Quarta, 26 Outubro 2022 09:06

 

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP.
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            Desde o princípio, explicar o povo das veras cruzes tropicais tem sido tarefa dificílima. O êxito de todos quem tentam dizer quem somos tem sido relativo. Das incursões intelectuais que conheço, destaco o trabalho já antigo “Brasil, terra de contrastes”, de Roger Bastides. Por si, o título desse trabalho explora a centralidade de como nos constituímos desde os primeiros contatos oficias dos portugueses com os indígenas.
            Vale marcar que o primeiro grande contraste forjou-se na desigualdade das tecnologias de ambos os povos, a partir de então, frente a frente para cruéis embates sem-fim. Enquanto os portugueses, financiados pela Coroa e “abençoados” pelo Deus do cristianismo, encarnado, sobretudo, em figuras de padres jesuítas, dispunham de embarcações para singrar “mares nunca dantes navegados”, além de pólvoras, que apavoravam qualquer inimigo, o indígena dispunha apenas de instrumentos rudimentares, como arcos, flechas e outros eventuais “artefatos” ofertados pela própria natureza.
            De lá para cá, os contrastes foram se acentuando até ganhar corpo de agressiva desigualdade, logo, de exclusão, quando não, de eliminação pura e simples do outro mais frágil. Nos dias atuais, aliado aos históricos contrastes e às desigualdades sociais, culturais, econômicas de nosso povo, surge um paradoxo grotesco, quase inexplicável, por conta de sua origem, como mais um item que dificulta a explicação de quem realmente somos como um povo.
            O paradoxo a que me refiro centra-se no comportamento explosivo e odioso de muitos brasileiros, de diferentes classes e níveis de formação educacional, que se intitulam cristãos. Acima de todos os brasileiros, neste momento, um deles transportou o mote de sua inexpressiva existência para o universo de sua campanha política, sob o seguinte lema: “Deus acima de tudo”. Parece, mas isso não é piada, caro leitor.
            Sob o guarda-chuva desse enunciado, que, em tese –mesmo lunática –, estaria no campo das boas ações promovidas e vivenciadas pelos humanos, uma legião de fanáticos – à lá digladiadores da Idade Média – tem agido de forma odiosa, como “nunca antes vista na história deste país”. Essa legião de criaturas, humanamente mal-acabadas, tem conseguido a proeza de me espantar mais do que normalmente eu poderia supor.
            Dito isso, passo a listar alguns dos episódios recentes que insiro no bojo dos absurdos ocorridos.
            Bem diferente do comportamento submisso a que os indígenas brasileiros foram expostos já na primeira missa aqui realizada, uma mulher – dessacralizando a missa – interrompeu o sacerdote após a citação do nome de Marielle Franco durante homilia em Jacareí-SP:
            "O senhor não vai falar de Marielle Franco dentro da casa de Deus... uma homossexual, envolvida com o tráfico de drogas... esquerdista do PSOL, que quer a ideologia de gênero dentro da escola das crianças", disse. (https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2022/10/18/mulher-interrompe-missa-e-discute-com-padre-apos-ele-citar-marielle-franco-durante-homilia-em-jacarei.ghtml).
            Depois dessa espuma bucal fedendo a ódio, em outra matéria jornalística também foram destacadas outras intolerâncias dentro das igrejas católicas, intensificadas após a ida de Jair Bolsonaro ao santuário de Nossa Senhora Aparecida no feriado do dia 12. (https://veja.abril.com.br/brasil/padres-sofrem-novos-ataques-de-apoiadores-de-bolsonaro/).
            A intolerância tem chegado ao cúmulo de apoiadores de Bolsonaro, no Twitter, se incomodarem “por conta da roupa vermelha na foto de perfil de Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, que teve de explicar que a cor, erroneamente associada ao PT, se trata de uma norma na Igreja Católica para cardeais, como ele”. Aliás, por medo e precaução, ultimamente, o vermelho tem sido evitado até por petistas roxos. Inadmissível.
            Na mesma matéria acima citada, é relatado que “Padre Zezinho, conhecido na música religiosa, também foi vítima de ataques bolsonaristas, na sexta-feira, 14. Ele anunciou que vai se ausentar das redes sociais até 31 de outubro. O motivo seriam ofensas contra ele, o Papa Francisco e bispos, além de calúnias, palavras de baixo calão e xingamentos. Ele conta que foi chamado de ‘comunista’ e ‘traidor de Cristo e da pátria’ por bolsonaristas”.
            Também se registrou nessa mesma matéria que “um outro padre foi hostilizado durante missa em Fazenda Rio Grande (PR), no dia 12. Durante a homilia, o padre citou que ‘o Deus da vida nunca vai pactuar com as forças da violência, nunca vai estar do lado daquele que prega o armamentismo, porque Deus é amor, solidariedade’. O pároco foi interrompido aos gritos por uma mulher que o questionou. ‘O Deus da vida é a favor do aborto, padre? Ele é a favor da ideologia de gênero? O senhor está pedindo voto para o Lula’, afirmou a mulher. O padre negou e as pessoas aplaudiram”.
            Mas nada mais paradoxal e inadmissível, superando, pois, a dessacralização de ritos sagrados, posto vir também de outro “agente de Deus”, do que o que se lê em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/10/21/mpf-investiga-deputado-bolsonarista-que-defendeu-estudantes-queimados-vivos.htm. Aqui, é relatado que o deputado bolsonarista Bibo Nunes defendeu que estudantes das universidades federais de Santa Maria e Pelotas, ambas no RS, fossem queimados vivos, como em uma das cenas do filme Tropa de Elite.
            A crueldade do desejo criminoso desse cristão bolsonarista, consoante a mesma matéria jornalística, será apurada pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no RS e pela Procuradoria da República do município onde ocorreu a tragédia da Boate Kiss (Santa Maria), que deixou 242 mortos (asfixiados e/ou queimados vivos) em 2013.
            Enfim, em nome de (um estranho) Deus, de um modelo questionável de família bíblica, de uma Pátria (que nos pariu e nos tem deixado ao léu), irracionalidades sem limites e sem pudor são exibidas a cada momento, com apoio de milhões de brasileiros igualmente despossuídos de humanidade, liderados e conduzidos pela estupidez e pelo ódio.
            Por isso, aproprio-me da indignação e indagação inseridas no início do poema “Vozes d’África”, de Castro Alves. Espantado com os horrores cometidos contra os negros, trazidos à força para o Brasil, o poeta questionava a inércia divina. O poeta não compreendia a ausência de ação por parte de Deus diante da descomunal barbárie à vista de todos.
            Agora, com a devida licença de Castro Alves a um descrente das coisas lá do céu, para o contexto histórico que estamos vivendo, encerro este artigo fazendo a mesma pergunta, mas movida pelas barbáries cometidas no campo de nossa política, que parece ter descido à camada mais profunda e imunda do inferno, se ele existisse: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?/ Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes/ Embuçado nos céus?...”

