja, por outros trabalhadores, com outra configuração e outra forma de trabalho. É entregue nas casas dos compradores por outros trabalhadores, sujeitos também a outras regras do mundo do trabalho.  A geladeira é um produto do trabalho assalariado, que a humanidade das mãos de cuia nem em sonhos imaginava que viesse a existir.

Uma fonte de energia é necessária para gelar a água. Talvez a construção de uma hidrelétrica, talvez a tecnologia da energia solar ou eólica, um certo tipo de política energética, uma agenda governamental. Aqui, outros milhares de trabalhadores envolvidos: engenheiros de diversos tipos, advogados, cobradores de impostos, trabalhadores da companhia de energia;  e uma classe de políticos: vereadores, deputados, governadores, senadores e até  presidentes da república. Da confluência e da disputa entre toda essa gente sai uma fonte de energia.

Para construir uma hidrelétrica, outros milhões de pessoas, além dos trabalhadores da construção, são afetadas diretamente, populações inteiras, cidades inteiras são remanejadas. Mas também a fauna e a flora do entorno do rio a ser contido. Uma operação invasiva e de dimensões profundas é realizada e está por trás do ato, aparentemente singelo, de se beber um copo de água gelada.

A garrafa também mobiliza outras gigantes da indústria, outros incontáveis trabalhadores, milhões de outras relações sociais, inclusive a indústria petrolífera e a ciência mais avançada. Uma simples mudança no formato da garrafa, para economizar plástico e baixar os custos de produção, envolve modelos matemáticos de otimização, a engenharia química e o estudo da resistência de materiais. Muito distante dos reservatórios de água e de quem vai matar a sede, uma frota industrial trama, intervém, media e controla os passos da sede.

O copo também tem sua existência e suas mediações. Também é consequência de uma cadeia produtiva. Assim como a garrafa e a geladeira, tem modelo, cor, marca, tamanho, design. E para cada uma dessas coisas, trabalhadores com diversos tipos de habilidades são necessários. Tem copo para adulto e para criança, tem de vidro e tem de plástico. O copo também impõe que a ciência se mexa, que a tecnologia lhe atenda. Também depende das decisões de estado sobre os direitos e as políticas trabalhistas, pois assim como a geladeira e a garrafa, depende do trabalho.

A indústria de água mineral é um capítulo à parte. Retirada de certas propriedades privadas, a água mineral é embalada em garrafões e comercializada. A compra desses garrafões de água, em geral, depende de uma companhia de telefonia ou de uma rede de internet. Novamente, outro sem número de trabalhadores envolvidos, entregadores por aplicativos, com tecnologia de ponta nas mãos e submetidos a condições de trabalho precárias.

Beber um copo d’água, hoje em dia, aquece a economia, mexe com o produto interno bruto, agita o mercado financeiro, inflama os especuladores. Beber um simples copo d’água, mesmo no silêncio da noite, mesmo se estando em casa, com as portas trancadas, é um ato que obriga o mundo inteiro a ficar sabendo. Ninguém, hoje em dia, bebe um copo d’água impunemente.

E é um mistério, algo como um feitiço, que toda essa avalanche de gente e de acontecimentos estejam por trás de um simples copo d’água e a gente nem se dê conta. É fascinante, intrigante, o número de funções que um copo d’água cumpre. Matar a sede parece ser apenas o mais aparente, o mais simples de se entender.

 
*Aldi Nestor de Souza
Professor do Departamento de Matemática- UFMT/Cuiabá
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Quinta, 20 Abril 2023 12:17

 

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Publicamos a pedido do professor Aldi Nestor de Souza

 

DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA PROPÕE CALENDÁRIO ACADÊMICO PARA A UFMT

Considerando,

1.  O que estabelece o processo 23108.020375/2023-98e a proposta de calendário acadêmico nele contida, em particular no que se refere aos dias de Pontos Facultativos que passam a contar como DIAS LETIVOS;

2.  Que o parcelamento das férias docentes em 3 blocos de 15 dias não produz efeitos significativos na sincronização do calendário acadêmico/civil;

3.  Que 30 dias de férias anuais, ininterruptas, são imprescindíveis para o descanso e a preservação da saúde física e mental de todo e qualquer trabalhador;

4.  Que um grande número de professores e estudantes da UFMT são de outros  estados e até de outros países e que janeiro é o único período que os possibilita visitar seus familiares;

5.  Que o semestre letivo iniciando no mês de janeiro compromete o trabalho das licenciaturas no que diz respeito aos estágios e vivências nas escolas, posto que estas encontram-se de férias;

6.  O que diz a resolução Consepenº 93 de 2011, que trata do período letivo especial(duas semanas). E em face dessa resolução, aqui adotaremos DUAS SEMANAS como um período de 14 dias corridos.

O colegiado do departamento de matemática da UFMT, campus Cuiabá, reunido em 18/04/2023, propõe  oseguinte calendário Acadêmico para os anos de 2023 e 2024.

Destacamos que a proposta abaixo mantém os 100 dias letivos por semestre, mantém o período letivo especial de duas semanas entre semestres, mantém o prazo de provas finais, de segunda época e de lançamento de notas no sistema, mantém as férias docentes de 30 dias em janeiro e regulariza/sincroniza o semestre letivo 2025-1 com o primeiro semestre civil de 2025.

Observamos que a proposta apresentada refere-se ao campus de Cuiabá e que as devidas adaptações precisam ser feitas pros campi do interior. Mas salientamos que tais adaptações não configuram alterações significativas da proposta apresentada.

Proposta

2023-1

Início: 29/06/2023 (conforme estabelecido no processo 23108.020375/2023-98)
Centésimo dia letivo: 25/10/2023(conforme estabelecido no processo 23108.020375/2023-98)
Último dia para  lançamento de notas no sistema 03/11/2023
Período Letivo especial 03/11 a 16/11/2023
Planejamento docente 13 a 16 /11/2023

2023-2

Início 17/11/2023
Novembro - 11 dias letivos
Dezembro – 19 dias letivos
Janeiro(2024) Férias docentes 30 dias
Fevereiro(2024) – 25 dias letivos
Março(2024)- 25 dias letivos
Abril(2024) – 20 dias letivos
Centésimo dia letivo: 24/04/2024
último prazo para lançamento de notas no sistema30/04/2024
Período letivo especial 02/05/2024 a 16/05/2024
Planejamento docente 15 e 16 /05/2024

2024-1

Início:17/05/2024
Maio 13 dias letivos
junho 25 dias letivos
Julho 27 dias letivos
agosto  27 dias letivos
setembro 8 dias letivos
Centésimo dia letivo: 11/09/2024
último prazo para lançamento de notas no sistema18/09/2024
Férias docentes 18/09/2024  a 02/10/2024
Período letivo especial 18/09/2026 a 02/10/2024
Planejamento docente 03 e 04/09/2024

2024-2

Início:05/10/2024
Outubro 22 dias letivos
Novembro 23 dias letivos
Dezembro  19 dias letivos
Janeiro(2025)  Férias docentes 30 dias
Fevereiro(2025) 24 dias letivos
Março 12 dias letivos
Centésimo dia letivo: 14/03/2025
último prazo para lançamento de notas no sistema21/03/2025
Período letivo especial 22/03/2025 a 04/04/2025
Planejamento docente 03/04 a04/04/2024

2025-1

Início 05/04/2025

Finalizamos reiterando que, sem prejuízo das férias docentes e discentes e das atividades acadêmicas obrigatórias,  a sincronização dos calendários civil e acadêmico , conforme apresentado acima, se regulariza no início do primeiro semestre de 2025.




