QUARESMA À BRASILEIRA - Roberto Boaventura
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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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“Acabou nosso carnaval// Ninguém ouve cantar canções// Ninguém passa mais// Brincando feliz// E nos corações// Saudades e cinzas// Foi o que restou...”
Consoante o calendário cristão, eis a quaresma; logo, revisitemos a “Marcha de Quarta-Feira de Cinzas”, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, lançada em 1966, momento em que o Brasil já estava amordaçado pelo golpe de 64. Sendo assim, há de se atentar para o toque político da “Marcha”. Para isso, vale transcrever sua 2ª estrofe, uma vez que a 1ª abriu este artigo:
“Pelas ruas o que se vê// É uma gente que nem se vê// Que nem se sorri// Se beija e se abraça// E sai caminhando// Dançando e cantando// Cantigas de amor...”
O tom de ensimesmada melancolia da 2ª estrofe soma-se ao lamento da 1ª, onde “carnaval” serve como metáfora do termo “democracia”, que, na condição de bem social, havia sido roubada; por isso, o império da tristeza, pelo menos por parte dos que conseguiam ter a consciência política disso.
Todavia, logo após a 2ª estrofe, vem o refrão:
“E no entanto é preciso cantar// Mais que nunca é preciso cantar// É preciso cantar e alegrar a cidade...”.
No início do refrão, duas conjunções. A primeira é a aditiva “E”, que é insignificante perante a segunda. Na essência, o “E” empresta eventual força que pudesse ter para a locução coordenativa adversativa “no entanto”. Esta adversidade divide a “Marcha” em dois momentos distintos.
A partir do refrão, a tristeza deve ser deixada para trás; o eu-lírico passa a evocar (ou convocar) a necessidade da força popular, que deve resistir ao tempo vivido para atingir, num futuro, um estágio de alegria e de paz generalizada.
A evocação/convocação se dá por meio de um belo processo gradativo, consolidado pela necessidade de se cantar:
“...é preciso cantar// Mais que nunca é preciso cantar// É preciso cantar e alegrar a cidade...”
Poucas construções gradativas são mais fortes do que a desse refrão, pois a gradação passa a ter valor de ordem social a ser perseguida; isso em contraposição a artimanhas de um tempo de tantas perseguições políticas.
Na mesma perspectiva, o clamor do eu-lírico encontra-se consolidado nas certezas (ou em apostas de cunho positivo) inseridas no restante da “Marcha”:
“A tristeza que a gente tem// Qualquer dia vai se acabar// Todos vão sorrir// Voltou a esperança// É o povo que dança// Contente da vida// Feliz a cantar...”
Inesperadamente, o refrão, há pouco transcrito, não se repete, o que, em geral, é comum acontecer em textos poéticos. Ele se consubstancia em outras palavras, mas todas igualmente estão marcando a perspectiva de superação de um determinado estágio vivido:
“Porque são tantas coisas azuis// E há tão grandes promessas de luz// Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...”
Na última estrofe, um pedido do eu-lírico:
“Quem me dera viver pra ver// E brincar outros carnavais// Com a beleza dos velhos carnavais// Que marchas tão lindas// E o povo cantando seu canto de paz...”
Se materializarmos o eu-lírico da “Marcha” pelos seus compositores, infelizmente, como sabemos, Vinícius não viveu para “ver e brincar outros carnavais”. Ele faleceu em 1980. A ditadura terminou cinco anos depois.
Carlos Lyra não só viu a redemocratização chegar em 85, como está vendo nossa democracia escorrer novamente pelas mãos, Bolsonaro encurta e aponta os limites de nossa democracia. Por isso, outra vez, “...é preciso cantar// Mais que nunca é preciso cantar// É preciso cantar e alegrar a cidade...”.
Cantemos, pois.
PS.: após fechar meu artigo, soube pela mídia que Bolsonaro compartilhou vídeo de manifestações contra o Congresso e STF. Estarrecedor.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Em antigos carnavais, podíamos fazer o que quiséssemos, até mesmo ficar “à toa na vida”, vendo “a banda passar”. Em tempos tais, sempre procurei algo dessa festa para escrever meus artigos. Este ano a marcha é outra, principalmente para as universidades federais e o universo cultural do país.
Fazendo parte da insana luta ideológica que o governo Bolsonaro empreende contra inimigos reais e imaginários, as federais têm sido constantemente atacadas. Há pouco, soubemos que “agente secreto do governo trabalha disfarçado de vigilante na UnB” (Carta Capital: 13/02/20).
Pois bem. O lead da revista citada – não fosse o registro de sua publicação – poderia ser identificado como uma das ações da ditadura de 64. Mas não! É notícia da hora. A informação veio a público por conta “de investigação no Tribunal de Contas da União sobre um processo seletivo realizado pelo Ministério da Economia em 2019”.