Quinta, 20 Outubro 2022 09:32

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP.
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         Em 1989, quando ainda não dispúnhamos das redes sociais, a mídia teve relevância, em especial a Rede Globo e a Revista Veja, no resultado final da primeira eleição pós-golpe militar de 64. Esses veículos foram grandes pilares para a imposição, por aqui, do projeto neoliberal em implantação alhures; para tanto, puseram-se a favor de Collor de Mello, o pai no neoliberalismo no Brasil, em detrimento de Lula, ambos finalistas daquele pleito. Detalhe: por incontáveis vezes, a mídia lançou mão do que hoje é identificado e condenado como “fake news”.
        Da parte da Globo, a manipulação do editorial do JN, contra Lula, do último debate com Collor, tornou-se uma “antológica” desonestidade jornalística, que, depois, seguida do impeachment de Collor, ajudou a Globo a fazer um explícito “mea-culpa”, ainda que somente em 2015, como se pode conferir no endereço que segue: https://www.facebook.com/watch/?v=268431057531087.
        Da parte da Veja, da qual não me lembro de desculpas pelos absurdos que cometeu para ver Collor eleito, em inúmeras matérias, construídas para desconstruir o projeto político – à época, popular – do PT/Lula, sentenças do tipo “Quem avisa amigo é” eram constantemente inseridas nos textos daquele semanário, que apostou no medo do eleitor contra o petista. Semanalmente, Veja sentenciava, conforme seus interesses, o desastre a que o país estaria submetido se o “esquerdista/comunista/ateu/demônio”, chamado Lula, fosse o vencedor.
        Claro que as sentenças, à lá “formas simples” de André Joles, não vinham isoladas no trabalho daquele condenável tipo de jornalismo. Em Veja, capas, charges, fotografias e outras artimanhas de matérias preconceituosas, além de muitas propagandas políticas – disfarçadas, em suas páginas, de publicidade – ajudavam na formatação final dos seus apelos em prol do triunfo da direita brasileira.
        Hoje, com um Lula já bem “endireitado” e disputando o segundo turno com o atual presidente da República, resgato, e já fazendo sua adaptação, uma outra sentença: “quem te leu, quem te lê”, caríssima Veja!
        Explico: no último dia 11, no site https://veja.abril.com.br/politica/por-que-lula-esta-ampliando-o-placar-contra-bolsonaro/, foi possível ler a seguinte manchete: “Por que Lula está ampliando o placar contra Bolsonaro”, conforme as pesquisas daquele momento.
            Em seu desenvolvimento, a matéria afirma que tudo tem como base o comportamento de um e de outro candidato. Para Veja, Lula tem acertado “ao dizer que vai respeitar o resultado das urnas e governar para todos. Já Bolsonaro tem feito ameaças contra a democracia, como a ampliação do número de ministros do STF”.
        Veja fez mais. Registrou que, assertivamente, Lula, “Durante seu discurso (pronunciado no dia 10/10), descreveu de forma muito certeira quem é Jair Bolsonaro. “Esse cidadão é anormal, o comportamento dele é anormal. Ele não teve nenhuma formação civilizatória. Ele pensa no Brasil para ele. As Forças Armadas são dele, a Suprema Corte é dele, o Congresso é dele, o país é dele”.
        E Veja ainda completou: “E dá até para dizer: Errado não tá”!
        Nesse mesmo sentido, a matéria, nitidamente pró-Lula, não poderia ter sido melhor elaborada em seu epílogo, ao dizer que, “A 19 dias do segundo turno, Lula abre espaço para conselhos, faz declarações democráticas e faz questão de reafirmar seu respeito às instituições e ao país como um todo. O ex-presidente sabe exatamente como sinalizar que está pronto para voltar a comandar o país”.
        Claro que Veja também sabe o que está fazendo. Conhece Lula de outros carnavais. Sabe que os dois períodos de seu governo foram bem mais do que as condenáveis corrupções (Mensalão, Petrolão etc). Sabe que “nunca antes na história deste país os banqueiros e empresários (portanto, os ricos) lucraram tanto”, conforme já disse o próprio ex-presidente, e, agora, candidato Lula, que, de sua parte, sempre soube, de forma eficiente (cooptando lideranças estudantis, de trabalhadores e de movimentos sociais), lançar mão de políticas compensatórias, ou seja, distribuir migalhas consentidas pelo capital para os pobres e – à lá Victor Hugo – para “les misérables”.
        Agindo assim, Lula sempre inibiu qualquer ameaça de inquietação social que pudesse surgir em seus dois mandatos; e mais: populista por excelência, consolidou-se como o maior mito político da nossa atualidade, até que um certo Messias, “atirando” para todos os lados, chegasse no pedaço para a disputa de um lugar no bizarro panteão dos mitos de nossa política.
        A despeito da força do mito político emergente, Veja (a Globo também) sabe que Lula é o candidato melhor talhado no processo de conciliar as classes sociais tão desiguais. O novo mito não tem (também) essa habilidade. A cada momento, diz algo de estarrecer e estremecer pessoas e mercados; só não estarrece, tampouco estremece, seus iguais, que, convenhamos, não são poucos dentre nosotros.
        Nesse cenário polarizado, para uma parte da mídia, novamente destacando a Globo e a Veja, a questão agora é salvar os seus dedos, pois os anéis, deles, podem escorregar de vez. Seja como for, a conclusão da Veja, há pouco transcrita, é o “aviso” dessa revista neste momento recheado de absurdos promovidos pelo pensamento e ações da extrema direita nacional, que deu sinais de vida, à lá um monstro que estava adormecido, desde sempre, em muitos irmãos patrícios. Dios mio!
        E por conta de uma montanha de aberrações da extrema direita, das quais destaco a constante ameaça de golpe, portanto, ao regime democrático, mesmo ciente de que Lula e Bolsonaro se igualam no compromisso de aprofundamento do neoliberalismo, não poderei anular o meu voto. Votarei no 13, não sem registrar que a aposta desse agrupamento político, em disputar o atual pleito, de forma direta, com Bolsonaro, é de altíssimo risco e exposição do país a uma incerteza institucional que, desde 2018, poderia ter sido evitada. Como não foi, o bolsonarismo já saiu vitorioso do primeiro turno, pois as urnas já reformataram, à direita mais retrógrada possível, a Câmara e o Senado Federal. Espero que esse avanço pare por aí, mas ventos e trovoadas estão no radar.
        Por isso, daqui para o dia 30, como estão mostrando as pesquisas, até os ateus terão de aprender alguma reza braba para livrar o país de mais um período de extremismos empreendidos pelo atual governante mor, absolutamente desumano. E só por isso, Lula, que, paradoxalmente, tem sido o maior cabo eleitoral de Bolsonaro – claro que a recíproca é simetricamente verdadeira –, poderá voltar a presidir o Brasil...Quem diria?
        Se isso ocorrer, já antecipo minha oposição ao 13, pois, nas pesquisas, pertenço àqueles que não comemorarão a vitória do vencedor, mas, sim a derrota do perdedor.
        Tempos difíceis! Paradoxais!

Terça, 27 Setembro 2022 09:18

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP.
Professor em aposentadoria/UFMT
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          Aproveitando este momento pré-eleitoral, falarei de mitos, mas no sentido já atualizado e ampliado do termo. Começo lembrando que, nós, brasileiros, somos culturalmente herdeiros de mitos absorvidos dos povos originários, dos africanos e dos portugueses, que já haviam incorporado muito da mitologia greco-romana, bem como de outros povos que já haviam se fixado na Península Ibérica, onde se encontra Portugal.
          Logo, fugir da força dos mitos é tarefa complexa; e do conjunto de mitos, destaco a herança do sebastianismo e do cristianismo. Mais do que outros, ambos parecem nos influenciar muito fortemente. Do primeiro, a influência pode estar aconchegada em algum lugar do nosso inconsciente coletivo, que, resumidamente, pode ser compreendido como um tipo de herança subjetiva herdada dos nossos ancestrais. Disso, advém a possibilidade de nossa tendência comportamental de acreditarmos piamente em salvadores da Pátria, à lá o velho Sassá Mutema.
          Em poucas palavras, o “sebastianismo” foi uma crença – próxima da profecia –surgida em Portugal, no final do séc. 16, por conta do desaparecimento do rei Dom Sebastião, durante a batalha de Alcácer-Quibir, na Mama África. Acreditava-se – aliás, como hoje se acredita em algo semelhante – que aquele rei voltaria para salvar Portugal das mazelas políticas, econômicas e sociais, desencadeadas (ou apenas escancaradas) pelo seu desaparecimento.
          Acerca da influência cristã, parece-me que a deplorável “fotografia” hodierna da vida brasileira dispensa comentários extensões; assim, sintetizo dizendo que vejo meu país cada vez mais atolado nos meandros das concepções mais retrógradas do medievo propriamente dito.
          Ao utilizar uma flexão do verbo “atolar”, o faço exatamente por observar, não sem constrangimentos, a adesão de tanta gente à propaganda de um dos dois mitos políticos brasileiros que capitaneiam as pesquisas para as eleições presidenciais de 02 de outubro.
          Cada vez que recebo alguma mensagem, geralmente pelas redes sociais, dessa disputa política do mais baixo nível que poderíamos ter atingido, fico pensando na força que os mitos exercem sobre tantos seres do tipo inocentes úteis. Já sobre os que optam por assim se fazer passar, vale lembrar que a performance da fingida inocência também gera utilidade a quem dela se serve.
          Seja como for, como, pelo menos num primeiro momento dessa campanha eleitoral, não consegui ser seduzido para entrar em nenhum dos lados dessa miserável disputa, pois enxergo que há saídas que poderiam superar a polarização que experimentamos, confesso que sinto uma certa vergonha alheia pelos apaixonados de um e de outro grupo. Às vezes, além da vergonha alheia, também surge uma pontinha de decepção com criaturas próximas da minha existência. Mas vida que segue.
          Com essas considerações, não quero dizer que ambos os mitos sejam completamente iguais em tudo, embora em muito se igualem. Entre o “Inominável” e o “Inacreditável”, aquele, autoritário de berço, sequer consegue respeitar nossa Constituição; e isso não é pouca coisa, reconheço; e, apenas por isso, portanto sem nenhuma ilusão depositada no velho e enrouquecido blá-blá-blá de décadas, em eventual segundo turno, não me restará outra alternativa. Tenho memória. Por não desconsiderar a história recente de nosso país é que não cederei aos apelos do voto útil antecipado.
          Mas, afinal, em que se igualam os mitos que movem tanta e pueril paixão?
          Os “sebastiões” de nossa política atual se igualam, mais do que em outros itens, exatamente naquilo que cada um tem buscado apontar como absurdo e inaceitável no comportamento político do outro, que é a corrupção. Nesse oco tiroteio verbal, há quem dê crédito a um e a outro!
          Esse crédito, sem lastro algum, seja a um ou a outro mito, tem tirado muitas pessoas do chão da razão, elevando-as aos eflúvios celestiais. Eis, pois, a força dos mitos agindo e aprisionando as pessoas, ou em uma bandeira nacional, ou em uma toalha ligeiramente avermelhada com a estampa de alguém; e tudo isso independentemente do grau de instrução e posição social de cada ser que compõe as duas legiões de fanáticos. Impressionante!
          De antemão, os mitos nos venceram. Logo, à lá o velho Machado, o de Assis, a ambos, as batatas!