Cuiabá, 19 de Abril de 2022

Colegiado de Departamento de Matemática

Segunda, 13 Março 2023 13:42

 

 

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Por Aldi Nestor de Souza*


 

 

Há quem diga que a parte mais importante de um congresso, seja qual for o congresso, é a que se dá nos bastidores: as conversas de café, os intervalos,os encontros casuais. Essa é a parte viva dos eventos, o motor de ideias novas, o formulador de novas pautas, o combustível da transformação. Não sei se isso é verdade. De todo modo, começo o repasse, que dividirei em três partes, do 41º Congresso do Andes –SN, que aconteceu em Rio Branco, no Acre, de 6 a 10 de fevereiro de 2023, justamente pelo relato de uma conversa de bastidor.

Um papo com um velho amigo, antigo professor, que me deu aula na graduação, lá em Mossoró-RN e que estava no 41º Congresso, durou todo o congresso. E ainda dura. Foi uma alegria sem tamanho encontra-lo. À base de muito café e de várias e longas conversas, atualizamos um pouco os assuntos da terra do sal e que expulsou Lampião, da capital do agronegócio e da fila do osso, da conjuntura nacional. Em meio a isso, ele, que aprendeu álgebra na USP e capotaria no bairro Auto São Manuel em Mossoró, perguntou se eu poderia ler e opinar sobre um artigo que acabara de escrever. Disse que sim.

Álgebras de Colombeuau é o abrigo geral onde vive a especificidade de sua pesquisa. Colombeau é francês, vive no Brasil e trabalha na USP há alguns anos. Os reflexos de suas álgebras podem ser notados em diversas regiões do Brasil. De Mossoró, passando por Campina Grande, São Paulo, Interior de Minas, Norte, Nordeste, Centro Oeste, Sul e Sudeste, enfim, todas as regiões do Brasil estão impregnadas por elas.

Mas foi ali, no calor da terra de Chico Mendes, numa terra marcada pelas mais abissais contradições, numa terra em que quase 80 por cento das pessoas votaram em Bolsonaro, que tive meu primeiro, inesquecível  e irreparável contato com elas.

Em entrevista concedida à UNICAMP, em 2016, Jean-François Claude Colombeau disse, não conseguindo esconder um certo orgulho e felicidade, (ver os minutos 19:40 a 21:40 da entrevista a seguir) https://www.facebook.com/watch/?v=1807003736284419, que suas álgebras, particularmente no que se refere a Multiplicação de Distribuições, foram usadas no início dos anos de 1980, pelo exército francês, para melhorar a qualidade de seus blindados. Disse ainda, na mesma entrevista, que um novo tipo de tiro havia sido desenvolvido naquele período e que tinha a potência de ultrapassar qualquer blindado com até 50 cm de espessura. Esse tipo de tiro, sentenciou,“tinha o poder de fazer com que todos os blindados do exército soviético fossem jogados na lata do lixo”. Colombeau ainda acrescentou que sua teoria seria utilizada pela marinha francesa, especificamente para a melhoria dos submarinos.

A sensação foi a de um turbilhão à queima roupa. O ANDES se divorciando da CSP Conlutas, instrumento de luta que ajudou a construir, e as álgebras de Colombeau, que muito provavelmente influenciaram no destino da guerra fria, lado a lado, disputando cada minuto de minha atenção e capacidade de compreensão e reflexão.

O estudo do meu colega, como acontece com toda pesquisa em matemática pura, é sorrateiramente atemporal, sem sujeito, sem lugar, sem sociedade, sem crise, sem guerra, sem tiro. É uma álgebra com qualquer outra. Uma estrutura matemática com cara de neutra.

Como diz Alfred SohnRethel no seu Trabalho Intelectual e Trabalho Espiritual, no capítulo A Matemática Como Limite entre Cabeça e Mão,

“ pela matematização a ciência do novo tempo comparte sua qualificação com o conceito de valor da economia das mercadorias, a cujos interesses ela serve direta e indiretamente. Como sua igualdade de origem com o capital e seu modo de produção está completamente obscurecida para os detentores da ciência, estes se regozijam pela independência imaginária da motivação de seu pesquisar em sua era clássica com base na universalidade de sua forma conceitual e sua distância ideal do capital.”

Diversas questões se levantaram desse episódio. Por exemplo, Quão profunda foi a valorização do valor que essas álgebras proporcionaram aos aliados da França  na guerra fria? Terá sido esse um golpe de misericórdia no conflito? Como um capoteiro, um homem que recuperava sofás velhos na periferia de Mossoró, tem acesso e contribui com o aprimoramento dessas álgebras? Os descendentes de Colombeau, espalhados de Norte a Sul do Brasil tem ideia da bomba que carregam nas mãos? É a matemática a rainha da alienação?

O 41º congresso do ANDES aprovou ajuda financeira para o povo Yanomami, que há décadas sofre com o avanço da mineração e do desmatamento em seu território. As notícias mais recentes sobre esse povo sãos as de morte por fome sendo transmitidas ao vivo, em rede nacional. Um horror. Além da doação, o 41º Congresso fez também um caloroso debate sobre o tema. As álgebras de Colombeau, por óbvio?, não participaram do debate. Mas acho que deveriam fazê-lo. Porque, afinal de contas, os temas são inseparáveis. De nada adianta doar uma quantia em dinheiro para um povo indígena que perece de fome e dar de bandeja uma pesquisa de ponta, publicada em inglês e numa revista internacional, para fortalecer ainda mais o capital dos impérios que nos sufocam.

