Segunda, 20 Abril 2020 15:06

SENHORES DE ESCRAVOS ONTEM, ELITE HOJE, GENOCIDAS SEMPRE - Lélica Elis Lacerda

Escrito por 
Avalie este item
(0 votos)

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****

 
 
 
Por Lélica Elis Lacerda*
 

O governo brasileiro entende que atender às urgências do sistema financeiro é 7,5 vezes mais importante do que salvar a vida da população brasileira da COVID-19. Esta é proporção de investimento do pacote de salvamento de cerca de uma dezena de bancos, que receberam R$ 1,2 trilhão, em relação aos R$ 160 bilhões destinados ao amparo de mais de 200 milhões de brasileiros. Isso aos trancos e barrancos, depois de muita pressão social para que o governo entendesse que, sem auxílio, a população morreria de fome.
 
Essa prioridade existe porque os bancos nos cobram uma suposta e impagável dívida pública, no valor de R$ 5 trilhões. E já que a prioridade é cobrar dívidas, proponho, aqui, relembrarmos - e cobrarmos! - uma dívida histórica ainda mais antiga.
 
A elite bancária internacional de hoje teve como principal meio de acúmulo de capital o mercado triangular no qual a Inglaterra ganhava dinheiro a partir do tráfico negreiro - venda de pessoas sequestradas e escravizadas. A matéria prima barata e o trabalho escravo das colônias barateavam ainda mais as mercadorias. O dinheiro dos bancos de hoje é proveniente, portanto, das mãos negras e indígenas escravizadas, tornadas mercadorias rentáveis, que produziam ou extraiam outras mercadorias: ouro, prata, açúcar, café, etc. Todo o trabalho realizado pelo povo escravizado serviu para o enriquecimento dos antepassados da elite que hoje abocanha, anualmente, entre 40 a 50% do orçamento federal brasileiro – e a quem o pacote de salvamento econômico de R$ 1,2 trilhões se destina.
 
Nossa elite nacional, por sua vez, foi formada por senhores de escravos, donos de engenhos, de fazendas de café e de minas, nas quais vidas humanas eram consumidas por meio de trabalho penoso e muito açoite para “fomentar” a exploração máxima. O Brasil foi um dos países que mais comprou pessoas escravizadas no mundo e o último país ocidental a abolir a escravidão.
 
Essa elite, sob a violência do açoite e da pólvora, submeteu homens, mulheres e crianças indígenas e africanas a um intenso processo de expropriação formal da humanidade, reduzindo-os a instrumentos de trabalho falantes. Por mais de três séculos, o trabalho escravo barateou o preço das matérias primas da indústria central nascente por meio do consumo dos corpos humanos. A vida útil de um trabalhador escravizado era, em média, de 19 a 25 anos. O que viabilizou essa forma de economia pautada na descartabilidade dos corpos foi a inesgotabilidade de oferta de mão de obra que os brancos europeus encontraram a partir da desumanização de indígenas e africanos.
 
Atualmente, elites de dois países tiveram a desumanidade de ir às ruas para pressionar os governos a determinarem o retorno da população ao trabalho. No Brasil, um desfile de carros importados defendeu que os trabalhadores peguem ônibus lotados para socorrer a economia, pois ela não pode parar, mesmo que voltar ao trabalho custe a vida de boa parte da população periférica, majoritariamente negra. Nos EUA, um aglomerado de homens brancos portando a bandeira da suástica reivindicou quase o mesmo.
 
Não por acaso, Donald Trump minimizou a gravidade do coronavírus, o que faz com que os EUA sejam hoje o país com maior número de mortos do mundo. O presidente estadunidense até mudou a postura diante do caos provocado pela pandemia, mas isso não resultou em nenhuma autocrítica. Pelo contrário, exercendo sua masculinidade branca (e narcisista), projetou a culpa na Organização Mundial da Saúde (OMS) e, tragicamente, se negou a continuar repassando recursos à entidade. No Brasil, temos o único presidente que ainda ignora a pandemia e sai às ruas para cumprimentar as pessoas. Jair Bolsonaro foi eleito pelo The Washington Post o pior estadista do mundo no trato do coronavírus.
 
Evocando o passado escravagista dos dois países, podemos observar quem são as pessoas que ainda estão sem receber a renda mínima – no Brasil aprovada há mais de 15 dias. A resposta é óbvia: trabalhadores autônomos e informais, os mais precarizados, os mais pobres, as mulheres chefes de família, os negros e indígenas.
 
Destinar mais recursos a bancos em vez da garantir uma renda mínima digna para a população passar a quarentena em segurança equivale a um chicote de açoite moderno que pode matar num só golpe milhões de moradores das periferias, no Brasil e nos EUA. Priorizar o setor financeiro em vez do acesso à saúde pública é outro açoite, agora contra as mãos retintas que trabalham para a economia não parar, acabam infectadas e não encontram atendimento nos hospitais. Quando se prioriza bancos e não a compra de equipamentos de segurança para os trabalhadores, é porque o chicote da “responsabilidade fiscal” está agindo em detrimento da preservação das vidas das técnicas de enfermagem, enfermeiras, trabalhadoras da limpeza, entre outras, que estão expostas na linha de frente do enfrentamento ao coronavírus.
 
Persiste, portanto, a concepção de subordinar o sangue retinto aos lucros dos homens brancos e ricos. Isso porque as elites jamais deixaram de tratar os pobres, negros e indígenas como não humanos, meros instrumentos de trabalho, cuja única razão de existir é dar-lhes dinheiro. Quanto mais esta elite nos desumaniza, mais desumana se torna. Por isso são as duas únicas no mundo que defendem abertamente o genocídio ao confrontar a quarentena.
 
Essa postura genocida, racista e patriarcal é tão cega de ódio que não se permite enxergar o caráter coletivo da saúde que a COVID-19 nos convida a compreender. Enquanto houver foco da doença em algum ponto do planeta, ela continuará sendo uma ameaça para todos!
 
Não adianta a Casa Grande pensar que a doença vai afetar apenas a Senzala. Não cabe mais a ideia dos países centrais que nos tratam como colônias habitadas por corpos descartáveis. É tempo de impor, pela luta, o reconhecimento de fato de nossa humanidade, cobrando das elites internacionais o compartilhamento de riquezas e tecnologias produzidas por nós, trabalhadores, capazes de constituir vigoroso sistema de saúde e centros de pesquisa em universidades em todos os países do mundo!
 
É tempo de taxar fortunas, lucros milionários, o Agronegócio e os bancos para garantir a todos o direito de quarentena (e renda) pelo tempo que a pandemia apresentar ameaça. É tempo de investir expressivamente em saúde pública para a constituição de sistemas de saúde capazes de fazer testagem em massa e tratamento dos doentes. É tempo de investir em educação e ciência para o desenvolvimento de equipamentos de segurança, tratamentos e vacinas.
 
Superar o coronavírus no Brasil exigirá, também, a superação da nossa condição de colônia e das elites que se portam ainda como colonizadoras!
 

 

*Lélica Elis Lacerda, assistente social e diretora da Associação dos Docentes da UFMT (Adufmat-Ssind)
 

 

Ler 1919 vezes