Segunda, 05 Setembro 2022 09:28

 

 

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Cuiabá, 09/2022.



         Caros e Caras Docentes da ADUFMAT!
          Já aproveitando os primeiros dias de minha aposentadoria, um direito trabalhista que, aos poucos, vem sendo subtraído dos trabalhadores brasileiros, agradeço todas as manifestações de carinho que tenho recebido. Dentre elas, destaco a que minha amiga Alair Silveira, uma ave raríssima da espécie humana, publicou, neste Espaço Aberto, no dia 01/09, sob o título “Porque poucos são Augusto”. Absolutamente emocionante. A quem não sabe, o “Augusto” nasceu como pseudônimo de uma das greves que ajudamos a construir com outros docentes, que também acreditam que a luta se faz necessária sempre que direitos (da categoria ou da sociedade, em geral) são dificultados ou simplesmente negados.
         Neste momento de passagem da minha vida de trabalho oficial na UFMT, uma Instituição que sempre fará parte de minha existência, para as experiências que virão a partir de agora, vou compartilhar com todos vocês o texto (um “quase-ensaio”) que deixei aos meus colegas de Departamento de Letras, do Instituto de Linguagens, que tive a honra de dirigir desde março de 2016 até o último dia 26 de agosto.
         Infelizmente, não é o texto que eu gostaria de ter deixado neste momento, mas é o que este tempo, chamado presente, me pediu. Como, para o registro de minha escrita, sempre me articulei com o instante vivido, a matéria jornalística Português é obstáculo para brasileiros à procura de estágio” foi o mote para o surgimento do texto. Talvez muito pretensiosamente, espero que minhas inquietações sejam também a de todos que fazem (ou desfazem) as universidades brasileiras, pois motivos não faltam para as devidas reflexões. A matéria é chocante. A gravidade ali exposta deveria fazer todos nós, docentes neste país, pararmos para rever os rumos que tomamos.
         Saudações

Roberto Boaventura da Silva Sá
Docente aposentado da UFMT


 

Roberto Boaventura da Silva Sá
Professor do Departamento de Letras/UFMT
Diretor do Instituto de Linguagens

 