Disse a meu colega que o que acontece com a ciência em geral e a matemática em particular, para gente como nós, habitantes da periferia do mundo, é algo digno de muito cuidado. A quem servimos? Qual a finalidade de nossas pesquisas? O que pesquisamos ajuda a entender nossa posição nesse mundo? Nunca é demais lembrar que o Brasil, como bem disse Darcy Ribeiro, é um moinho de moer gente.


*Aldi Nestor de Souza é professor do Departamento de Matemática da UFMT-CUIABÁ e membro do GTPFS-ADUFMAT; e-mail: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

Quarta, 14 Dezembro 2022 11:05

 

 

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Aldi Nestor de Souza*
Marlene Menezes**

 


A partir do chamado estabelecido pela circular nº 431/2022, do ANDES SN, aconteceu na última segunda feira, dia 12 de dezembro de 2022, de modo virtual, uma reunião do Setor das Federais desse sindicato, tendo como pauta:

1.  Informes nacionais;

2.  Conjuntura e cortes na educação;

3.  Encaminhamentos.

A reunião foi motivada pela intensificação dos cortes de recursos da educação, feitos pelo governo federal, que tornou impossível o funcionamento das universidades federais.
Participaram 38 pessoas dessa reunião e, pela ADUFMAT SSIND, os sindicalizados Marlene Menezes, com direito a voto, e Aldi Nestor de Souza, como observador. 
No ponto Informes Nacionais, a direção do ANDES SN, na pessoa de Rivanda Moura, informou da reunião que a direção do sindicato teve com a Equipe de Transição do novo governo federal brasileiro que tomará em 01/01/2023. Destacou que foi entregue um documento, escrito a partir da carta aos presidenciáveis, aprovada no Conad Extraordinário, realizado em 2022 na cidade de Vitória da Conquista, que, dentre outras coisas, contém os seguintes pontos programáticos:
- Recomposição do Orçamento da Educação, que está associado à revogação da Emenda Constitucional 95;;
- Fim da lista tríplice para a escolha dos reitores das universidades;
- Revogação das intervenções nas reitorias das Universidades, feitas no governo Bolsonaro;
- Arquivamento do projeto Reuni Digital;
- Revogação da Reforma do Ensino Médio;
- Revogação de todos os decretos, leis e medidas, feitas pelo governo federal, que atingem e prejudicam a educação nos últimos anos.
Informou ainda que a Equipe de Transição indica a impossibilidade orçamentária para recomposição das perdas causadas pela inflação nos salários dos servidores públicos federais.
Com relação ao Sigilo de 100 Anos sobre alguns temas, decretado pelo governo Bolsonaro, Rivânia Moura informou que há uma negociação entre a Equipe de Transição e o presidente da câmara dos deputados, Artur Lira, sobre quais desses decretos serão revogados.
Um outro informe nacional foi com relação ao encontro realizado em Foz do Iguaçu-PR, pelo ANDES SN, composto por II Seminário Internacional Educação Superior na América Latina e Caribe e Organização dos(as) Trabalhadores(as), o I Seminário Multicampia e Fronteira e o I Festival de Arte e Cultura Sem Fronteiras. Destacou a realização, durante esse evento, do ato Em defesa da Educação Pública e pela Integração Latinoamericana que teve como palco a Ponte Internacional da Amizade, na fronteira entre  Brasil e Paraguai.
No ponto, Conjuntura e Cortes na Educação, a situação dramática em que se encontram as universidades deu o tom da discussão. Há relatos, como o da FURGS, que se encontra ameaçada de não conseguir rodar a folha de pagamento do mês de dezembro, dos professores daquela universidade, em virtude da falta de recursos impedir o pagamento feito a médicos residentes que são parte componente/adicional da folha.
Da ADUFPEL, a representante destacou a dificuldade de contar com a participação dos estudantes daquela universidade em virtude do DCE assumir uma posição apaziguada com a reitoria.  Da ADUA veio o complemento de que naquela universidade não existe DCE.
O repasse da ADUFMAT destacou o histórico dos cortes, vindo desde o corte de energia elétrica que deixou a universidade sem luz em 2019 até o mais recente, que deixou os animais do antigo zoológico sem comida, o que fez com que uma campanha de arrecadação de alimentos fosse realizada.
A evasão gigantesca de estudantes das universidades, em parte em função do valor das bolsas estudantis, que estão a mais de 10 anos sem reajuste, em parte pelo atraso e incertezas de pagamento das mesmas,  também teve lugar na discussão de conjuntura.
Ao longo da discussão, destacou-se ainda o fato de algumas Centrais Sindicais, que andam dizendo não haver necessidade de se revogar a Reforma Trabalhista de 2017. Ainda teve lugar na discussão da conjuntura, em virtude de parte da base do ANDES SN ter afinidade com o governo eleito e, em função disso, entender que “se deve dar um tempo ao novo governo”, qual deve ser a postura do ANDES SN diante do novo ciclo que se inicia em 2022.
Mesmo considerando que estamos no final do ano, com algumas universidades já com as atividades encerradas, o entendimento foi que a situação impõe que é tão dramática que se impõe e exige ação.

Foram aprovados os seguintes encaminhamentos:

1) Jornada Nacional de luta nas universidades contra os cortes – 15 e 16 de dezembro (atos, debates, universidade na praça, faixaços). Data a ser construída com demais entidades da educação.
2) Que o Setor realize um levantamento sobre os calendários acadêmicos das IF e existência de movimentos unificados dentro das IF e com outros movimentos sociais.
3) Reforçar com o GTPE a necessidade de pesquisa e aprofundamento sobre Reuni Digital e Ead.
4) Que as seções sindicais informem suas articulações de luta nos próximos dias via formulário do andes( esse informe deve ser feito em formulário específico que será enviado pelo ANDES SN).
5) Protocolar nossa pauta para o novo governo solicitando uma agenda de discussão e negociação e realizar um ato em Brasília convocando representação das seções sindicais.
6) Impulsionar e ampliar a Campanha pela defesa da educação pública e contra os cortes



*Aldi Nestor é professor do departamento de Matemática da UFMT-Cuiabá
**Marlene Menezes é professora aposentada da UFMT – Cuiabá

Segunda, 12 Dezembro 2022 08:33

 

 

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Por Aldi Nestor de Souza*

 

Por exigências de um pneu, que cismou de amanhecer murcho na manhã do último domingo, precisei perambular pelas ruas da cidade em busca de uma borracharia. A que costumo frequentar, cujo borracheiro é meu vizinho e amigo, não abre nos domingos e feriados, e agora também nos sábados à tarde, nem por decreto. “Escolham outros dias pra murchar”, diz o borracheiro.