Embora chocante, essa informação não deveria surpreender, menos ainda a quem vivencia o cotidiano das federais. Ainda em 2019, com menos de um ano de governo, as intervenções de Bolsonaro nas eleições de reitores em algumas unidades da federação já deveriam ser suficientes para que soubéssemos do real significado de várias coisas que já estão sendo impostas nos meios acadêmicos, científicos e culturais. Tais espaços/setores são sempre os primeiros a provar o gosto daquela “bebida amarga” de que Chico e Gil referenciam em “Cálice”... ou “cale-se”.
Isso posto, penso que o governo nem precisaria gastar com espiões contratados. Nas universidades, por mais absurdo que possa parecer, há agentes que já fazem esse papel desde janeiro de 2019.
Dito isso, longe de sugerir qualquer ideia de saudosismo do nosso recente passado político, sistematicamente refutado por mim em meus artigos, mas o fato é que defender e/ou contribuir com o bolsonarismo é algo semelhante a tocar o lodo de um chão absolutamente sujo. Não dá.
Não dá para aceitar a homenagem que o presidente – à época, um inexpressivo deputado – fez ao torturador Ustra. Não concordar com o petismo, algo realmente lastimável, não poderia ser suficiente para admitir aquele discurso.
Não dá para não se indignar com Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente, fazendo apologia ao Ato Institucional n. 5, o mais tenebroso da ditadura.
Não dá para não sentir nojo do discurso nazista de Alvim, ex-presidente da Secretaria de Cultura, hoje, ocupada por Regina Duarte, que já fez seu primeiro deboche ao oferecer um “Oscar” àqueles que torciam para que o documentário Democracia em Vertigem recebesse a premiação de Hollywood.
Não dá para não se espantar com a afirmação de Sérgio Camargo, indicado para comandar a Fundação Palmares: “a escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes afro”.
Não dá para não cobrar apuração rigorosa sobre a morte de um ex-miliciano carioca que tinha ligação íntima com a família Bolsonaro e, até onde apontam as investigações, participação no assassinado (também) de Mariele Franco.
Não dá para não se indignar com o discurso sobre os “parasitas”, pronunciado por Paulo Guedes.
Não dá para engolir calado a ingerência do governo na autonomia e, consequentemente, na democracia interna das universidades federais, que poderão ser aniquiladas...
Enfim, a lista do “não dá para” é longa. Mesmo assim, há criaturas de dentro das universidades que se prestam a contribuir com esse conjunto de aberrações. Seria gambá cheirando gambá?
Triste, mas eles existem; e agem!
SOBRE PARASITAGENS - Roberto Boaventura
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Para escrever meu artigo desta semana, tive de optar entre duas aberrações: uma veio da Secretaria de Educação de Rondônia, que tentou censurar livros de nossa literatura; a outra, de um discurso de Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro. Optei por esta, mesmo sendo professor de Literatura.
Dentre os falantes da língua portuguesa, poucos termos podem ser mais ofensivos, quando dirigido a alguém, do que “parasita”, pois nos causa repugnância já a partir de sua denotação.
Biologicamente falando, “parasita” diz respeito ao “organismo que vive de e em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano”. Em contextos metafóricos, dir-se-á do “indivíduo que vive à custa alheia por pura exploração ou preguiça”.
Pois, creiam! Sem o menor respeito, Guedes, em palestra na Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV EPGE), disse que o funcionário público brasileiro é parasita que está matando o hospedeiro, no caso, o erário. Pior: foi aplaudido; claro, a plateia era narcísica.
Diante de tamanha agressão, fui ao Wikipédia verificar a biografia de Guedes. Do que vi, destaco sua atuação como docente, em tempo integral, na Universidade do Chile (Alguma parasitagem, ali?), quando ela esteve sob intervenção da ditadura militar de Pinochet, um dos maiores assassinos da América Latina; sobre isso, que o diga o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, localizado em Santiago. O Chile tem memória. O Brasil precisa consolidá-la.
Também destaco de sua biografia o seu doutorado em Chicago, onde aprendeu as lições falidas de Economia que os Chicago boys promoveram no Chile. Das lições aprendidas em terras do Tio Sam, Guedes quis nos impor o regime de capitalização na recente reforma da Previdência.
Detalhe: a capitalização que Guedes tentou nos impor ajudou a deteriorar a economia chilena, uma das melhores da América Latina. Também por isso, o Chile foi às ruas ano passado, e de forma violenta: fruto da miséria plantada na ditadura de Pinochet, que, repito, teve auxílio do brasileiro Guedes. Aqueles erros de três décadas passadas estão explodindo agora no território chileno.
Pois bem. Assim que Guedes classificou os servidores públicos brasileiros como parasitas, as reações foram imediatas e contundentes. Há entidades que já disseram que vão questionar o ministro juridicamente. O Ministério Público também deverá ser acionado, pois Guedes, além de promover agressões verbais, disse inverdades.