         Partindo da manchete “Português é obstáculo para brasileiros à procura de estágio”, o Jornal Nacional (JN), da Rede Globo, no dia 06/07/2022, exibiu uma impactante matéria, na qual é afirmado que, em um determinado processo de seleção,  “mais de 80% dos candidatos são reprovados por notas baixas nas provas do (nosso) idioma” (https://globoplay.globo.com/v/10734911/?s=0s).
         Pela observação diária, que tenho empreendido por quase quatro décadas no magistério superior, adianto que esse desastroso panorama não se circunscreve ao “processo de seleção” referido; ele já pode estar sendo fruto de interpretações equivocadas por parte de estudiosos de vários programas de pós-graduação e de responsáveis por cursos de formação de professores sobre o ensino de gramática, que nunca deixou de ser obrigatória. Mais adiante, comentarei essa inquietante constatação/afirmação.
         Antes, registro que, no corpo da reportagem em foco, além de um gerente de Recursos Humanos de uma multinacional dizer que, nos últimos anos, o problema da escrita e da compreensão textual se acentuou, foi exposto um quadro entabulado pelo Núcleo Brasileiro de Estágios (NEB), responsável por aplicações de provas para mais de quatorze mil empresas.
         Para o NEB, a ortografia, a gramática normativa de nossa língua e a interpretação de textos têm inviabilizado as possibilidades de preenchimento de vagas de estágios e, potencialmente, de futuros empregos formais, por parte considerável dos concorrentes. Assim, constata-se que, no ensino médio, o fracasso completo do aprendizado da língua portuguesa bate às portas, e aos murros! Nas últimas provas aplicadas pelo NEB, dos 59.700 candidatos, foram reprovados 49.331; ou seja, 89%!!!. Sem meias-palavras, é o português matando a nação brasileira. Ora, pois!
         Mas se esses números já eram esperados pelos mais atentos à situação, confesso que minha preocupação foi inflada ao saber que, dentre os candidatos do ensino superior, nos exames de língua portuguesa, aplicados pelo mesmo núcleo, os universitários que mais reprovam pertencem aos seguintes cursos: 1º) Direito: 85,8%; 2º) Letras: 85,5%; 3º) Administração: 83,4%. Vale lembrar que esses três cursos, juntamente com Pedagogia, experimentam um impressionante processo de massificação.
         Mas de toda essa tragédia, destaco o segundo lugar, que é ocupado por universitários de Letras. O peso de ser reprovado em língua portuguesa por alguém desse curso é (ou deveria ser) mais preocupante. Motivo: Letras é o curso superior que, por natureza, forma docentes da disciplina Língua Portuguesa, ainda que, no ensino médio, essa disciplina esteja diluída na grande área “Linguagem e suas Tecnologias”, que corresponde, no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), à área “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”.
         Do destaque, passo a reflexionar alguns dos porquês desse quadro tão perturbador. Antes, nada como rever a história do ensino da “matéria” em questão. Para tanto, o breve artigo “Algumas reflexões sobre o ensino da Língua Portuguesa no Brasil” (https://jornal.usp.br/artigos/algumas-reflexoes-sobre-o-ensino-da-lingua-portuguesa-no-brasil/) pode nos auxiliar, pois as considerações de seus autores (Beatriz Daruj Gil e Marcelo Módolo) abrangem, mesmo que de forma genérica, desde os primeiros contatos da Companhia de Jesus, na gênese do processo colonizador/exploratório dos portugueses em terras da Santa e da Vera Cruz, até as mais recentes tendências dos estudos linguísticos.
         De minha parte, juntando-me a outros docentes brasileiros (poucos, é verdade), afirmo que, depois que a Linguística, de forma geral, começou a ganhar mais espaço na organização curricular dos cursos de Letras, muitas vezes, em detrimento da legenda “Língua Portuguesa”, o nível do ensino do nosso idioma, na modalidade padrão, iniciou uma descontrolada descida rumo ao caos.
         Lamentavelmente, muitos estudiosos da Linguística – com ênfase aos do campo da Sociolinguística – têm confundido a reflexão/análise/leitura científica das manifestações da língua portuguesa – em suas diversas e ricas variantes – com a prática de seu ensino. A prova disso é que muitos dos professores de Língua Portuguesa – quando retornam de seus mestrados e doutorados nessas áreas – passam a afrouxar o ensino formal do nosso idioma. Sem maiores reflexões críticas, e iludidos pelos ares da própria concepção pós-moderna vigente, que a tudo relativiza, passam a jogar contra suas próprias origens de classe social, mas, paradoxalmente, supondo respeitá-las; passam a se tornar desnecessários; passam a prestar um desserviço ao país.
         Para agravar, os mesmos estudiosos, imersos na aludida confusão, consciente ou inconscientemente, estão na esteira das pretendidas “escolas para o povo”, capitaneadas pelo brasileiro Paulo Freire e pela argentina Maria Teresa Nidelcoff, desde o início da década dos anos 80, com o seu auge nos 90, quando Freire se tornou Secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo, sob o comando de Luíza Erundina.
         Na essência, longe de desrespeitar e de desconsiderar a melhor das intenções de Freire, de Nidelcoff e de todos os seus epígonos, o fato concreto, infelizmente, é que a diretriz que movia as “escolas para o povo”, pretendendo contextualizar o processo de aprendizagem, a partir da realidade dos educandos, acabou encontrando imensos limites no sentido de avançar no processo de instrumentalizar esses mesmos educandos para se apropriarem das “armas” fulcrais da transformação da própria realidade. Dentre essas armas, o ensino formal da língua pátria é (ou deveria ser) primazia.
         Seja como for, com o aval de importantes educadores de universidades renomadas do país, forjava-se o berço, mesmo sem pretender, do maior arcabouço populista da educação brasileira. Como questão de tempo, o fracasso retumbante do nosso sistema educacional viria em sua esteira, e a jato; tudo isso foi desnudo, acima de outros referenciais, pelo “não-ensino” da norma padrão da língua portuguesa. 
         Portanto, o resultado desses “encontros teóricos” e dessa vertente populista no meio educacional não poderia estar sendo pior para a prática do ensino, com ênfase ao ensino do idioma pátrio, realmente inclusivo, como, de boa-fé, todos pretendiam e pretendem. A continuar nesse rumo, muitos de nossa população estão fadados a não mais alargar seus horizontes para além de seus próprios quintais ou de seus barracos pendurados em morros aqui e acolá. Em outros termos, quem não for soterrado por avalanches provocadas por desastres da natureza, tão abundantes nos verões dos trópicos, pode estar sendo condenado a se atolar no mais profundo abismo intelectual, que decreta, em vida, a morte social de um contingente gigantesco de pessoas.
         Para ilustrar a importância de uma adequada alfabetização e de sua manutenção ao longo do percurso formal do ensino em nosso país, cito outra matéria midiática de relevância (https://globoplay.globo.com/v/10860366/?s=0s),agora, exibida no Jornal Hoje, também da Rede Globo, no dia 18/08/2022: “Projeto Favelivro desperta paixão pela leitura em comunidades do Rio(no caso, o Complexo do Caju); 21 bibliotecas comunitárias já foram abertas”.
         Das entrevistas, empreendidas pelo repórter Danilo Vieira (DV), destaco e transcrevo a que ele fez com Cristiano Nascimento (CN), um menino de 11 anos de idade:
         DV: você gosta de ler?
         CN: sim, senhor. Eu ganhei dois livros aqui (o menino mostra à câmera e lê os títulos dos livros Serenidade e A Dama e o Vagabundo). Ainda ontem, eu peguei um livro da biblioteca da minha escola, e a professora da biblioteca ficou até surpresa porque eu terminei o livro em 80 minutos.
         No segundo momento da edição da mesma entrevista, o garoto Cristiano, com impressionante visão social de sua classe, conclui que A pessoa tem o direito de ter a leitura. Tem muita criança que não tem onde ler, entende? Não tem livros. Lá (na biblioteca comunitária), você lê, você se diverte, você entra, como eu falei. É ótimo. Pra mim, foi uma ideia genial”.
         Cristiano Nascimento, sabiamente, nos lembra que a leitura, antes de tudo, é um direito de cidadãos de todas as classes sociais, principalmente da sua própria. Direito que só pode ser exercido ao longo da vida – com a necessária competência – se o ser humano for se apropriando da formalidade da língua oficial de seu país durante todo o percurso de sua formação escolar/acadêmica. Sem o domínio mínimo desse instrumento, as oportunidades de ascensão social/econômica serão cada vez menores para a maioria. A isso, soma-se a certeza de que cada brasileiro que não dispuser desse domínio não será capaz de ler/conhecer nada do que extrapole suas experiências pessoais, que, por mais ricas que possam ser, são ínfimas perto das experiências compartilhadas, desde há muito, por pensadores, escritores, artistas... dos mais diferentes lugares.
         Neste momento, talvez caiba lembrar a postura paradoxal vivida por todos aqueles que – mesmo relativizando/afrouxando o conhecimento da norma padrão da língua portuguesa nos cursos de graduação em Letras – impõem a necessidade desse domínio para o ingresso, por exemplo, em programas de pós-graduação.
          Lembranças à parte, o fato é que o labirinto do nosso “não-ensino” não para por aí. Dentro do mesmo leque populista freiriano/sociolinguístico, antes referido, alguns grupos sociais – na busca de empoderamentos diversos e justíssimos resgates de exclusões historicamente construídas – passaram a reivindicar, sobretudo, alterações no uso cotidiano de palavras do nosso idioma, visto como machista/sexista e de representação exclusiva das pessoas de pele branca e heterossexuais, transtornando e intimidando, ainda mais, a atuação profissional da maioria dos professores, sobretudo, de Língua Portuguesa de todos os níveis do ensino. Muitos desses grupos – deveras incisivos no cotidiano de suas práticas políticas – passaram a impor um tipo de “guerrilha civil linguística”, dada a violência simbólica de que lançam mão para obtenção de suas pretensões – geral e paradoxalmente – justíssimas.
         Pressupondo dimensionar o tamanho do problema, listo quatro exemplos dessa “guerrilha” vivida, muito particularmente, nas universidades:
         a) “femenagear”, no lugar de “homenagear”, quando se tratar de uma mulher a ser homenageada;
         b) "ovulário", ao invés de "seminário";
         c) “escurecer”, e não mais “esclarecer”, quando se pretender saber sobre a compreensão de todos em determinada situação;
         d) “todes”, substituindo “todos e todas”, para contemplar as pessoas não-binárias de nossa sociedade.
         A essa impressionante capacidade criativa, inerente ao campo semântico, junta-se a imposição da prevalência das diversas variações linguísticas existentes, que estão se sobrepondo ao ensino da norma padrão do nosso idioma. Em outras palavras, toda estrutura da norma padrão da língua portuguesa fica sob o jugo do império das gramáticas orais, portanto, populares, que buscam contemplar os mais diferentes grupos sociais. Por isso, já tem sido cada vez mais raro saber da existência (e resistência) de algum professor de Língua Portuguesa que ainda esteja conseguindo compartilhar o aprendizado da modalidade padrão da nossa língua com os seus estudantes.
         Verdade seja dita, esse tipo de professor tem sido menosprezado, quando não hostilizado, por quase todos, em seu ambiente de trabalho, e fora dele também. Como consequência, a desilusão e o desestímulo pela docência são cada vez maiores, causando diversos tipos de doenças a esses profissionais que ainda insistem/resistem em trilhar o caminho da lógica, cada vez mais desconsiderada, quando não, ridicularizada. Aqui, vale registrar – por meio da trágica “fotografia” deste momento, tão abundante de tensões – que a demanda social pelo respeito à diversidade tem sido praticada de forma concomitante ao crescimento da intolerância com aquele que pensa diferente.
         Após a exposição desse quadro, falando matematicamente à moda antiga, vamos tirar “a prova dos nove” disso tudo. Ao final dessa “prova”, mostrar-se-á que quase tudo está retumbantemente fora de rumo e de prumo no que diz respeito ao ensino da língua portuguesa no Brasil. Nas veredas de uma falsa, logo, enganosa, alteridade e das armadilhas do populismo educacional, reafirmo que caminhamos para o abismo, do qual, em pouquíssimo tempo, poderemos não mais encontrar saídas.
         A favor de nossa (cons)ciência, no panorama exposto pelos resultados obtidos pelo NEB, transcritos no início destas reflexões, estão escancarados os números (e querendo saber, os nomes também) dos brasileiros reprovados em provas simples do nosso idioma; brasileiros que, na essência, representam, como num processo metonímico, o fracasso educacional da maioria; brasileiros que almejavam apenas uma vaga de um estágio, mas que não a obtiveram, pois deles já foi retirado o direito de uma educação formal adequada e realmente de inclusão, da qual o ensino da norma padrão da língua portuguesa é – ou deveria ser – o carro-chefe.
         A situação desses brasileiros, aos quais – tudo em nome da condenada e execrada “educação bancária” – esse tipo de ensino tem sido sonegado/sabotado, pode ser comparada, se fosse em uma orquestra sinfônica, a de um violinista que nunca aprendeu a tocar violino, até porque sequer conheceu um violino. No plano social, cada um desses “violinistas” sem “violinos” pode provocar desafinações desconcertantes ao país. No lugar de uma “arma linguística” adequada, muitos poderão se juntar aos que já portam e usam, em seu cotidiano, armas mais conhecidas convencionalmente como tais; logo, a continuarmos nesse rumo, se Guimarães Rosa já dizia que “viver é perigoso”, eu diria que poderemos chegar ao ponto de reconhecer que, por aqui, viver será insuportável.
         Enquanto ainda podemos sair do labirinto, é hora, pois, de ouvirmos, com profundo respeito, os nossos valorosos intelectuais. Deles, infelizmente, cada vez mais raros dentre nós, destaco aqui o professor Evanildo Bechara. Do alto de seus 94 anos, esse gramático da Academia Brasileira de Letras, em recente e providencial entrevista à Folha de São Paulo, disse que todos “Devemos ser poliglotas na nossa língua”
(https://www1.folha.uol.com.br › ilustrissima › 2022/07). 
Sem desconsiderar a importância dos estudos científicos das variantes linguísticas, Bechara afirma que o estudo da norma padrão jamais pode ser relegado ao segundo plano. Corretíssimo.
         De minha parte, junto-me também ao pensador Antônio Gramsci, que, diametralmente contrário às preconizações de Paulo Freire, Maria Tereza Nidelcoff e epígonos, durante o hostil tempo do fascismo de Mussolini, na Itália, almejava o ensino formal da língua pátria a todos os filhos dos trabalhadores, independentemente de qualquer tipo de registro identitário.
         Ademais, a explícita “representatividade” dos diferentes grupos sociais, que hoje vemos explodir em peças publicitárias e em elencos das telenovelas nacionais, infelizmente, não têm a menor equivalência com a nossa duríssima realidade. A mera “representatividade”, por si, não avança, em proporções iguais para todos da mesma classe social; logo, toda essa luta não extrapola os limites da ilusão de suposta igualdade de oportunidades e afirmações sociais. Paradoxalmente, isso não significa dizer que não seja importante a ampliação dos espaços desses trabalhos e atividades, bem como do papel que é exercido no sentido de atuar positivamente no processo das subjetividades de autorreconhecimento e identidade.
         Trocando em miúdos, por si, os escolhidos para o processo de representação no universo midiático e em outros espaços não abarcam a totalidade dos pretensos representados. Pior: a real exclusão vai ficando escamoteada. Se houver dúvidas disso, nada como outra “prova dos nove”, que nos é adversa, pois nunca os números da violência e do empobrecimento geral foram tão abrangentes e cruéis exatamente contra os grupos que mais se destacam com os seus representantes, sobretudo, na mídia: negros, mulheres e os Lgbtqia+.
         No Brasil, nunca o sistema capitalista, para seu conforto e interesse, apostou tanto, e com os devidos financiamentos, na utilização de seres humanos “representativos” dos mais diferentes grupos sociais. Como recompensa ao capital investido nesse processo, as representações dos grupos não têm ajudado – aliás, muito pelo contrário – a unir os trabalhadores como classe, até para a exigência de políticas amplas, gerais e irrestritas. A bem arquitetada fragmentação da classe trabalhadora, diluída em inúmeros grupos e subgrupos, nunca foi tão visível e maléfica para todos os cidadãos que não detêm os meios de produção, logo, que necessitam de uma formação educacional adequada, com ênfase, repito, ao ensino da norma padrão de nosso idioma.
         Essa afirmação que faço vai ao encontro da seguinte realidade: enquanto as oportunidades de trabalho e de crescimento intelectual estiverem demandando domínio elementar da língua portuguesa, em sua modalidade padrão, como qualquer seleção/concurso ainda solicita, ninguém pode se manter linguisticamente neutro. Ninguém do meio educacional tem o direito de sonegar esse instrumento básico, que potencializa a ascensão social aos cidadãos.
         Por tudo isso, as lideranças dos grupos sociais precisariam compreender que mais do que (de)marcar território linguístico (que a pouquíssimo lugar sólido levará alguém, socialmente falando), o mais importante seria exigir políticas públicas educacionais abrangentes a todos que são marcados pela desigualdade, bem como por outros processos de ilusão, desde o primeiro grito de “Terra à vista”; precisariam exigir, de punho cerrado, um ensino de absoluta qualidade da norma padrão de nosso idioma a todos os brasileiros; e desde a mais tenra idade.