Sempre tive grande apreço pelas borracharias. Em parte pela singularidade de nunca ter me deparado, no rádio, na TV, na internet, nos jornais, nos carros de som, nos outdoors, em qualquer espaço de comunicação, com propaganda de nenhuma delas. As borracharias são discretas, vivem com certa desconfiança desse mundo regido e coagido pela troca de mercadorias. Nunca as vi fazendo qualquer tipo de promoção e parece bastante improvável que ocorra a algum borracheiro, ao final de um serviço, dizer algo do tipo: preencha nosso cupom e concorra a prêmios. Não, as borracharias parecem sugerir um “aqui, não, alto lá!

Uma outra característica das borracharias é o fato de a gente nunca saber direito a cor de suas paredes. Com o tempo, as marcas do trabalho é que dão cor e  determinam a decoração do ambiente, nada de disfarce com tinta. As marcas do trabalho, por sinal, estampadas e à vista de todos, conferem uma certa originalidade, autoridade e dignidade ao local. Outro elemento importante é a improvisação de cadeiras pros visitantes: um resto de tronco de árvore, um cepo de madeira, um pneu deitado, um tamborete velho, uma cadeira qualquer são aonde as pessoas se sentam para jogar conversa fora e ou aguardar os consertos. Tais utensílios demonstram o apreço que as borracharias tem pelo valor de uso das coisas, ao mesmo tempo em que mostram toda a precaução que tem com a sedução e a ditadura imposta pelas mercadorias.

As borracharias são talvez o único lugar que permite o uso gratuito de seus equipamentos. É o caso do compressor de ar, que é usado livremente para a calibragem de pneus.

Após percorrer algumas ruas, me deparei com uma aberta. Parei. Comecei estranhando o fato de não ter aquele tradicional monte de pneus velhos na frente, apenas um nome bem escrito na fachada e um desenho, em destaque, de um pneu. Entrei. Um misto de agonia, decepção e medo me invadiu. Eram 11:30 da manhã. O borracheiro, com um sorriso de entusiasmo no rosto, óculos apropriados para a lida com pneus, macacão com o nome da empresa, fala e sotaque adquiridos em treinamento, me cumprimentou com o indigesto, abominável, corrosivo “Bom dia, senhor, seja bem vindo, no que posso ajudar?”

Lembrei de minha saudosa avó, que quando via algo parecido com uma assombração fazia o sinal da cruz e dizia “misericórdia!”

Olhei em volta. Nenhum pôster sagrado ou profano, nenhum time do coração,  nenhum desenho obsceno, nenhum palavrão nas paredes, nada. Além de calçada, paredes, piso, teto, portas, todos sufocantemente limpos, haviam cadeiras acolchoadas, todas iguais, de mesma cor, para os clientes sentarem. Até uma bacia plástica, transparente, com água cristalina, havia tomado o lugar daquele tradicional recipiente meio sujo, cheio d`água, usado para identificar o furo dos pneus. “Nessa borracharia, os pneus velhos, que não prestam mais, são todos doados para a reciclagem, “afirmou o borracheiro, que acrescentou” temos que cuidar do meio ambiente”.

Um cartaz, pregado à altura dos olhos, feito de letras de computador, com os dizeres “pagamento em dinheiro, transferência bancária, pix ou cartão” ladeava um freezer vertical, de porta transparente, lotado de produtos à venda: coco verde, água de coco em garrafa, água mineral, refrigerantes, sucos, chocolates em barra. Eram os escombros do salto mortal das mercadorias indo até às últimas consequências.

Instrumentos que eu nunca tinha visto, tais como uma espécie de creme para rejuvenescer a cor do pneu, uma vassourinha específica para varrer o pneu por dentro, uma maquininha que faz uma espécie de massagem na roda se revezavam nas mãos do borracheiro que, com o cuidado de um cirurgião e modos de quem está acariciando a pessoa amada, preparava o terreno para o remendo.

Como disse no início, sempre nutri grande estima pelas borracharias e as entendia como espaços de muita resistência. Mas, após esse episódio, a sensação é a de vê-las, pela primeira vez, acuadas, sem luz própria, derrotadas e de joelhos diante da ordem social vigente.  E sinceramente, até esse momento, eu acreditava que aquela tradicional frase “tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado”, que tanto ilustra quedas e transformações históricas, encontrava nas borracharias um contra exemplo, uma honrosa exceção.

Sinto que com a queda das borracharias o triunfo da ordem social capitalista se aprofunda, atingindo os mais altos graus de exploração e degradação da vida humana, submetendo trabalhadores à tarefa espúria de tratar bem os clientes, sorrir, demonstrar entusiasmo, felicidade e empenho no trabalho, em pleno domingo, bem na hora do almoço.

Ao final do serviço, depois de me agradecer e me desejar um bom almoço, o borracheiro me entregou de brinde o cartãozinho da borracharia, contendo o nome, o endereço físico, o número de telefone, o endereço de e-mail e mais a frase  “atendemos também em domicílio, 24 horas por dia”.


“Misericórdia!” 

*Aldi Nestor é professor no Departamento de Matemática da UFMT, Campus Cuiabá.


Sexta, 25 Junho 2021 08:28

 

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Por Aldi Nestor de Souza*
 

Por trás de Edivaldo estão a Espanha, os Emirados Árabes e alguns séculos de história. Na sua frente está dona Margarida, na vizinhança dos 80 anos, viúva, devota de nossa senhora da Conceição, moradora da pequena cidade de Lages, sertão do Rio Grande do Norte. É cedo do dia, dona Margarida tomou café da manhã e estávarrendoa calçada. É lúcida.
 
A razão do encontro é que a Espanha e os Emirados Árabes, como já o fizeram com centenas de outras casas da cidade, querem alugar a de dona Margarida. Três quartos, sala, cozinha, banheiro e quintal. Herança reformada de vários antepassados. É a casa da família, de toda a sua história e que dá pra abrigar 10 pessoas com tranquilidade.
 
As serras, o vento da região e a implementação da energia eólica, em popa em todo o estado,  alvoroçam a cidade e fazem os olhos do mundo mirarem o discretomunicípio. Caminhões, máquinas, guindastes e uma legião de trabalhadores formigueiram o encosto das serras da redondeza, que aos poucos vão transmutandoa paisagem.  É digno de nota também o que está acontecendo no litoral,  nos cartões postais do estado que ganharam a companhia de gigantes moinhos de vento. Não dá pra andar no estado sem lembrar de dom Quixote.
 
Não é venda o que se quer da casa, é aluguel, e é bom frisar isso. A ocupação é temporária, sem finalidade de estabelecer relações ou vínculos e vai durar apenas o tempo de instalação do empreendimento, da colonização do vento. Depois a cidade volta a sua rotina, quietude,negócios, empregos e vida de costume. E dona Margarida poderá voltar pra sua casa.
 
