Sexta, 23 Novembro 2018 13:57

POCA É 10, JUBA É 10 - Aldi Nestor de Souza

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
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Por Aldi Nestor de Souza*

 

Expulsaram Tuca e seus dois irmãos da rodoviária. Os três vendiam Pipoca e Jujuba por lá. Cada um carregava seu próprio tabuleiro, lotado dos produtos, rente ao umbigo e preso ao pescoço por uma cinta de pano velho. Tinham entre 12 e 15. Pelo cansaço, pareciam estar ali há 30. Trajavam calções, camisetas e chinelos de dedo. Invadiam a noite. Bocejavam.

"poca é 10, juba é 10 ;  poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10. Moço, compre uma jujuba pra me ajudar!”

cantavam ao longo do dia, em todos os recantos da rodoviária. 10 centavos a unidade. O dia inteiro, todos os dias, de segunda a sábado. 100 jujubas vendidas, por exemplo, significava um faturamento de 10 reais, cinco de lucro. Mesma coisa com a pipoca. Às vezes almoçavam um milho cozido. Ás vezes uma tapioca. Às vezes, jujuba com pipoca. Às vezes esqueciam.

No domingo desapareciam. Descansavam.

Nenhum dos três conheceu o pai. E não sabem do paradeiro da mãe. Foram criados pela tia que não teve o que lhes oferecer, exceto os tabuleiros e um crédito na mercearia do bairro pras jujubas e pipocas. Era assim que funcionava: toda manhã eles prestavam conta do dia anterior, realimentavam os estoques e chispavam pra rodoviária.  

"poca é 10, juba é 10 ;  poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10. Moço, compre uma pipoca pra me ajudar.” Insistiam, com olhar em lugar nehum.

Quando o time deles ganhava, uma alegria lhes conferia dignidade e um certo brio, temperado com desdém, lhes dava a possibilidade e a disposição para zoar com os outros comerciantes e com os demais trabalhadores do recinto. Sonhavam ser jogadores de futebol. Sonhavam até ser soldados de polícia ou bombeiros. Mas quase todo sonho era interrompido pelo dever de cantar as pipocas e as jujubas e para atender aos imprescindíveis clientes.

Sonhavam se livrar dos tabuleiros.

Às vezes arriscavam olhar pra uma menina bonita, dessas arrumadas pra viajar. E teciam lá seus comentários e sorrisos, típicos da idade das espinhas. Mas não ousavam além disso. Era só mesmo a voz dos hormônios e a flor da meninice que não resistem aos encantos da beleza e que ignoram tabuleiros, calções puídos e chinelos de dedo. Era só mesmo um grito do amor que dá em todos, que transcende e estar acima de qualquer miséria humana. 

A primeira expulsão foi do local de embarque. E aconteceu sem que eles recebessem qualquer aviso prévio. Na época os meninos estavam acostumados a atravessar a catraca e ir ter dentro dos ônibus de motores ligados, prestes a darem a partida. E ficavam por lá até o último minuto, negociando com o motorista,  esgueirando-se entre poltronas, malas e passageiros: “ poca é 10, juba é 10;  poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10”. Insistiam. Numa segunda feira, sem perder muito tempo, o moço da catraca lhes avisou. Não pode mais!

Não havia a quem reclamar. A gerência era coisa distante de mais dos tabuleiros. Até tentaram, em vão, subornar um vigilante ou outro. E acabaram reduzidos ao resto da rodoviária. Pelo menos estavam livres dos olhares de chateação dos motoristas e dos passageiros e não precisavam mais equilibrar os tabuleiros em cima de suas cabeças.

Com uma reforma, que mexeu na estrutura do comércio inteiro, veio a sentença definitiva: nenhum ambulante é permitido e só alguns dos comércios antigos, os que conseguiram se adequar, sobreviveram . A rodoviária se encheu de tecnologia, de vigilantes jovens, soturnos e de coturnos, e de comércios de donos desconhecidos: subway, bob’s, robert’s, mcdonald´s e vários outros apóstrofos, mostrando o alcance, a frieza e as consequências da intermitente globalização. Agora é preciso pegar senha pra comprar pipoca e jujuba e aguardar a chamada numa tela fria.

Desapareceu o cantar dos meninos. Não se ouve mais, nem de longe, o "poca é 10, juba é 10; poca é 10, juba é 10, poca é 10, juba é 10". Ninguém sabe do paradeiro deles. Nada, como da vez das catracas, lhes disseram sobre mais essa novidade. Não lhes deram um novo local de trabalho. Não lhes deram qualquer explicação. Apenas lhes comunicaram, numa segunda feira qualquer: Não pode!

Talvez, como sonhavam, tenham finalmente conseguido se livrar dos tabuleiros.

 

*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática/ UFMT-Cuiabá
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