No mesmo sentido, a Associação Nacional dos Delegados da PF afirma repudiar "a estratégia sistemática de apontar os servidores públicos como culpados dos problemas nacionais, silenciando sobre as causas verdadeiras, bem como a de difundir notícias inverídicas a respeito... Guedes parece nutrir ódio crescente pelos agentes públicos".
Em matéria do Estadão, de 09/02, destaco a que segue: “Representante de diplomatas diz que fala de Guedes sobre servidores é insulto”.
Na verdade, Guedes superou os adjetivos que nós, servidores públicos, já recebemos ao longo do tempo: marajás, preguiçosos, incompetentes, elites, corporativistas, sangues-azuis. Isso sem contar os vagabundos, dirigidos especialmente aos aposentados.
Quanto desrespeito!
Mas a despeito disso tudo, continuaremos a servir nosso país, e não aos governantes de plantão; aliás, excetuando os beija-mãos, o ódio dos agentes bolsonaristas contra o servidor público é não nos ter em suas mãos.
PS.: depois das repercussões, Guedes pediu desculpas, mas isso é pouco diante do tamanho da ofensa.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Por conta de recessos e de férias, este artigo deverá ser o último que produzo este ano. Deverei retomar meu grande vício – escrever – na segunda quinzena de janeiro/2020.
Em geral, em meus últimos artigos de cada ano, gosto de fazer um balanço do período vivido. Hoje, farei diferente; ou quase...
Como a cultura e os artistas brasileiros foram agredidos como raramente antes, terminarei o ano com arte, mais especificamente com dois poemas do livro “Matrioskas” (BesouroBox; Porto Alegre: 2018) de Rubermária Sperandio, uma “mineira, criada em Mato Grosso, que hoje reside no Rio”. Na UFMT, Comunicação Social foi o seu curso de graduação; no mestrado, formou-se em Mídia, Política e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Linguagens, também da UFMT.
Da orelha de Matrioskas, consoante João Pedro Roriz, “...O livro revela a capacidade de síntese e de ação de uma feminista que, através de seus versos, devolve a humanidade à caverna ideológica que sempre habitou...”.
Ainda para Roriz, “A obra revela um talento inominável no campo social e poético. Rubermária nos conduz a um estado de desconforto imediato. Na sequência de histórias, é possível enxergar o estupro coletivo de uma menina na favela do Rio, o apartar de uma mãe das garras do marido agressivo; o planejamento do aborto consentido pela instituição familiar, a narrativa sobre a fé cega confiada à Igreja e à Lei”.
A esses comentários, acrescento: os poemas de Matrioskas são engajados; nem por isso podem ser identificados como panfletos. Ao contrário, pois são textos sustentados por vários recursos que envolvem a criação poética. Deles, destaco os ricos intertextos e interdiscursos, sem contar com a capacidade de Rubermária acionar um conjunto valoroso dos processos figurativos: aliás, exigência elementar para a boa literatura.
Como se sabe, “matrioskas” – ou bonecas russas – são brinquedos tradicionais na Rússia. Em geral, elas são feitas de madeira, colocadas umas dentro das outras; somente a menor (que é sempre a última) não é oca. Importante salientar a complexidade dos motivos pintados em tais bonecas. Também vale destacar a variada personificação das bonecas; elas podem ser figuras femininas vestidas de campesinas, personagens de contos de fadas ou até líderes da antiga URSS.
Mas vejamos o primeiro dos dois poemas que destaquei para este momento: “Matrioskas” (p. 42), que dá nome ao título do livro, se propõe metaforicamente a tratar da condição feminina alhures:
“Pra não romper nas nervuras,// facilitar o entalhe,// secar sem se entortar,// é preciso escolher a madeira certa.// Depois, faz-se um buraco nela.// ‘Vai doer!’// Ainda dói// o miolo estripado.// No seu oco// coloca-se a outra// feita à sua semelhança;// cópia da cópia.// Para animar mais o artesão,// cores alegres e divertidas.// Verniz contra o gelo// pra ela não desmaiar.// Assim são espalhadas pelo mundo,// em diferentes cores e fantasias.// mães e filhas, bonecas// fazendo a festa do artífice.// E lá dentro da matrioska, mulheres diminuídas.// Mas tudo tem um fim.// A última será a inteira.”
O segundo poema é “Cegueira” (p. 49); seu elemento central é a força da ignorância, algo que tem crescido assustadoramente no Planeta:
“A ignorância, quando nasce,// é um elefante neném// Pisa na própria tromba.// Chora a dor,// mas não sabe de onde vem.// Quando cresce, a ignorância// se torna invisível,// Um elefante trombando no outro//, acerta o pai, a mãe e o irmão com seu fusível// Chora a dor, mas não sabe de onde vem.// Os clãs em guerra.// Alvos para todos os lados.// Bala perdida na boca de neném.// Todos aterrorizados.// Submarinos invisíveis nos golfos.// Choram a dor,// mas não sabe de onde vem”.