Para Edivaldo conseguir desempenhar esse cargo de aliciador de imóveis, foi fundamental o curso de bacharel em Ciência e Tecnologia, de duração de três anos, ofertado pela Ufersa-Universidade Federal Rural do Semi Árido, que ele concluiu com láurea, no campus da cidade de Angicos, há poucos quilômetros de Lages. Ele é o primeiro de sua família a transpor os muros do ensino superior.
 
O encontro com dona Margarida se deu numa segunda feira de junho, no mesmo dia em que a Eletrobrás foi privatizada. As bolsas de valores do mundo todo, em particular a da Europa e a do Oriente Médio souberam desse encontro e sabem tudo de Edivaldo, de dona Margarida, da Ufersa, das universidades em geral, das autoridades e do governo brasileiros, dos detalhes da pilhagem da privatização.  E há quem acredite e defenda que tudo isso não passa de mais uma etapa exitosa de desenvolvimento.
 
Edivaldo, que pretende, agora mais do que nunca, seguir estudos na engenharia elétrica, é vendido como portador deuma estatística louvável:É um jovem, com diploma e emprego.As autoridades governamentais e os operadores universitários,não descartam o fato de que ele poderá acompanhar e crescer na terceirizada que o contratou eque presta serviços paraa multinacional.Quem sabe ele não vira auxiliar de engenheiro. Afinal, o que mais tem no sertão são serras e ventos desocupados.  Até uma moto Honda, CG, 150 cilindradas, ele já adquiriu. Edivaldo tem até carteira assinada.
 
Dona Margarida, que não frequentou escola, tinha 20 anos quando o educador Paulo Freire andou por Angicos com seu projeto de alfabetização de adultos. Não deu. Ela carrega pelo corpoas marcas inequívocas de um país que fala grosso com o seu povo e fino com os impérios do estrangeiro.  Ela diz bassoura e barrer, escancarando,  naquilo que talvez seja um dos bens mais preciosos de um povo, que é a sua língua, uma Espanha acostumada a tantas,  tamanhase corriqueiras colonizações. 
 
Da calçada de dona Margarida o sol não serámais o mesmo. As aspas dos moinhos de vento, plantados no espinhaço da serra, fazem girar a visão, inquietam o sertão, perturbam o sossego das serras e dão cutiladas no bucho do astro rei. 

 



 

Bem longe dali essa pilhagem dos nossos recursos, essa colonização do nosso vento, alimenta, com negócios milionários, a sanha do mercado internacional de comodities. E o esforço, a história e os préstimos de gente como Edivaldo ea gentileza de casas como a de dona Margarida andarão por algumas linhas de transmissão e depois cruzarão o oceano, até repousar nas contas bancárias de algum gringo desconhecido que jamais pôs ou porá os pés em Lages.
 
Num dizer mais encorpado e bem mais elaborado, na linguagem de uma tese, que foi ao ar em 2019, pela Geografia da UFRN, com o título TERRITÓRIO, TÉCNICA E ELETRIFICAÇÃO, o autor Marcos Antônio Alves de Araújo, impiedosa e duramente conclui.
 
“Os resultados obtidos nos conduziram a ratificar a tese, ora defendida, de que a realização do subcircuito eólico no Rio Grande do Norte tem ocorrido a partir da expansão técnica, normativa e produtiva do macrossistema elétrico nacional no estado, e de sua estrangeirização, financeirização e oligopolização, resultado da fusão e concentração de capitais e da desnacionalização do setor elétrico via processos de aquisição de empresas e ativos domésticos por grandes grupos econômicos internacionais que já controlam, majoritariamente, os segmentos de geração, distribuição e comercialização de energia, e que avançam sobre a transmissão. Isso nos leva a concluir que vem acontecendo no meio geográfico potiguar um processo, outrora observado pelo professor Milton Santos no território brasileiro, de expansão dos espaços nacionais da economia internacional, agora através da energia elétrica.”
 
O valor do aluguel da casa, por um contrato de um ano, será de dois mil reais por mês, que junto com a aposentadoria de um salário mínimo, deixará dona Margaridaentre as maiores rendas mensais da cidade e fará com que ela multiplique seus ganhos, por três, pela primeira vez na vida.
 
P.S. O governo federal tem na agenda a privatização do que ainda resta, por exemplo, dos correios, da Petrobrás, dos bancos públicos e a reforma administrativa. É privada e espanhola a empresa de energia elétrica do Amapá, que viveu, tempos atrás, um apagão de vários dias. Os custos do Apagão foram repassados para os consumidores. As universidades, mergulhadas no ensino remoto, discutem país afora se e quando voltam ao ensino presencial e exigem condições sanitárias para tal.
 

 
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT, campus de Cuiabá
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Sexta, 18 Dezembro 2020 10:41


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Texto enviado pelo Prof. Aldi Nestor de Souza*

 

17:00h. Quarta Feira, 16 de dezembro de 2020. Várzea Grande. Mato Grosso. Os assistentes e as assistentes sociais cerram a porta do ginásio de esportes, após um dia de cadastramento e vão pras suas casas. Do lado de dentro do ginásio, a mobília de mais de mil famílias, despejadas do residencial Colinas Douradas, de propriedade da caixa econômica, na manhã daquele dia. Do lado de fora, as famílias, alguns colchões espalhados pelo chão, uma barraquinha de plástico. 

De pouco valeu a pergunta, feita ao funcionário da caixa, cuidadoso e conferindo cada colchonete, cada saco de roupas velhas, cada armário, cada gaveta espalhados no piso do ginásio,  e ao pessoal da assistência social, em suas mesinhas ornadas de questionários:
 
o que vai ser feito com as pessoas que estão lá fora?
 
Pelo funcionário da caixa foi dada a seguinte resposta: A Caixa econômica, conforme decisão judicial, é responsável pela mobília. Ela ficará aqui no ginásio por um período de trinta dias. Sobre as pessoas, é o poder público que tem que se responsabilizar.
 
Certo, mas e se começar essa chuva que está a caminho, elas vão poder entrar e se proteger aqui na quadra?
 
Isso quem resolve é a prefeitura.
 
Pelos assistentes e pelas assistentes sociais foi dada a seguinte resposta: a prefeitura tem os abrigos, elas podem ir pra lá. Estamos fazendo um cadastro via CRASS, que consiste de saber o antigo endereço delas, de algum parente, para encaminhá-las. “porque com certeza elas tinham endereço, elas moravam em algum lugar antes da invasão, né?”, finalizou uma assistente social.
 