         Da parte dos diretamente envolvidos no ensino da norma padrão, é mister rever, com absoluta urgência, os caminhos do ludíbrio acadêmico a que muitos foram submetidos, pois esse ludíbrio tem sido o alicerce do desmonte do nosso ensino. Aqui, vale antecipar que essa revisão, absolutamente necessária, poderá ser dolorosa; logo, difícil, pois dissertações e teses poderão se tornar sem sentido. Contudo, se não houver essa revisão, em tempo recorde, o fracasso será tão estrondoso que nada mais poderá ser feito para a reversão da tragédia em curso; uma tragédia mais do que anunciada. A inutilidade e a irresponsabilidade do professor de Letras serão vergonhosa e nacionalmente expostas. Espero que esse dia não chegue.

Quinta, 01 Setembro 2022 11:53

 

 

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Profa. Dra. Alair Silveira
Profa. Depto. Sociologia e Ciência Política – SOCIP/ICHS/UFMT
Profa. Programa de Pós-Graduação em Política Social – SES/ICHS/UFMT
Pesquisadora Núcleo de Pesquisa MERQO/UFMT/CNPq

 

            Em uma perfeita síntese, Chico de Oliveira definiu a Universidade como o espaço do contraditório. Mais do que um ambiente dedicado à diversidade teórica e metodológica, a Universidade é, também,o espaço das contradições materiais e subjetivas que atravessam nossa existência.
            Nas Universidades Federais, como resultado dos concursos públicos, a maioria dos servidores (docentes e técnicos) passa boa parte da sua vida no mesmo local de trabalho. Consequentemente, mesmo com o ingresso de novos professores, aposentadorias, eventuais transferências ou tragédias que nos privam da convivência, nos ambientes federais há relativa estabilidade não somente quanto às relações trabalhistas, mas, também, convivial.
            Essa relação institucional que nos condiciona à convivência entre “pares e ímpares” nos permite tanto vivenciar relações pessoais de respeito, admiração, carinho e confiança quanto desenvolver nossa cultura democrática, cotidianamente posta à prova.
            Nesse cotidiano de prazeres e desprazeres, encontros e desencontros, gratas e infelizes experiências, conhecer e conviver com algumas pessoas raras é um privilégio em meio a tantas devastações relacionais nesses tempos fugazes e truculentos.
            Roberto Boaventura da Silva Sá é uma dessas pessoas raras. Tão transparente quanto o azul/verde dos olhos, a franqueza e a lealdade o definem. Eu o conheci no final da década de 1990, mas nos aproximamos no início dos anos 2000. E, desde lá, tenho acompanhado tanto asua crítica espirituosa e ácida quantoseu compromisso com a Educação, a Universidade e o Sindicato.
            Nessa trajetória, pela sua franqueza, arrumou desafetos, mas, com certeza, conquistou respeito e afeto de muitos. E, como todos aqueles que não se intimidam ao defender o que acreditam, foi duro no argumento e suave na convivência.
            Se assim sempre foi na Universidade e no ANDES-SN, assim tem sido na ADUFMAT. Sempre elaborados, seus textos e sua retórica tornaram-se referência para muitos colegas, discentes e amigos. Sua sagazespirituosidade rendeu-lhe excelentes registros que se consagraram como espécie de “lendas”na história da UFMT edo Sindicato.
            Amante da literatura e da boa música brasileira, Roberto Boaventura articulou história e música em excelentes shows no Teatro da UFMT, no Chorinho e na ADUFMAT, transformando-os em qualificados encontros musicados entre o Roberto Boaventura e o “Beto Boaventura”.
Múltiplo, competente e mordaz, seu engajamento político e criatividade artística farão muita falta em uma Universidade que, melancólica e apaticamente, parece estar em uma espécie de prostração burocrática, absorvida pela lógica produtivista e tirânica dos números que medem a quantidade, mas não, necessariamente, a qualidade.
            Desse “Robertinho” que, para mim, é “Augusto”, resta deixar público não apenas meu profundo carinho e respeito, mas, também, minha admiração profissional e sindical.
             Poucos podem retirar-se da labuta cotidiana tendo a certeza de que honraram sua trajetória profissional e sindical. Amparando-me em Brecht:Roberto “Augusto” é um daqueles homens imprescindíveis. Por isso, se lamento sua aposentadoria é por puro egoísmo!
             Na expectativa, Augusto, de que nossa “Kombi de lutadores” não se transforme em um patinete, mas, em multidões, desejo que essa nova fase que se inicia seja tão profícua quanto foi tua carreira acadêmica.