Pois bem. Cumprimentando a excelente escritora Rubermária Sperandio, aproveito o poema acima para conclamar cada leitor a se somar na luta contra a ignorância, já tão abrangente, pois isso poderá comprometer o futuro das novas gerações, o futuro de nosso país.
Boas festas a todos e renovadas forças para 2020.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
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Para os mato-grossenses, 2019 é daqueles anos marcantes: Cuiabá, sua capital, completa 300 anos; sua universidade federal (a UFMT), 49.
Dito assim, tudo poderia ficar apenas no calor dos aplausos. Todavia, a UFMT tem buscado marcar este momento com homenagens valorizadoras da identidade do “povo cuiabano”. Assim, destaco um título já concedido e uma demanda ainda em curso na Instituição.
Em meados de novembro, o Conselho Superior da UFMT outorgou o título de Dra. “Honoris Causa” a Domingas Leonor da Silva. Hoje, dia 10/12, no Teatro Universitário, ocorre a cerimônia pública da homenagem.
No início dos anos 90, recém-chegado em Cuiabá, durante viagens a diversas cidades de MT para o compartilhamento de saberes acadêmicos e populares com trabalhadores da educação, conheci a Domingas, que simplesmente me ensinou a amar esta terra, esse povo, essa cultura.
Mas quem é Domingas?
Uma cuiabana de descendência indígena que, provavelmente num dia de sol, nascera em 1954, na Comunidade de São Gonçalo Beira Rio. Desde cedo, absorvera os saberes herdados de seus pais e avós.
Nas palavras do prof. Fernando Tadeu, relator do processo de outorga, “os saberes da Sra. Domingas Leonor sobre o modo de viver do ribeirinho, os segredos da arte em cerâmica, da culinária regional e a manifestação disso tudo em poesia garantem a preservação, transformando em arquivo vivo uma fonte de oralidade das mais preciosas”.
Em 1993, Domingas fundou o “Flor Ribeirinha”, o grupo de dança que já fez franceses, alemães, belgas, chineses e turcos assistirem ao siriri e ao cururu, duas das maiores expressões culturais de MT. Na Turquia, o grupo foi campeão mundial do Festival Internacional de Arte e Cultura.
Que honra ter podido participar também desse momento! A Dra. Domingas Leonor, agora mais do que nunca ao nosso lado, só nos enriquece, nos enche de orgulho.
Por outra sorte, o primeiro título de “Notório Saber” que já poderia ter sido concedido na UFMT, ainda se arrasta nos meandros da burocracia, que, aliás, pode estar escondendo ações (ou omissões) indevidas.
Explico: desde 2016, o professor Abel Santos Anjos Filho vem pleiteando o título de Dr. Notório Saber. Infeliz e imprudentemente, há quem lhe indique o percurso convencional para a obtenção do título de doutor.
Aqui, advirto para a possibilidade de preconceitos diante da solicitação desse colega. O convencional é para os convencionais, que são muitos. A notoriedade é para os notórios, que são poucos. Simples assim. As produções acadêmicas e artísticas do professor Abel se encaixam na notoriedade. Ademais, seu pleito é legal.
Abel pertence ao grupo dos primeiros colegas que tive no Instituto de Linguagens. De cara, passei admirá-lo como artista buscando valorizar a arte e a cultura populares de MT. Logo depois, a respeitar também sua trajetória acadêmica, pois foi ele o primeiro a levar os signos mais representativos de nossa cultura regional ao exterior.
E seu percurso artístico/acadêmico tem sido profícuo. Até o momento, são quatro livros publicados, além de diversas composições de obras musicais eruditas, sacras e populares. Do conjunto, destaco a “Sinfonia Pantaneira”, primeira obra, no mundo, para viola de cocho e orquestra.
Em 1995, Abel foi escolhido como um dos personagens do Programa “Gente que faz”, da Rede Globo/Bamerindus. Assim, produziu e compôs arranjos musicais de 26 CD’s sobre a cultura regional, com destaque às manifestações do cururu e siriri.
Na condição de palestrante, em 1996, foi recebido pelas universidades portuguesas do Porto, Aveiro e Évora. Em Paris, apresentou-se a um grupo de Etnomusicólogos da Sorbonne.
Lá mesmo, um ano depois, no “Musée de L’Homme”, mas na condição de concertista, realizou um concerto-palestra na abertura da temporada de Primavera de Paris. Ao final, em nome de todos nós, presentou o museu com um exemplar da viola de cocho; faltava esse instrumento naquele espaço. Não falta mais.