Lá fora, homens, mulheres e crianças, muitos ainda sem almoço naquele dia, olhar de desânimo, de cansaço, de tristeza, de revolta,  relatavam o ocorrido, a violência da polícia e afirmavam precisar dormir ali na calçada por não ter pra onde ir. “sim, é claro que eu tenho parentes. Morávamos 12 pessoas, duas famílias,  numa peça de dois cômodos”. “eu morava de aluguel, perdi o emprego na pandemia, fiquei sem ter como pagar e me juntei ao pessoal para ocupar o prédio desocupado da caixa”. “ eles retiraram uma mulher com covid lá do prédio, de nada adiantou ela mostrar os exames positivos, os remédios, a dor, a fragilidade.  A polícia arrancou ela de lá .”
 
Uma assistente social ainda conseguiu dizer o seguinte: “mas eles tem até carro, apontando para uma saveiro, anos 90, estacionada perto”. Olha, respondi:  um deles tem uma caminhonete novinha, de dois anos de uso, mas com mil famílias despejadas, por que te chamou a atenção apenas a pessoa da saveiro? Por que você não escolhe aquela senhora grávida, com três crianças pequenas enroscadas em suas pernas, uma das quais inclusive passou mal hoje devido  a ter ingerido os biscoitos vencidos que a polícia deu na hora da reintegração de posse? Ou porque você não escolhe aquele cadeirante, que levou spray de pimenta na cara e teve que ser socorrido e retirado com urgência da frente do trator que avançava? Ou porque você não escolhe pensar que esse despejo se deu em plena pandemia, jogando na rua cerca de 6 mil pessoas? Ou por que você não escolhe as centenas que não tem pra onde ir, que não são daqui, não tem parentes, não tem carro, casa, nada?  a assistente social deu de ombros.
 
A polícia doou biscoitos, com data de vencimento 06/11/2020, conforme os pacotes exibidos por vários moradores. As crianças comeram, algumas caíram em vômitos. Não é fácil entender a doação de biscoitos na hora de uma reintegração de posse. Menos ainda, de biscoitos vencidos. É como se a maldade e a indiferença, de mãos dadas, estivessem de conluio, prontas e dispostas à demolição.
 
Um homem disse: ” vou dormir aqui, amanhã de manhã vou pro meu serviço. Depois, não sei. “
 
Foi preciso calma pra ver a segurança e a tranquilidade  com que o homem da Caixa econômica falava do cumprimento da lei, do que cabia à Caixa, de os moradores terem invadido uma propriedade privada, de a Caixa não ter nada a ver com isso, de que a lei é pra ser cumprida, de que a Caixa cuidaria dos pertences dos moradores e lhes asseguraria o tempo de um Mês para a retirada e ponto final.
 
Foi preciso paciência para aturar os assistentes e as assistentes sociais, seguros e seguras de seus questionários, alheios e alheias para com o desespero que se espalhava no meio da tarde, na calçada, no sol, no calor, na noite que se aproximava, daquelas famílias, ali  a cinco metros de distância de suas mesinhas.
 
É preciso multiplicar a indignação, estourar os miolos da paciência com os serviçais e operadores da justiça, técnicos decoradores dos compêndios de leis, ignorantes da vida real e das relações escaldantes que tanto mutilam nosso povo, e que,  em plena pandemia,  são capazes de ordenar um despejo para agradar a um banco e que jogou ainda mais no flagelo milhares de miseráveis. 
 
Eu imaginei, o que fez todo sentido, que aquele homem da caixa,  aqueles assistentes e aquelas assistentes socias, esses operadores da justiça são produto dessa sociedade absolutamente doente,  formada à base da lei do valor, que gera indivíduos medonhos, sem compaixão, sem amor, sem poemas, sem lirismo, sem afeto, insensíveis à dor ao lado.
 
Eu imaginei a profundidade dos pedaços do poema, O operário em construção, de Vinícius de Morais, quando este diz:  de fato, como podia, um operário em construção, compreender por que que um tijolo valia mais do que um pão?  Ou ainda “ que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário”.
 
*Aldi Nestor de Souza
 
Departamento de Matemática-UFMT-Cuiabá
 
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Quarta, 02 Dezembro 2020 09:50

 

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Por Aldi Nestor de Souza*

 

 
“Não era para ninguém estar aqui. O cara acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada, nada, nada. Não era para ninguém estar aqui”

Era o início da tarde de ontem, 30/11, corria o minuto 21 da reunião do conselho de ensino pesquisa e extensão-CONSEPE, da UFMT, quando, com a voz nitidamente embargada, a professora e pro reitora de ensino de graduação, Liziane Pereira, comunicou que por volta da hora do almoço havia recebido a notícia de que seu sobrinho e afilhado tinha morrido de covid.  E que, por conta disso, faria a leitura do parecer que lhe cabia em um determinado processo (sobre o calendário do ano letivo de 2021), que seria o próximo da pauta, e logo em seguida se retiraria da reunião.

O que se seguiu a esse informe, de imediato, foi mais de uma hora de debate, exclusivamente, sobre o processo citado: conselheiros e conselheiras vorazes se inscrevendo para tirar suas dúvidas,  questionando o modelo flexibilizado de aulas, pontuando a incerteza do tipo de aulas para 2021,  exigindo que se faça uma avaliação do ensino flexibilizado para se poder pensar em calendário.

30 votos favoráveis, 10 abstenções, zero votos contrários e o parecer/calendário foi aprovado.

A professora agradeceu pelas mensagens de pesar que recebera, presumo,  pelo chat da reunião, se despediu e saiu.

Fez-se um minuto de silêncio e a reunião prosseguiu. Não houve, sequer, um grito de desespero, um pedido de socorro, um lamento em voz alta, um descontrole, um pedido para pararem com aquela reunião, um questionamento sobre o que aqueles conselheiros e conselheiras estavam fazendo ali. Uma frieza de cortar coração! Homens e mulheres assustadores(as), com suas falas desprovidas de dor, alheias à morte ao lado.

Eu vi esse vídeo bem mais tarde,  só à noite, depois de avisado do ocorrido, mas mesmo assim me assustei. Homens e mulheres que me dão medo, muito medo.

Esse fato ajuda a entender a dimensão da crise civilizatória pela qual estamos passando e mostra o quanto a universidade está imersa nessa crise. O fato me remeteu a dezenas de outros, iguaizinhos, que acontecem diariamente.

Lembrei, por exemplo, da morte do modelo, durante o desfile na São Paulo Fashion Week, de 2019, que após ter o corpo retirado da passarela e a morte confirmada, a organização do evento pediu um minuto de silêncio e  prosseguiu com o desfile como se nada tivesse acontecido.