 

Segunda, 11 Julho 2022 11:37

 

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
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            Por mais paradoxal que possa parecer, com todo respeito a quem pense de forma contrária, vivo a plenitude de minha crença na importância social da vigência da visão antropocêntrica de nossa existência; por isso, sinto-me na obrigação cívica de resgatar uma passagem bíblica, registrada por dois evangelistas do “Novo Testamento”, para, depois, politicamente, com ela dialogar.
           Em uma circunstância de certo tumulto popular, em algum ponto de uma viagem que Cristo teria empreendido da Galileia à Judeia, algumas crianças tentavam dele se aproximar, ao que seus apóstolos se opunham, dificultando a aproximação dos pequeninos. Percebendo essa atitude arredia dos apóstolos contra os infantes, Cristo faz a seguinte repreensão, narrada, de forma muito parecida, em Matheus 19: 14 e em Marcos 10: 14:
           “Depois trouxeram crianças a Jesus, para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas. Mas os discípulos os repreendiam. Então, disse Jesus: "Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas".
           Pois bem. Diante da recente exposição de corrupção no Ministério da Educação (MEC), a primeira imagem que me veio à mente foi a desse excerto bíblico, acima transcrito, lido em idos tempos, mas, agora, por mim, invertido em sua essência. Trocando em miúdos, como quem não tem Cristo passa-se por reverendo, ou seja, seu representante legal cá na Terra, podemos ver a figura do ex-ministro da Educação, que posa de “bom pastor”, pedindo que deixassem vir até ele, não as crianças, que dependem dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), mas os dois pastores (Arilton Moura e Gilmar Santos, pelo menos no nome!), envolvidos no escândalo que abalou o setor da educação brasileira; tudo e todos, ao que tudo indica, envoltos em despudorados troca-trocas de “presentes”, que poderiam vir até em “barrinha” de um quilinho de ouro!; afinal, dele (o ouro, é claro) é o reino do... capital; logo, no caso em pauta, dos oportunistas da fé alheia.
           A título de contextualização, num resumo extraído do site O Globo (24/06/2022), “O escândalo de corrupção no Ministério da Educação— que levou à prisão o ex-ministro Milton Ribeiro(imediatamente solto no dia seguinte)— teve início com suspeitas relacionadas à atuação de pastores dentro da pasta. O ex-ministro e os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura são acusados de operar um balcão de negócios no MEC: os religiosos, mesmo sem ter cargo no governo, negociavam com prefeitos o repasse de verbas em troca de propina. Eles cobravam entre R$ 15 mil a R$ 40 mil e até mesmo a compra de Bíblias para facilitar a liberação dos recursos aos municípios, que conseguiam a verba semanas depois da negociação”.
           Dessa matéria, vale lembrar que um desses pastores só não se tornou um servidor do MEC, mesmo que temporariamente, porque teria considerado o cargo de Direção e Assessoramento Superior (DAS-3) muito baixa: algo em torno de cinco mil e quinhentos reais. Independentemente de sua recusa, interessante seria saber como o ex-ministro faria para lhe “dar” essa remuneração, pois as DAS são gratificações recebidas por servidores públicos federais efetivos, logo, concursados, e que atendam algumas exigências contidas na Constituição Federal, além de leis específicas. Mas como no Planalto Central para os enviados de Deus nada parece ser mais impossível, o Sr. Milton, ao que tudo indica, nem precisaria de recorrer a qualquer tipo de reza brava, até porque dela provavelmente corre tanto quanto o diabo corre da cruz. Talvez, no máximo, bastasse um telefonema ao poderoso chefão, ou ao “cristão-mor”(kkkkkk) dessa nação completamente abandonada à própria sorte.
           Diante desse cenário, não sem razão, encerro este artigo trazendo à tona a figura de Karl Marx (Séc. XIX), que sintetiza o pensamento de alguns filósofos do século XVIII, que viam a religião como algo próximo do ópio para o(s) povo(s).
           Pobres filósofos! Pobre Marx! Acertaram só a metade da assertiva. No Brasil, a religião, que até pode ser diferente da fé, não é apenas o ópio de nosso povo; nesta contemporaneidade, parodiando o nome de um programa de TV, muitas das religiões existentes incorporam, cada vez mais, a lógica das pequenas igrejas, grandes negócios.
           Em tempo: por conta de fatos mais recentes envolvendo o MEC, o título deste artigo também poderia ser algo como “Pai, afasta de mim essa CPI”. Pedido que já deu certo, pois, mesmo tendo sido criada, a CPI não terá funcionamento por ora; talvez, quem sabe, depois da eleição. Talvez...

Segunda, 13 Junho 2022 09:14

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
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          Demorou, mas após tanto tempo, eis que a quadrilha está de volta em nosso país.

          Não! Embora estejamos vivendo em ano eleitoral, não estou escrevendo sob influência de quaisquer resultados de pesquisas recentes de intenção de voto à presidência da República; logo, meu caro leitor, não estou a acionar a memória afetiva ou “desafetiva” de quem quer que seja.

          Nem de longe pensei em nenhum dos inúmeros esquemas nada republicanos de nossopassado e de nosso presente políticos. Não pensei no Propinoduto. Nãome lembrei doMensalão. Tampouco, doPetrolão. Imagine se eu pensaria em Lava-jato! Sequer cogitei falar das Rachadinhas, que, aliás, pairam sobre tais suspeitas de teremsustentado e alavancado um “novo” clã político. “Novo”, mas bem à antiga moda brasileira de ser e estar na esfera de nossa política; por conseguinte, imagine se eu pensaria na atuação incessante de milicianos e de seus fiéis seguidores.

          Definitivamente, não pensei nas milícias, cada vez mais atrevidas e perigosas, como se experimentassem um à vontade “nunca antes vivido na história deste país”. Não pensei nem nas milícias convencionais, visíveis a olhos nus, que, alhures, tomam o lugar do Estado ausente, subjugando e exterminando pessoas, nem nas que atuam de forma virtual, faturandomilhões nas tão frequentadas redes sociais. Cada qual a seu modo, totalmente fora da lei.

          Ah! Quando, há pouco, falei em “fiéis seguidores”, não supôs estabelecer nenhum tipo de relação com a crença religiosa de nenhum filho de Deus. Deus me livre! Nos dias de hoje, falar disso é como que invocar o inominável. Nem mesmo naqueles descaradamente falsos profetas pensei; e olhe que desse tipo há uma abundância que impressiona até quem já poderia ter passado da idade de se impressionar com qualquer tipo de aberração. A desfaçatez desse tipo de falso religioso é tão sem-medida que, literalmente, é de tirar o chapéu para alguns deles... ou de suas próprias cabeças, se é que me entende, meu caro leitor.

          Se duvidares, ligue a TV, principalmente a aberta, de qualquer região deste “país tropical, abençoado por Deus”. Você terá a sua frente um leque gigantesco de todo tipo de descaramento, vendido como expressão de religiosidade. Por isso, em todos esses tipos de canais, que não são poucos, alguém estará, aos brados, tentando te vender um pedacinho no céu. Oh, céus!

          Ainda assim, mantenha-se calmo, leitor. Mesmo acerca do que mais alto estiver bradando, como diz Gilberto Gil, creia, “ele não rasga dinheiro, não”. Pode até voltar a chutar alguma santa desatenta, mas, definitivamente, “não rasga dinheiro, não”.

          Isso posto, ouso dizer que toda essa lembrança das diversas e sofisticadas quadrilhas políticasnão veio de minhas recordações. Joguemos, pois, a responsabilidade disso nas potencialidades semânticas do termo “quadrilha”; por consequência, na dubiedade linguísticada palavra em pauta.Foi essa dubiedade quepode ter acionado algum tipo de lembrança nada nobre a alguém.

          De minha parte, após dois anos sem festejos juninos, a começar pelo título deste artigo, desde o início só pensei em falar da saudade que todos estávamos das quadrilhas de junho e, por conseguinte, das inúmeras músicas que embalam tais momentos. Dentre tantas, para encerrar este artigo de forma lírica, escolhi aquela singela canção em queo eu-poético de Luiz Gonzaga pede para seu amor olhar pro céu, “...Vê como ele está lindo/ Olha pra aquele balão multicor/ Como no céu vai sumindo.../ Foi numa noite igual a esta/ Que tu me deste o coração/ O céu estava assim em festa/
Porque era noite de São João
...”