Na sequência, recebeu uma bolsa de investigação científica pela Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa, o que lhe possibilitou realizar pesquisas sobre a viola de cocho em território europeu. Isso se encontra documentado no Livro/CD “Uma Melodia Histórica”, de 2002.
Portanto, após o importante “honoris causa” a Domingas Leonor, a UFMT, infelizmente, fechará 2019 com o débito do “Notório Saber” ao professor Abel.
Espero que a dívida seja reparada em 2020, estando sua importante presença na centralidade das comemorações dos 50 anos da Instituição. Assim, gostaria de vê-lo aplaudido não somente porque poderá abrilhantar – como tem feito há décadas – mais uma cerimônia da UFMT, mas porque todos os presentes terão reconhecido seu notório e notável saber.
Em tempo: o ex-reitor Paulo Speller, na cerimônia do dia 10, recebeu o título de Emérito da UFMT.
A PAUTA DE SOCIOPATAS - Roberto Boaventura
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2019 já está em sua reta final. Se me perguntarem sobre um dos sentimentos que mais experimentei durante este ano, respondo sem medo de errar: vergonha alheia; aliás, há alguns dias, a vergonha alheia tem sido acionada a cada momento, bem mais do que o esperado.
Mas por que esse sentimento tem sido tão recorrente?
Porque temos um governo de sociopatas. Até onde se pode perceber, poucos dos que nos governam conseguiriam fugir dessa triste, vergonhosa e miserável condição humana.
Antes de tudo, vale dizer, ainda que de forma mais genérica e chão possível, que a “sociopatia” refere-se ao “transtorno de personalidade que é caracterizado por um egocentrismo exacerbado, que leva a uma desconsideração em relação aos sentimentos e opiniões dos outros”.
No caso dos agentes governistas brasileiros, mais do que isso: como esse egocentrismo parece não ter o menor registro de limites, a desconsideração em pauta vai além dos “sentimentos e opiniões dos outros”: ela ignora o real concreto; ou seja, aquilo que está absolutamente posto em termos de construção histórica, de lógica, de sustentação científica etc.
Nesse sentido, nos últimos dias, o país assistiu a capítulos impensáveis para o século XXI.
Do conjunto de enunciados abusivos, começo pontuando o que permeou o Dia da Consciência Negra, comemorado em 20/11.
Por “coincidência”, o novo presidente da Fundação Cultural Palmares, Sr. Sérgio Nascimento de Camargo, que assumira o cargo no dia 27/11, começou declarando que aquela comemoração, que busca reviver a luta da população negra, historicamente excluída de condições dignas de sobrevivência, bem como resguardar a cultura afro-brasileira, deveria ser abolida. Aquele senhor chegou ao sarcasmo de afirmar que a escravidão foi benéfica ao negro, pois lhe possibilitara a conquista das cotas nas universidades. Francamente.
Em uma de suas redes sociais, autoritário por excelência, dentre tantas aberrações que ali podem ser vistas, disse que “negro de esquerda é burro, é escravo”; que, em seu Face, “todo esquerdista será bloqueado; todo comentário de esquerdista será excluído. Não perca sem tempo aqui. Não sirvo capim!”.
Que ser ofensivo! Que inteligência duvidosa!
Durante minha carreira no meio acadêmico, mesmo pertencendo ao campo progressista, sempre convivi com incontáveis colegas inseridos nos quadros da direita brasileira; obviamente, via de regras, tive posturas políticas adversas a desses colegas. Contudo, o respeito mútuo sempre foi a tônica. Aliás, reconheci em diversos instantes a inteligência de muitos componentes dos quadros da direita.
Infelizmente, esse reconhecimento pelo senhor em pauta é simplesmente impossível. Nesse sentido, talvez o fato de ele não se prontificar servir capim a quem que seja se dê pela necessidade de se autoalimentar com as ervas de que dispõe. Em seu caso, qualquer distribuição de capim a outrem poderia lhe fazer falta para sua sobrevivência. Simples assim.
Além dessa figura, outras bizarrices surgiram. Destaco o novo presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes), maestro Dante Mantovani, discípulo do ultraconservador Olavo de Carvalho. Além de Mantovani desconsiderar todo acúmulo científico sobre a circunferência da Terra, postura bem comum a muitos do atual governo, ele ainda consegue ligar o rock a drogas, sexo, aborto e satanismo. Para essa sua última ligação, Mantovani afirma que o próprio John Lennon disse que fizera “um pacto com o diabo”.
Pergunto: temos ou não muitos motivos para vergonha alheia sem-fim?
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Quem nunca “deu uma de médico”, receitando “remediozinho” a alguém, ou nunca armou alguma loucura, geralmente bem pensada, que atire uma pedra. Por isso, poucas expressões da língua portuguesa abarcam mais o povo brasileiro do que a conhecida “De médico e louco, todo mundo tem um pouco”.