Na ocasião, o rapper Rico Dalasam, que havia sido convidado para falar por uma das marcas de roupa do desfile, saiu aos gritos: “Não era para ninguém estar aqui. O cara acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada, nada, nada. Não era para ninguém estar aqui”.

O fato me lembrou também da morte do representante comercial Moisés Santos, que morreu enquanto trabalhava, numa loja do Carrefour,  em Recife, no último dia 14 de Agosto. Na ocasião, os responsáveis pela loja cobriram Moisés com guarda-sóis, improvisaram uma parede com tapumes e engradados de bebidas para proteger o corpo morto  e seguiram  com a loja aberta, cheia de clientes,  normalmente. O corpo ficou das 7:30 às 11:00 aguardando o IML.

O fato me remeteu, óbvio, aos arroubos do presidente da república que, negacionista confesso, zombador da pandemia, tripudiador dos mortos e dos parentes dos mortos, na ocasião em que já passávamos de 162 mil mortes, comemorou a suspensão dos estudos no instituto Butantan que buscava uma vacina contra a covid e disse que somos “ um país de maricas.”

A impressão é a de que  não há, e talvez não devesse haver mesmo(posto que todos estão submetidos a alienação incontrolável do modo de produção capitalista),  nenhuma diferença entre o CONSEPE e o presidente da república, entre o CONSEPE e a SPFW, entre o CONSEPE e o  Carrefour de Recife quando o assunto é a morte. Todos tratam-na com a mesma naturalidade e até banalidade, como um mero detalhe, um fato qualquer,  a ser lamentado apenas num chat, frio e distante, durante uma reunião que não pode parar.

Possivelmente soasse absurdo, inaceitável, um acinte, se algum conselheiro ou conselheira sugerisse parar/adiar  a reunião por conta da morte, por covid, do sobrinho de um dos/as conselheiros/as. Acho que ninguém teria sensibilidade para admitir um coisa como essa.

Mas acho também que esse é o ponto. A universidade não consegue parar pra pensar o drama que vive, a crise civilizatória que estamos atravessando, as saídas que ela pode oferecer, distintas de aulas,  e que a sociedade tanto precisa. Há estudantes pedindo emprestado a sombra de marquises e também  a internet de escritórios e lojas, para conseguirem assistir aulas(posto que não tem internet em casa). Mesmo assim, o calendário para 2021 foi aprovado, com a segunda onda da covid a passos largos  e com a certeza de que as aulas continuarão pela internet.

Para quem ousa discutir ou debater criticamente essa tragédia, há um argumento contrário bastante usado ultimamente na universidade, que é o seguinte: “a gente faz o quê, cruza os braços e espera a vacina chegar?”. Repare que essa frase é igual as ditas pelo presidente da república, sobre a mesma pandemia: “ vamos todos morrer um dia”,  “ e a gente faz o quê, para a economia?”, “  não sou coveiro, tá!”

Sinceramente, o que espero é que a professora Lisiane e sua família, bem como todas os outros colegas de trabalho,  que andam perdendo tantas pessoas queridas,   encontrem conforto nesse momento, que consigam superar tão dura perda e  que tenham a certeza de poder contar conosco, seus companheiros e companheiras de trabalho,  nessa hora tão difícil.

Por fim,  espero que a gente consiga parar. Que a gente pare o desfile, feche a loja  e vele o corpo do trabalhador que se foi.  Espero que a gente pare a reunião sem sentido, adie o máximo possível, dê uma trégua no pragmatismo estúpido e doentio, e celebre a vida e a emancipação humanas.
 

*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de Matemática da UFMT
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Quarta, 19 Agosto 2020 15:05

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
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Por Aldi Nestor de Souza* 

 

É uma travessia dolorosa e desafiadora demais a que estamos. É assustador e inevitável seguir em frente, sair na rua. Parece absurdo e imprescindível planejar, ensinar, aprender, dizer alguma coisa.
 
O caso que ocorreu com aquela menina de 10 anos, grávida do tio, abusada sexualmente desde os 6, é estarrecedor, inominável, na verdade. Não disponho sequer de meios para descrevê-lo. Só consigo sentir.  E como se não bastasse o dilaceramento todo na vida anterior da criança, na hora do aborto a que foi submetida, no tormento das 17 horas de cirurgia, consentido pela justiça, mais violência lhe foi imposta. Um festival, uma feira livre de acusações e ameaças aos médicos e a ela própria, foi montado e levado a cabo bem na frente do hospital.
 
Lá dentro, a menina tendo seu corpo ainda mais mutilado, suas entranhas ainda mais fustigadas, um feto sendo arrancado de sua frágil, indefesa e ainda, para ela, incompreensível estrutura física, suas dores ainda mais aprofundadas, sua vida completamente entregue ao limbo da existência.  Lá fora, o fundamentalismo religioso aos berros, empunhando uma bandeira de vida absolutamente conivente com o martírio pelo qual a menina teve que passar. Um fundamentalismo cúmplice do  e que não permite sequer discutir o modelo de família do qual a menina é oriunda e vítima. 
 
E tudo ganhou  ainda mais contornos e pavor quando o médico, diretor da unidade hospitalar onde se deu o procedimento cirúrgico, declarou que trabalha naquele hospital, que fica num bairro de Recife, desde 1996, e que neste período não houve uma semana sem que um caso semelhante ao da menina chegasse àquele hospital. Aí é só multiplicar aquele bairro pelos bairros de Recife, pelos bairros das capitais brasileiras, das grandes cidades, das periferias, das ruas, de todo o país para nos certificarmos, com a mais absoluta precisão, de que convivemos com um massacre intermitente.
 
Essa menina conseguiu chegar a um hospital. Mas tem aquelas milhares que não tem a menor chance de o fazerem e que são obrigadas a se submeter aos chás, às clínicas clandestinas, aos socos, pancadas e pontapés dos seus algozes mais próximos.
 
A impressão é a de que, no Brasil, a qualquer hora do dia ou da noite, em casa, no trabalho, na escola, na universidade, na rua, uma mulher, de qualquer idade, está sempre no corredor da morte, na fila do abatedouro, na mira de alguma arma, prestes a ser dilacerada. E apenas por ser mulher.
 
Que sociedade é essa? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie?
 
Bem, na frente do hospital em Recife teve resistência. Organizou-se um não. O fundamentalismo religioso foi enfrentado ali mesmo na calçada. Teve luta, quando ceder parecia fácil.
 
E aqui farei três breves digressões.
 
Primeira: 110 mil pessoas, oficialmente, sucumbiram diante da covid -19 até agora. Há estudos afirmando que completaremos 200 mil antes de outubro.  Enquanto isso, as portas do comércio seguem cada vez mais escancaradas, os horários cada vez mais esticados, as ruas cada vez mais cheias, e o chefe maior do governo, que zomba das mortes, que brinca com a doença e que tripudia da dor dos parentes em luto, sobe nas pesquisas de avaliação de seu governo.
 
