Quinta, 06 Junho 2019 09:38

O ESTÁDIO É UM LUGAR PARA AS FAMÍLIAS? QUE FAMÍLIAS? - Paulo Wescley Pinheiro

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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P. Wescley M. Pinheiro 

Professor da UFMT

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É corriqueiro o discurso de que é preciso acabar com a violência nos estádios para que eles sejam ocupados pelas famílias. No entanto, quais famílias são essas? Que tipo de arranjo familiar tem condições de ir ao estádio? Nessa direção discursiva se escolhe um modelo específico de família, sendo ele idealizado, conservador e considerado como o normal, ou seja, o formato aceitável onde tudo que existe fora dele faz parte do problema. A forma como tem se constituído esse discurso e as ações promovidas se revelam como parte do processo de elitização do futebol

 

Assim, o discurso do direito das crianças no estádio sucumbe em falas de responsabilização individual, questões mercadológicas ou somente argumento para firmar políticas de segurança pública repressiva, caminhando longe de outras questões fundamentais. 

 

O exercício de desnaturalizar o estado de coisas em nosso cotidiano é desconfortável. Afinal, as coisas estão nos seus devidos lugares até momento que ousamos perceber que essa organização representa não-lugares de tantas outras coisas. O Estádio de futebol, espaço reproduzido como democrático, onde todos se vestem da mesma paixão e apagam divergências para unir as mesmas cores, sempre distanciou sujeitos historicamente oprimidos, estes, incluídos apenas sob condição de se fantasiarem de iguais, ainda que suas diferenças continuem como palco para desigualdade material e reprodução de preconceitos. 

 

O discurso familista vazio é apenas um argumento moralista para obscurecer o alavancamento do abismo social no esporte que, em vez de pensar a violência estrutural da sociedade e suas refrações no futebol, passa a ter a expressão imediata como problema central. Se não fosse assim, as medidas para se incluir as famílias no estádios estariam voltadas para a construção de uma cultura que absorvesse a diversidade dos arranjos familiares, que pensasse a estrutura das praças esportivas para a inclusão desses setores e que construísse possibilidades de ambientes menos hostis para mulheres e crianças. 

 

Afinal, não é somente a violência entre as torcidas que limita esse espaço. Ir ao estádio é uma saga: horário dos jogos, valores absurdos, amostra grátis da forma como a polícia age nas periferias e, por fim, toda uma estrutura física e de serviços que envolve a reprodução do patriarcado e do adultocentrismo. 

 

Por isso, nesse debate, a dificuldade de acessibilidade, a repressão policial, o preço dos ingressos, além de, obviamente, a reprodução machista de responsabilização das mulheres são elementos importantes a serem refletidos. Quantas mães deixam de ir ao estádio para ficar com as crianças em casa enquanto seus companheiros e/ou pais de seus/suas filhos/as estão nas arquibancadas exercendo seu direito de lazer? Muitos homens adoram idealizar a passagem para seus filhos (a flexão de gênero aqui não é mera conversão linguística) pelo seu clube, mas poucos estão dispostos a compartilhar o processo de cuidado efetivo no espaço público e privado.

 

A arquibancada quer mesmo acolher as crianças? Quem tem filhos/as sabe que sair com elas é um trampo: exige tempo, bagagem, dinheiro e paciência dos adultos, seja dos responsáveis seja de quem está em volta. Quantas arenas/estádios tem "banheiros família"? Quantos banheiros têm trocadores de fralda, inclusive nos masculinos? Quantos clubes pensam, além da lei da gratuidade, ações de acolhimento e serviços durante os jogos para crianças de todas as idades? Quantas torcidas pensam em não tornar aquele lugar um espaço de aprendizado para os meninos serem machões e para as meninas serem objetificadas? 

 

Se o discurso de incluir as crianças nos estádios quiser se estabelecer na realidade será necessário pensar a questão da paternidade responsável e crítica, num ambiente que ainda é hegemonicamente masculino, será fundamental pensar como incluir as mulheres mães (inclusive parando de romantizar agressões verbais de cunho machista e lgbtfóbico como provocações aceitáveis), além de exercer a tolerância com a diversidade, afinal, famílias existem de todas cores, credos, formas e amores e não somente aquela do comercial de margarina. 

 

Assim, há um longo caminho a ser percorrido para esse seja um ambiente de todas as pessoas, para que as crianças possam exercer seu direito e possam existir nesses lugares sem riscos diversos, com menos custo e com mais potencialidade lúdica, pedagógica, de entretenimento e cidadania, para cultivar uma paixão tão bonita que, por vezes, atravessa as gerações familiares. 

 

Até lá, nós torcedores/as precisaremos assumir a responsabilidade paterna, desnaturalizar a responsabilização exclusiva da mulher, além de desenvolver ações coletivas de redes de solidariedade com as famílias que vão ao estádio, possibilitando cuidado e proteção aos/às pequenos/as torcedores/as que aprenderão a curtir o futebol sem precisar excluir e violentar o outro.


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Atenciosamente,

Paulo Wescley Maia Pinheiro

Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso.

 

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