Mas o que pode acontecer quando extrapolamos os limites daquele “...um pouco” dessa expressão idiomática?
Muitas e impensáveis coisas; e é disso que trato aqui. Para tanto, lançarei mão da entrevista do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, ao Jornal da Cidade, concedida no dia 22/11/19.
Desde que assumiu o MEC, buscando combater “as ideologias” advindas do “marxismo cultural”, Weintraub tem dito inúmeras inverdades. Todavia, na entrevista em questão, ele passou dos limites; fez afirmações inimagináveis, tentando macular as universidades federais.
Após acusações tão graves, ações judiciais serão movidas pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais do Ensino Superior e pelo Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior. As duas entidades terão como sustentação de suas ações justamente a entrevista em pauta.
Mas o que Weintraub disse que provocou tanta indignação, se dizer tolices já é marca registrada de sua atuação no MEC?
Começou afirmando que a autonomia das universidades (garantida pelo Art. 207/ CF) transfigurou-se em soberania; por isso, pasmem, para ele, “em algumas federais”, podem ser encontradas “...plantações extensivas de maconha, a ponto de (se) ter borrifador de agrotóxico...”.
Diante de afirmação tão grave quanto leviana, o ministro passa a ser, legalmente, obrigado a apontar onde há essas plantações; ou o ministro indica os locais e apresenta provas ou incorre em crime, pois a um servidor público não é permitido omitir informações, quando as detém. E não vale “plantar” provas contra a vítima. Isso é bem comum no Brasil.
Mas Weintraub disse mais: “Você pega laboratórios de Química – uma Faculdade de Química não era um centro de doutrinação – desenvolvendo drogas sintéticas, metanfetamina, e a polícia não pode entrar nos ‘campi’. O desafio é esse. Foi criada uma estrutura muito bem pensada durante muito tempo”.
Que afirmação gravíssima! Que erro grotesco dizer que a polícia não pode entrar nos campi! A Polícia Federal pode. As outras, constitucionalmente, não.
Agora, o ministro também terá de dizer quais laboratórios estão “desenvolvendo drogas sintéticas”.
Diante dessas duas afirmações, Weintraub sugere – de forma genérica – saber de ilícitos, além de, subjetivamente, comparar as universidades a espaços sociais de alta criminalidade.
Quanto ódio! Quanto despreparo para um cargo! Quanta humilhação para um país!
Até quando?
O MEC nunca desceu tanto de nível. Nessa descida, o ministro ainda afirma que as federais “são madraças de doutrinação”.
Com essa expressão, a um só tempo, Weintraub ofende a comunidade acadêmica e a fé muçulmana, pois “madraças” são escolas muçulmanas ou casas de estudos islâmicos.
Todavia, mesmo sem nível algum, o ministro segue fazendo campanha para difamar um dos mais importantes patrimônios (materiais e imateriais) de nosso país, que é o conjunto de nossas federais.
Com essa postura, Weintraub encerrou a entrevista, dizendo que, nas federais, quanto mais se adentra mais se “conhece”; que, depois de “cada enxadada é uma minhoca”.
Perplexo, afirmo: a permanecer esse ministro no MEC, com tantas minhocas na cabeça, a educação brasileira ruma ao fundo do poço; e muito velozmente...
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Durante as comemorações da proclamação da República (15/11), duas matérias da mídia se destacaram, pelo para mim. Em uma, estava a voz desatinada do ministro da Educação; na outra, a voz desafinada da estrela mor do PT, agora livre. Sem pretender, ambos nos incitaram a pensar, embora eles próprios estejam dando férias a seus cérebros.
Para Weintraub, consoante seu Twitter, a “Proclamação da República” não passou de “infâmia” contra D. Pedro II. Embora dissesse não defender a volta da monarquia, o ministro sugeriu que não havia o que comemorar naquele feriado; assim, a melhor forma de comemorar o “primeiro golpe do Brasil” seria trabalhando. Mais: que o golpe republicano derrubou "um patriota, honesto, iluminado, considerado um dos melhores gestores e governantes da História".
Não sem lamentar, o saudosismo de Weintraub é um desapreço ao estado republicano; encontra-se sob o mesmo guarda-chuva da ameaça que Eduardo Bolsonaro fez quando falou da possível volta do AI-5.
Na condição de ministro – e da Educação! –, caber-lhe-ia reflexões que apontassem para a superação de problemas na/da República, jamais o desdém, pois, de desdém a desdém, golpes verdadeiros podem ganhar forma; e não ganhariam pelas mãos de engomados monarquistas, mas pelas mãos de outros tipos já acostumados a golpear democracias.
Mas falar o que nada acrescenta neste momento não é “privilégio” de agentes bolsonaristas, politicamente, criaturas anacrônicas de nascimento e formação. Na verborragia, Lula – sempre dono de suas verdades, mesmo as criadas sob o manto de engodos – é imbatível.