Que sociedade é essa que outorga, ao seu chefe maior, o direito a tamanho escárnio com a vida? Que relações são essas que impõem tanto silêncio e calmaria diante desse genocídio? Os trabalhadores da saúde foram à frente da sede do governo empunhar suas cruzes e fazer suas denúncias. Os trabalhadores dos aplicativos, os dos correios, os do metrô de São Paulo, os dos transportes coletivos de Juiz de Fora já disseram não. E fazem resistência, fazem greve.  57% dos estudantes brasileiros avaliam o presidente da república como ruim ou péssimo.  Portanto, há luta, mesmo quando parece tão fácil ceder.
 
Segunda: enquanto essa garota enfrenta seu suplício, o governador de Minas Gerais autorizou um massacre contra 450 famílias, acampadas há vinte anos numa fazenda que faliu e cujo dono não pagou os direitos trabalhistas a mais de dois mil trabalhadores. A polícia e seus canhões foram mandados até o local e principiaram a demolição e a expulsão. Destruíram uma escola, puseram fogo no assentamento, empunharam as armas, rumaram a tropa de choque e os blindados. E tudo isso em plena pandemia, quando qualquer ordem de despejo deveria ser crime.  A resistência, claro, foi inevitável. Trabalhadores e trabalhadoras, crianças, velhos, velhas não tinham outra alternativa a não ser empunhar enxadas e bandeiras e enfrentar as metralhadoras, os fuzis, os cassetetes, todo o aparato bélico do governador. Lutaram, quando ceder parecia tão óbvio.
 
Para onde iriam ou vão essas 450 famílias? E dos mais de 20 anos de plantio, de colheita, de luta, de solidariedade, o que iria ou irá ser feito?  Que país é esse que permite essa violência, essa catástrofe com o seu povo? Que relações são essas que produzem e naturalizam a barbárie da exclusão e da desigualdade social? Que relações são essas que criminalizam quem luta por reforma agrária, por direitos humanos, por um lugar pra viver e trabalhar? A luta, quando é fácil ceder, dirá a resposta.

Terceira: as trabalhadoras da limpeza da UFMT ainda não receberam, e não sabem se vão receber, o salário do mês de Junho. E já estamos em Agosto. Sem contar que, de Junho pra agora, houve uma troca da empresa terceirizada e elas tiveram que conviver com o suplício de serem demitidas, com a incerteza de conseguir um novo emprego e com a certeza, como de fato aconteceu com algumas, de não serem contratadas pelo novo patrão. São pessoas que ganham um salário mínimo, que convivem com as mais profundas privações de direitos, que moram longe, que pagam aluguel, que são invisíveis, que ninguém sabe o nome, que limpam as privadas da universidade, que mal sabem ler e assinar o nome. Aquelas com mais de sessenta anos foram orientadas a ir pra casa em Março, por conta da pandemia e por serem do grupo de risco. Foram, mas logo em seguida foram demitidas com a alegação de serem velhas demais e que por isso a universidade as descartava.
 
Que universidade é essa? Que tipo de conhecimento e de profissionais podem emergir de um lugar como esse? A serviço de quem estão essa casa grande e sua senzala? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie bem do lado das pessoas que mais estudaram e que são as mais bem tituladas da sociedade?
 
Ano passado, mesmo sem ter estudo, mesmo sem ter nenhuma organização sindical que as proteja, essas mulheres reagiram, cruzaram os braços, descansaram as vassouras, fecharam a universidade e exigiram o pagamento de seus salários. Lutaram bravamente numa situação em que ceder não era apenas fácil, era a palavra de ordem. 
 
O Brasil é o resultado de um massacre, diz Darcy Ribeiro. E foi forjado à base de moinhos de gastar gente. Gente tratada como sacos de carvão. Gasta-se um saco, imediatamente põe-se outro no lugar, sem qualquer pudor ou cerimônia, para queimar e alimentar as relações que impõem essa barbárie e dizimam, particularmente, o povo mais vulnerável.
 
Florestan Fernandes diz que a burguesia brasileira é demente. No sentido que a mesma já nasceu subserviente e conivente, com interesses que habitam o outro lado do mar, e se mantém assim até hoje. Por outro lado, essa mesma burguesia é autoritária, violenta, sempre pronta e disposta a usar a força e submeter o povo brasileiro às mais cruéis agonias e atrocidades.
 
Como é que essa menina, depois de tudo isso, vai voltar a pensar em algum normal? O que é o corona vírus para quem foi estuprada desde a mais tenra infância?  Como é que ela vai voltar a falar com o pai? Com os tios? Com os irmãos? Com os amigos? O que é família pra essa menina? Como é que ela vai voltar à escola? Como é que ela vai sair na rua? Que dor é essa que essa menina sentiu?
 
Como é que aquelas 450 famílias, aquele assentamento, aquela escola, aquela plantação  vão se refazer agora? Que armas estão apontadas pra elas nesse momento?
 
Como é que as trabalhadoras da limpeza da UFMT vão pagar as contas de junho? E que planos elas tem pro futuro? Que cursos pretendem fazer? Cursos? Que carreira pretendem ter? Carreira? O que é o Brasil para elas? O que é a UFMT para elas?
 
Arrisco-me a dizer que a violência dos três casos é a mesma.  É a violência fruto das relações que enxergam e tratam as pessoas apenas como mercadorias, como objetos, desprovidas portanto de quaisquer humanidade, sentimento, poesia, sonhos, planos, alegria, dignidade, vontade, prazer, arte.
 
Superar essas relações, caminhar na direção de alguma emancipação humana, lutar quando é fácil ceder, é o que nos resta, como trabalhadores e trabalhadoras, a fazer. Não temos outra alternativa. E talvez, me arriscando num passo bem concreto, é urgente apelarmos pra nossa sensibilidade, pra nossa consciência e pra nossa convicção de que essas causas, essas dores, essas violências, como as acima citadas, são indiscutivelmente nossas, são feridas abertas em nós.
 
E quem somos nós? Somos, dentro da sociedade brasileira, aquela parte não demente, no dizer de Florestan, somos aquela parcela para a qual só resta a alternativa da luta organizada e que tem a obrigação histórica, como diz a canção, de:
 

Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
 
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
 
É minha lei,
é minha questão
Virar este mundo,
cravar este chão

Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
 
Amanhã se este chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu
Delirar e morrer de paixão
 
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
 
 
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT-Cuiabá
Diretor geral da ADUFMAT
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