Quinta, 06 Junho 2019 09:24

O XIXI EM TEMPOS DE EMPREENDEDORISMO - Aldi Nestor de Souza

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza*
 
 

A reportagem madrugou na casa de Alberto e se encarregou de contar cada detalhe de sua rotina: a hora em que acorda, faz compras no mercado de orgânicos, faz as tarefas do lar, prepara o almoço e os molhos do empreendimento. Mostrou ainda o beijo de bom dia na patroa, a cara de sono das crianças, o cocô do cachorro.

Alberto, segundo a reportagem, deu a volta por cima. Um exemplo de quem sabe superar os tempos de crise. No dizer da televisão, “ele é uma inspiração.” A reportagem disse ainda que Alberto anda ganhando mais do que ganhava quando trabalhava na empresa. Sem contar que é o patrão de si mesmo.

Alberto foi gerente de uma empresa graúda. Tinha carteira de trabalho com assinatura, décimo terceiro garantido, férias, fundo de garantia, direito as horas extras e mais de mil pessoas sob seu comando. Ele tem curso de graduação em administração de empresas e mestrado em gestão de negócios. É casado com uma professora e tem dois filhos. Torce pelo Palmeiras. Gosta de jogar vídeo game, de assistir séries e de ler. Lavar a louça, varrer a casa e fazer a comida também fazem parte de suas tarefas do lar.

A matéria tinha como objetivo, exclusivamente, o sucesso do empreendimento.  Depois de demitido e de passar quase um ano em busca de um novo emprego, Alberto decidiu trabalhar por conta própria e montou um carrinho-barraca de sanduiches naturais e de sucos de frutas, que funciona numa ponta de calçada, no centro da cidade.

Ele inovou nos sabores, nos ingredientes, nos nomes dos lanches e tem sanduiches pra todo mundo: pra quem é vegetariano, pra quem é vegano, pra quem é corintiano. A venda se dá à tarde, a partir das 15 h. Fica até às 19: 00h ou enquanto durar o estoque.

A reportagem o seguiu até a calçada do trabalho. Alberto deu entrevista satisfeito, sorriu entre as falas, concordou com o entrevistador sobre os temas: perseverança, criatividade,  esperança, auto estima, molho de tomate, salvar o planeta, comer menos carne, cair de boca nos naturais,  comida saudável, saúde, o gosto do jiló. Alguns clientes também engrossaram o caldo das falas e teceram lá seus elogios de tela.

Vendo todo aquele alvoroço, me ocorreu o seguinte fato: durante o trabalho, caso haja necessidade, onde será que Alberto faz xixi? Sim porque, no carrinho-barraca, que a TV mostrou todos os pormenores, não há espaço pra banheiro. Além disso, ele faz a venda sozinho, o que significa que, mesmo que consiga descolar um banheiro nas proximidades, não tem com quem deixar os sanduiches. Imaginei que ele deve se valer de um saquinho  e mijar ali mesmo, nas proximidades dos quitutes, das ervilhas, dos molhos , das carnes, dos orgânicos.

Essa situação me remeteu a de seu Madruga, personagem do seriado, Chaves, também famoso na TV. No episódio “A venda de churros’’, seu Madruga, também em um momento de crise econômica, torna-se sócio de dona Florinda e passam a fazer e vender churros. É de seu Madruga a tarefa de fazer a venda, na rua, em uma barraquinha também de ponta de calçada. Um certo dia, na hora de um aperto insuportável, seu Madruga pede ajuda ao Chaves para que olhe à barraquinha enquanto ele vai ao banheiro. Quando volta, Chaves, que é paupérrimo e famoso por suas trapalhadas,  havia comido todos os churros.

Pois bem, considerando que Alberto sai de casa todos os dias por volta das 13:00h , em alguma hora da tarde o xixi deve lhe bater à porta.

É claro que eu poderia ter pensado outras coisas, por exemplo: e se ele ficar doente? Se sofrer um acidente? Se alguém da família adoecer? E os dias de chuva? Mas isso poderia soar como agouro e resolvi pensar em algo mais prático, e inevitável, tipo mijar.

Tudo bem o sujeito não ter carteira assinada, não ter décimo terceiro salário, não ter direito a férias, não ter fundo de garantia, não poder adoecer, não poder sofrer acidente, mas não ter aonde dar uma mijadinha aí já é demais.

 

*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática/UFMT-CUIABÁ
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Ler 2397 vezes Última modificação em Segunda, 10 Junho 2019 08:46