Segunda, 25 Março 2019 16:34

10 HORAS DE LIVRAMENTO - Aldi Nestor de Souza

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza*
 
 

O que é possível fazer em 10 horas, professor?

Essa pergunta me foi feita por um estudante, que já havia computado 190, precisava completar 200 horas, de atividades complementares, e, com isso,  concluir seu curso de graduação. E virar bacharel.

Respondi.

Olha, você pode ir até à cidade de Livramento a pé. Livramento fica a uns 40 quilômetros de Cuiabá e, andando mais ou menos a 4 quilômetros por hora, dá as 10 horas que você precisa.

Só pra contextualizar, nos cursos de graduação das universidades brasileiras, é obrigatório que cada estudante cumpra 200 horas de atividades complementares, isto é, fora do percurso curricular do curso. Tais atividades, que visam acrescentar experiências a formação do aluno, que não são fornecidas pelo curso em si,  devem ser diluídas em ensino, pesquisa e extensão, que é o que se faz nas universidades.

Propus a caminhada porque às vezes é doloroso ver os estudantes na luta pra cumprir esse feito. Eles vão em busca de qualquer atividade, qualquer disciplina, qualquer palestra, qualquer seminário, qualquer coisa capaz de gerar um certificado e, assim, cumprir a tal exigência. São iniciados, portanto, ainda na graduação, na lógica mercadológica de correr atrás de meios pra engordar o currículo e selar a existência no mundo acadêmico.

E essa indústria do certificado atordoa todo mundo. Por exemplo, quando se anuncia qualquer evento, palestra, etc., na universidade, uma pergunta recorrente da comunidade acadêmica é a seguinte: “tem certificado? ”, numa demonstração explícita do valor dos eventos -  o preço em horas.

E isso acomete, claro, quem organiza. Já é comum, nos cartazes de divulgação dos eventos, em letras graúdas, às vezes em cores vibrantes, a seguinte informação : ”tem certificado”.

Mas voltando ao estudante, acrescentei o seguinte.

Escolha um sábado ou domingo de sol, leve lápis e papel, uma mochila com água e comida, um chapéu pra se proteger do sol, protetor pra não assustar muito a pele e meta o pé na estrada. Não leve celular, nem qualquer eletrônico, que é pra você poder se concentrar melhor no caminho.

Aproveite a ocasião para contrariar um pouco a lógica estritamente individualista da universidade, e não vá sozinho.  Convença uns colegas, veja se tem mais algum precisando de horas, a ir também.

Logo na saída, ali no trevo do lagarto, você vai se deparar com um monte de pedestres querendo partir, querendo chegar, em busca de carona, em busca de oportunidades, em busca de trabalho, em busca da sobrevivência. Tem dias em que o país inteiro passa por ali. Converse com eles, pergunte suas origens, suas histórias, ouça seus anseios, suas angústias. Anote tudo e siga.

Olhe o que foi feito da vegetação ao longo do caminho. Confira de perto a destruição. Sinta o cheiro do progresso. Converse com as árvores que insistem em permanecer na beira da estrada. Converse com os pássaros, se acaso encontrar.

Vá, se der,  até ao quilombo Mata-cavalo. Converse com os moradores do lugar. Olhe bem pros seus costumes, sua cultura, suas músicas, suas danças, sua resistência, sua luta.

Você pode voltar de ônibus se quiser,  já que as 10 horas já foram cumpridas na ida.

Ao chegar de volta, faça um relato bem escrito, com introdução caprichada. Coloque até um título, vai aqui uma sugestão: “ As 10 horas de livramento.” Coloque cada detalhe da viagem, cada aprendizagem, cada espanto, cada alegria, cada contentamento. Faça num formato de academia, por exemplo, de relato de experiência e entregue pro seu colegiado.

Aponte, no relatório, como é que seu curso se relaciona com os problemas que você encontrou na estrada. Por exemplo, como é que as disciplinas que você cursou  tratam do problema da migração, do desemprego, do desmatamento, do modelo de desenvolvimento adotado na região, da preservação do meio ambiente em geral, das populações tradicionais.  

Entregue o relatório sem medo. Não temas o riso da instituição, nem a chacota, nem o desprezo, nem a certeza da derrota. Experimente o prazer dessa pequeníssima subversão.   Faça com que o pobre do seu colegiado compute alguma coisa além de números. Lembre-se de que ninguém leva muito a sério essas atividades complementares e que elas são apenas contadas, como se contam singelas peças de uma linha de montagem.  

Entregue e aguarde o colegiado se pronunciar.
 

 
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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