          Vivas às nossas quadrilhas... juninas, é claro. Oh xente!

Quinta, 28 Abril 2022 09:27

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá

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          Não gosto muito do senso-comum, mas, agora, lanço mão daquele que diz que conhecer a história nos ajuda a compreender melhor nosso presente e os dias vindouros; e se essa compreensão não abarca o todo, e nunca abarcará mesmo, pelo menos pode qualificar uma parte desse todo. Tratarei aqui de facetas dessas partes.
          Ao dizer isso, e da forma como estou dizendo, como “discurso de autoridade”, invoco o poeta baiano Gregório de Matos (1636-1696), também conhecido – não sem motivos – pela antonomásia “O Boca do Inferno”.
          Gregório, depois de ver o Estado da Bahia (que, na ocasião, representava o Brasil inteiro) arruinado, político, social e economicamente, passa a mal dizer a sociedade colonial dos seiscentos; poucos escaparam de sua boquinha infernal.
          Assim, já no início do poema “Aos Vícios”, o eu-poético diz ser “...aquele que os passados anos”, cantou em sua“...lira maldizente/ Torpezas do Brasil, vícios e enganos”.
          Mais adiante, no mesmo texto, uma “fotografia” político-social do Brasil daquele tempo (repito, representado pela Bahia), nos é apresentada. No entanto, vejamos como é impressionante a semelhança do muito que estamos vivendo agora:
          “(...) Qual homem pode haver tão paciente,/Que, vendo o triste estado da Bahia/ Não chore, não suspire e não lamente?// Isto faz a discreta fantasia:/ Discorre em um e outro desconcerto/ Condena o roubo, increpa a hipocrisia.// O néscio, o ignorante, o inexperto// Que não elege o bom,/ nem mau reprova/ Por tudo passa deslumbrado e incerto (...)”.
          Complementando essas observações, como se fossem em closes poéticos, Gregório dirá – mas em outro poema, no qual “Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia” – que “...A cada canto um grande conselheiro,/Que nos quer governar a cabana, e vinha,/ Não sabem governar sua cozinha,/ E podem governar o mundo inteiro.// Em cada porta um frequentado olheiro,/ Que a vida do vizinho, e da vizinha/ Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,/ Para a levar à Praça, e ao Terreiro...”
          Isso posto, não sem lamentar, somos obrigados a constatar que a sociedade brasileira, neste primeiro quartel do século XXI, na essência, se mantém presa a diversos “vícios” semelhantes aos da sociedade do século XVII.
          Em outras palavras, muitos de nossos governantes, na essência, continuam apresentando os mesmos “defeitos de fábrica”, a mesma inabilidade para o exercício de governo de um país tão complexo; de outra parte, a maioria de nosso povo, vivenciando um processo de alienação que parece ser interminável, continua pesquisando, escutando, espreitando e esquadrinhando a vida alheia.
          A quem não compreendeu bem essa minha atualização das palavras de Gregório, faço lembrar do tempo que muitos, inclusive parte significativa de nossos universitários, perdem um tempo precioso “apreciando” programas televisivos tão desqualificados, como os reality shows. Na essência, antes que tais programas – em si e per si – possam revelar alguma coisa, geralmente circunscrita ao plano do comportamental das pessoas que se “confinam”, antes, podem revelar, na verdade, o quanto mexeriqueiros somos como povo.
          Ao afirmar isso, digo que em nada nos diferimos da maior parte de nossos compatriotas do período colonial. Se no passado, os “olheiros” pesquisavam, escutavam, espreitavam e esquadrinhavam – in locu –“a vida do vizinho e da vizinha para levá-la à Praça e ao Terreiro” (de candomblé e/ou umbanda), como registra o poeta baiano, hoje, como peixes inebriados, caímos nas amarras das redes sociais, espaços de muito maior visibilidade para o “compartilhamento” de tudo, inclusive, de nossas futilidades e, muitas vezes, de nossas maldades.

          Pergunto: até quando, socialmente, manteremos essa trajetória histórica de um povo que continua a cultivar práticas tão subterrâneas?

Quinta, 03 Fevereiro 2022 11:07

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
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            Depois de alguns meses sem escrever meus artigos, rompo o jejum para prestar minha homenagem à poeta Marilza Ribeiro, que nos deixou bem na abertura deste mês. Por conta de complicações advindas da covid, mais uma morte; menos uma vida.
           Durante quase 90 anos de iluminada existência, Marilza Ribeiro extrapolou a semântica de seu sobrenome. Muito mais do que um mero riacho, ela foi um caudaloso rio de poemas. E os escrevia porque sempre tinha o que dizer a alguém. E sempre tinha algo a dizer – e na forma mais elevada possível da escritura, que é a poesia – porque lia compulsivamente; por isso, compreendia e poetizava seu mundo, seu tempo, ainda que tão complexo; sentia suas dores e suas alegrias.
           Mas nesta homenagem, absolutamente limitada, ao invés de falar de seus poemas, dispersos em livros e folhas avulsas, geralmente num amarelo bem forte, que ela costumava fotocopiar e presentear seus amigos, falarei um pouco de sua pessoa e de minha aproximação consigo.
           Começo recordando que a primeira vez que ouvi o nome de Marilza Ribeiro foi no início de 1987, em Barra do Garças. Assim que cheguei ao campus da UFMT naquela região, um colega professor falava de forma absolutamente entusiasmada dessa poeta, até então desconhecida por mim, um ser em construção recém-chegado ao Mato Grosso.
           De lá para cá, pude conhecer seus livros, mas nunca havia tido a oportunidade de conhecê-la pessoalmente; no fundo, eu achava que sequer tinha esse direito. Em minha imaginação, Marilza era um pouco parecida com aquelas musas – sempre inatingíveis – de quem o trovador medieval não ousava se aproximar, até para não lhe causar enfastio. Eu tinha medo de ser impertinente. E assim permaneci por anos; na verdade, por décadas.
           Todavia, não há muito tempo, em um desses inesquecíveis dias, uma colega da Área de Literatura, do Instituto de Linguagens, e outro da Faculdade de Comunicação, aos quais devo muito, convidaram Marilza para um informal “bate-papo” com alunos e professores da UFMT. Claro que eu não podia mais perder tempo. Ainda que eu continuasse a não me sentir à altura de me aproximar e de me apresentar à poeta, pelo menos era a oportunidade que eu tinha de conhecê-la, de vê-la.
           Para minha surpresa, quando a vi, absolutamente desenvolta e com as roupas maravilhosamente coloridas que ela sempre usava, de chofre, me lembrei de que aquela linda senhora, de cabelos já bem grisalhos, era a mesma que eu via com frequência num shopping próximo à Universidade durante o horário de almoço e do meu sagrado café. E toda vez que eu a avistava, aliás, sempre carregando duas sacolas, uma em cada mão, eu a acompanhava com os olhos até que desaparecesse do meu campo de visão. E toda vez que ela passava por mim, educadamente, me cumprimentava apenas com um aceno de sua cabeça, pois estava sempre a cantar – aliás, afinadíssima – alguma pérola de nossa MPB:“...agora eu era o herói/ E o meu cavalo só falava inglês...”; “A deusa da minha rua/ Tem os olhos onde a lua/Costuma se embriagar...”; “Se essa rua, se essa rua fosse minha...”
           Seu repertório era imenso e primoroso. Consoante seu relato, muito das canções que aprendera a gostar era ouvido no piano, “tocado maravilhosamente” por Mirtes, uma irmã sua.
           Sua memória, impressionante. Sua voz era de uma força que não se abatia com a idade; ao contrário: embaraçava o tempo.
           Depois dessa sua participação na UFMT, me encorajei e disse a ela de minha admiração também por sua figura, que estava sempre cantando e assoviando... como se esparramasse flores perfumadas por onde passava. Soube bem depois, por ela mesma, que ela fazia mini-shows musicais na fila da agência do Correio, que fica nas imediações do mesmo shopping. “A vovó”, disse-me ela, “era aplaudida por todos” naquele local. E não era pra menos. Marilza era um show de ser humano, desses cada vez mais raros de nossa espécie.
           E assim nasceu uma das mais lindas amizades que já fiz até hoje. Dali até poucos dias, antes que ela se mudasse de Cuiabá para o litoral de SP, quando nos despedimos numa animada reunião, junto com outras figuras maravilhosas de nossas artes locais, excetuando o período dessa absurda pandemia, quase todos os dias eu tive o privilégio que poucos tiveram: tomar um café com Marilza; e o melhor daqueles já saudosos encontros é que eu não tinha a menor pressa de sair dali. Por vezes, até me atrasei para alguma reunião. Não me arrependo. Depois desses cafés, quase sempre eu a deixava para suas compras num supermercado, também próximo. Ela descia do carro e já encontrava o tom correto de alguma canção. Pronto. Lá ia minha poeta distribuir suas flores perfumadas, agora no supermercado. Isso me fazia sentir absolutamente orgulhoso e radiante: como poucos, eu tinha a chance de conviver com uma poeta! Sabe o que isso, caro leitor?
           Quantos poemas! Quantas histórias! Quantas músicas! Quantas alegrias! Quanta identificação! Agora, quanta saudade! Como consolo dessa saudade que aperta o coração, resta-me agradecer a vida pela oportunidade que me deu de conhecer Marilza Ribeiro, aquela senhora sempre cantante, que invariavelmente carregava duas sacolas, uma em cada mão.
           O que havia naquelas duas sacolas?
           Presentes. Em uma, presentes para filhos, netos, bisnetos... Em outra, muitos, mas muitos e caríssimos poemas: presentes para a humanidade toda.
           Marilza Ribeiro!
           Presente! Eternamente, presente!