No rol de seus delírios, em evento do PT, ocorrido há poucos dias em Salvador, Lula afirmou: “o PT não tem que fazer autocrítica”.
Não?
Até aqui, pensava que Lula pudesse ter alguma sensibilidade; que o tempo no cárcere tivesse lhe proporcionado momentos de reflexão em prol da coletividade. Engano. Esqueci que ele não é um Graciliano Ramos, um nordestino e comunista que soube usar o tempo no cárcere para pensar. Esqueci que, para Lula, só o poder interessa; e para obtê-lo, se veste, como ninguém, do populismo mais vil possível.
Com essa arrogante postura, Lula não unificará os progressistas do país; ele só aglutinará os de sempre: CUT, MST e UNE, que, durante o corrupto tempo do governo PT, viram (e não se opuseram) suas lideranças cooptadas.
Ao PT, não fazer autocrítica é continuar apostando na sorte, como foi feito na derrota a esse grupo abjeto que desgoverna o País.
Mas por que Lula foge da autocrítica?
Por muitos e desconfortáveis motivos. De cara, ele seria identificado como o articulador da última derrota do PT. Naquele momento, a saída política não era Haddad; era Ciro, Marina ou outro qualquer. Todavia, para aprofundar a polarização existente, Lula usou Gleisi e Haddad como serviçais de seus desejos e apostas. Aquele fracasso está sendo e ainda será pago por todos, inclusive por eleitores de Bolsonaro.
Mais: em uma autocrítica séria, Lula teria de ver rebatido seu enunciado de que, “na dúvida, a gente defende o nosso companheiro...”.
Sem pudor, isso foi verbalizado por Lula, mesmo tendo visto seu partido atolado nos escândalos do Mensalão e do Petrolão. Assim fica difícil qualquer reaproximação, até porque crime é crime, independentemente de quem o cometa.
Resumo da ópera: com Lula, agora livre, a “esquerda” está mais presa aos interesses particulares de um velhaco de nossa política; logo, a desprezível direita nacional ainda poderá nadar muito de braçada.
Tempos difíceis!
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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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Na condição de amante da MPB, e como o momento pede, começo este artigo com os versos de “Sangue Latino”, de João Ricardo e Paulinho Mendonça, vocalizada em 1973 por Ney Matogrosso, do antigo Secos e Molhados:
“Jurei mentiras/ E sigo sozinho/ Assumo os pecados Uh! Uh!/ Os ventos do norte/ Não movem moinhos/ E o que me resta/ É só um gemido/ Minha vida, meus mortos/ Meus caminhos tortos/ Meu Sangue Latino/ Uh! Uh! Minh'alma cativa/ Rompi tratados/ Traí os ritos/ Quebrei a lança/ Lancei no espaço/ Um grito, um desabafo/ E o que me importa/ É não estar vencido/ Minha vida, meus mortos/ Meus caminhos tortos/ Meu Sangue Latino/ Minh'alma cativa”.
Em plena vigência da ditadura militar no Brasil, além de rupturas estéticas, a canção acima trata da subalterna condição latino-americana em relação ao poderio estadunidense naquele período; de forma subjacente, refere-se às adversidades dos povos deste continente, bem como da sua capacidade de resistência.
Dos versos da canção, enfatizo o que registra a traição aos ritos, que, originariamente, são modos de se pôr em ação os mitos na vida humana.
Por conta de espaço, não aprofundarei nesses conceitos. Por isso, saio do campo da mitologia propriamente dita e, deixando de fora mitos de outros países, vou direto à presença de dois mortais elevados à condição de “mitos brasileiros”, ambos envoltos a ritos de nossa miserável e complexa vida política: Jair Bolsonaro e Lula.
Verdade seja dita, Bolsonaro, sempre coadjuvante por onde transitou, só está onde está porque Lula o precedeu; porque Lula insistiu, com seu grupo político, num embate eleitoral anunciadamente perdido; e perdeu por conta de seus desmandos, que remontam do Mensalão à importante operação Lava-Jato, mas recheada de canalhices.
Após a saída de Lula da prisão, mas não ainda livre dos crimes aos quais já responde, a tensão à qual Eduardo Bolsonaro, absurdamente, ameaçara responder com a volta do AI-R, parece ter tido seu primeiro capítulo: Lula saiu da prisão fazendo discursos.
Conforme Ciro Gomes, Lula voltou como “encantador de serpentes”. Normal. Faz parte do jogo. Em seus pronunciamentos, disse não ter ódio no coração, mas só verbalizou o contrário; portanto, agora, temos dois “mitos” do ódio, em cena, a um só povo, absolutamente dividido.
Diante dessa divisão, que começa com esgarçamentos nos núcleos familiares e de amigos, e que, definitivamente, não eleva o país a patamares de uma verdadeira politização, só me resta juntar à voz de outro compositor da MPB, Jorge Benjor, quando, na canção “Eu vou torcer”, diz que vai torcer “...pela paz, pela alegria, pelo amor... Pelas coisas bonitas... pelo sorriso/ Pela primavera, pela namorada/ Pelo verão...Pelo outono, pela dignidade.../ Pelas coisas úteis/ Que você pode comprar/ Com dez reais/ Pelo bem-estar/ Pela compreensão/ Pela agricultura celeste/ Pelo meu irmão/ Pelo jardim da cidade/ Pela sugestão/ Pelo amigo que sofre do coração... pela dignidade/ Pela tolerância, pela natureza/ Pelos meninos, pelas meninas/ Por mim, por você/ Eu vou torcer! Eu vou torcer!".
Próximo dos anseios do eu-poético do Benjor, eu trocaria “torcer” por “lutar”. Ainda que “torcer” seja mais concreto do que simplesmente “rezar”, o que não seria impensável aos que são frutos de uma sociedade originária e, por isso, forçosamente cristã, o fato é que este momento pelo qual passando pede mais do que mera torcida por um estágio das relações humanas melhor e mais elevado; pede empenho; clama por luta.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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Em meus dois artigos mais recentes, tratei de autoritarismos expressos por gente do governo federal ou seus próximos. Em um, enfatizei as gracinhas sem graça que o ministro da Educação posta em vídeos nas redes sociais. Em outro, pontuei obras censuradas de ou sobre artistas, como um filme sobre Chico Buarque.
Mas o teste à paciência coletiva vindo dessas ofensivas ganhou, semana passada, novo capítulo; quiçá, o mais agressivo de todos: o deputado Eduardo Bolsonaro, o número 3 de seu clã, em entrevista à Leda Nagle, ameaçou nosso Estado Democrático de Direito, rasgando a Constituição, ao dizer que, se a esquerda radicalizasse em suas ações contra o governo, o Ato Institucional n. 5 (AI-5) poderia ser um tipo de resposta.
A quem tenha se esquecido, o AI-5, editado em 13/12/1968, foi o mais cruel dentre os dezessete atos ditatoriais. De chofre, por quase um ano, além do Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas dos estados, com exceção da de São Paulo foram fechadas. Por consequência, sempre sob o pretexto de “segurança nacional”, o mesmo ato permitiu intervenções generalizadas.
Direitos civis básicos, como o habeas corpus por crime de motivação política, foram suspensos. Também se tornaram ilegais reuniões não autorizadas pela polícia, além de diversos toques de recolher. Lembrando Gilberto Gil, foi um tempo em que se viam “hipócritas, disfarçados, rondando ao redor”. Essas ameaças fizeram, consoante Chico Buarque, sua gente falar de lado e olhar pro chão.
Aliás, no plano cultural, a censura foi ainda mais voraz; e só não foi pior por conta da limitação intelectual de muitos censores. De qualquer forma, não houve manifestação artística que não tivesse vivenciado tesouradas da ditadura. Em nomes de banalidades, como a subversão da moral ou dos bons costumes, a censura criou corpo, cortando corpos e podando mentes.
No que tange às universidades, os campi vivenciaram as maiores agressões. Por meio do AI-5, o presidente da República podia destituir qualquer funcionário público. Nesse bojo, muitos foram demitidos, exilados e torturados.
Feito essa retomada de alguns pontos do AI-5, volto ao pedido de desculpas (tão verdadeiro como lágrimas de crocodilo) feito por Eduardo Bolsonaro, assim que começou a sentir as reações de várias entidades e instituições do país. Até mesmo seu pai, o alimentador de todos os ódios passados aos demais do clã, foi rapidamente orientado a não lhe dar guarida, pelo menos de forma explícita. Ao bem da verdade, suas desculpas só vieram para tentar minimizar os efeitos políticos de pedidos de cassação de seu mandato, que é o mínimo que precisa ocorrer.
De qualquer forma, independentemente de outros desdobramentos, o que já tivemos de concreto, como resposta ao desrespeito constitucional por parte de Eduardo Bolsonoro, se não foi o suficiente, diante da gravidade do episódio, foi pelo menos contundente. Representações da sociedade mostraram que não há lugar para avanços a essa perspectiva de retrocesso institucional.
De agora em diante, é mister que fiquemos mais atentos aos abusos de agentes do autoritarismo/neofascismo; que a cada investida, ela seja denunciada e combatida por conta de seu anacronismo, que é típico de pessoas que demonstram falta de alinhamento, consonância ou correspondência com a época vivida. O anacrônico, que pode ser um jovem, é sempre um saudosista; e quando sua saudade é querer reviver práticas ditatoriais, os democratas devem ser radicais na denúncia e no combate a tais ideias e ideais.