Terça, 24 Agosto 2021 13:11

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT
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            Como é do conhecimento público, o atual governo federal – como outros já fizeram–pretende empreender mais mudanças na Administração Federal, por meio de sua Reforma Administrativa, que poderá, de vez, devastar o serviço público. A oposição a esse desmonte é absolutamente necessária.
           No bojo desse debate, muitas ações públicas estão surgindo como forma de conscientização da sociedade contra os malefícios da proposta governamental. Uma dessas ações ocorreu na Câmara Municipal de Sinop-MT, no último dia 13, sob impressionante tensão e desfecho ainda imprevisível por conta de considerações sobre o processo histórico da exploração portuguesa no Brasil, bem como sobre a ocupação no norte de Mato Grosso. As reflexões foram expostas pela vereadora do PT/Sinop, Graciele Marques dos Santos, e pela professora Lélica Elis Lacerda da UFMT/Cuiabá.
    Sobre o episódio em pauta, a matéria “Violência do agro volta a atormentar em Sinop”, publicada no site do Sindicato dos Docentes da UFMT (a ADUFMAT)(https://mail.yahoo.com/d/folders/1/messages/42880), em 17/08, nos ajuda a compreender a dimensão de tudo o que foi dito, bem como da imediata e agressiva reação de setores conservadores da sociedade de Sinop, que, aliás, recentemente, censurou“...outdoors críticos ao governo Bolsonaro ”e empreendeu uma“...perseguição deliberada à delegada que debateu a violência contra as mulheres, em abril desse ano...”
           Na essência, a professora Lélica afirmou “que a história da colonização de Sinop, assim como a brasileira, no geral, não é o jardim florido que gostam de reafirmar. A riqueza capitalista, que inclui o agronegócio, foi forjada na violência e na exploração dos povos originários e escravizados, majoritariamente por homens brancos, e é ainda hoje produtora de violência, morte e desigualdades no campo e na cidade...”
           Considerações fortes em cima de uma realidade indiscutivelmente cruel, mas sem ineditismo, pois, como resgata a matéria acima mencionada,“...José de Souza Martins, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Octávio Ianni são algumas das referências sobre o tema. Na própria UFMT, o professor Wanderlei Pignati... produz vasto conteúdo com dados, relatos e informações diversas que vão ao encontro das considerações da professora Lélica”.
           Além dos estudiosos já citados, para contribuir com o debate, dentre outros tantos que também poderiam ser aqui referidos, acrescento algumas reflexões do professor Alfredo Bosi, da USP, falecido há poucos meses de covid-19. De suas considerações, destaco o capítulo “Reflexo ampliado e contradição no processo colonizador”, inserido no livro Dialética da Colonização (Companhia das Letras).
           Já no início do capítulo, Bosi, falando da colonização/exploração do Brasil, há pouco mais de 500 anos, trata da “cobiça dos invasores” das “novas terras”, enfatizando o “ímpeto predatório e mercantil, a busca da acumulação de riqueza rápida e grávida de consequências para o sistema de trocas internacional”.
         Para consolidar seus estudos sobre o processo exploratório português em terras brasileiras, o autor recorre ao discurso de autoridade, o que é desejável no fazer acadêmico, trazendo à luz importantes reflexões de Karl Marx (sim, ele mesmo!!!), inseridas em O Capital:
           “(...) Onde predomina o capital comercial, implanta por toda parte um sistema de saque, e seu desenvolvimento, que é o mesmo nos povos comerciais da Antiguidade e nos tempos modernos, se acha diretamente relacionado com os despojos da violência, com a pirataria marítima, o roubo dos escravos e a submissão; assim sucedeu em Catargo e em Roma, e mais tarde entre os venezianos, os portugueses, os holandeses...”
           Logo após a essa citação, Bosi afirma que “...a expansão moderna do capital comercial, assanhada com a oportunidade de ganhar novos espaços, brutaliza e faz retroceder a formas cruentas o cotidiano vivido pelos dominados...”
           O catedrático autor diz ainda que o processo colonizador português, em especial, “conheceu a barbarização ecológica e populacional acompanhando as marchas colonizadoras entre nós, tanto na zona canavieira quanto no sertão bandeirante; daí as queimadas, a morte ou a preação dos nativos”.
            Na atualização de sua análise, numa “fotográfica” síntese, Bosi registra que, hoje, o processo exploratório continua, pois “...o gado expulsa o posseiro; a soja, o sitiante; a cana, o morador”.
          E para desgosto dos que odeiam a verdade histórica sendo explicitada, o estudioso da USP diz mais: que, no Brasil, “o projeto expansionista dos anos 70 e 80 (do séc. XX, foi e continua sendo uma reatualização em nada menos cruenta do que foram as incursões militares e econômicas dos tempos coloniais”.
          Para quem não se localizou no tempo, vale lembrar que o referido “projeto expansionista dos anos 70 e 80” é exatamente parte umbilical do “Milagre Econômico”, empreendido pelo último regime militar no Brasil (anos 70/80, mas iniciado em 1964), que tinha outro lema nacionalista embutido no processo: “integrar para não entregar”; e assim se fez o Nortão de Mato Grosso!
           De minha parte, relato que, no início dos anos 90, em uma das cidades daquela região, localizada acima de Sinop, rumando ao Estado do Pará, perguntei aos alunos (todos já professores, embora a maioria fosse leiga) de um curso que ministrei à época, por que eu não via nenhum indígena circulando naquele espaço urbano, se em Barra do Garças, onde eu havia morado há pouco, isso era rotineiro.
           A resposta foi um silêncio sepulcral.
          Pagando o preço por ser, naquele momento, um professor muito jovem, sem compreender aquele silêncio, depois de muita insistência minha, um dos participantes do curso ousou responder, mas já adiantando sobre os riscos que passaria a correr a partir de sua resposta, que, na verdade, veio em forma de pergunta:
           – Professor, perguntou-me, o senhor conhece um produto altamente tóxico utilizado para acabar com fungos nos antigos laranjais do Estado de São Paulo?
           Por conta de meu desconhecimento completo sobre a difícil lida do campo, respondi que não.
         Ele continuou sua explicação, iniciando pela citação do nome do produto. Infelizmente, não me recordo mais daquele nome, mas a sua pergunta foi uma dolorosa resposta à minha inquietação. Aquele agrotóxico, consoante sua informação, lançado por aviões, foi utilizado em larga escala para ajudar no processo de abertura de clarões daquela mata de um verdejante escuro. Nem o temido Curupira saía vivo daquela “chuva” indesejada.
           Incômodo?
           Sim; e esse é apenas um dentre tantos existentes em nossa história.
        Portanto, a professora Lélica Elis Lacerda, a quem externo solidariedade acadêmica em seu discurso, não cometeu nenhum tipo de crime; ao contrário, apenas tratou, academicamente, de um processo com base na realidade, na verdade dos fatos. Pena que realidade e verdade, em tempos pós-modernos, sustentados por grande parte da própria academia, passaram a ser questionadas e vistas apenas como narrativas, geralmente, criadas ao gosto do criador.