Quinta, 28 Maio 2020 14:16

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Maelison Neves*
 
 

Estamos vivendo uma situação de trauma psicossocial e luto coletivos diante das dezenas de milhares de mortes provocadas pela COVID-19. Até agora, o isolamento social tem sido a única medida eficaz para conter essa tragédia que nos assola, o que levou à suspensão das aulas presenciais na UFMT. Nesse período, há um consenso entre a comunidade universitária sobre a importância de nossa instituição manter-se ativa durante o período de isolamento social, havendo divergências quanto à direção desses esforços.
 
A gestão da UFMT apresentou uma proposta de flexibilização curricular em que se institui um calendário paralelo de oferta remota das disciplinas presenciais e outros componentes curriculares dos cursos de graduação, conforme deliberação dos colegiados de curso, com adesão facultativa de docentes e estudantes. Os defensores da proposta fizeram questão de demarcar que não se trata de EAD, mas de flexibilizar as regras acadêmicas para que conteúdos de disciplinas presenciais sejam oferecidos a distância. Ao compreender que haja mesmo uma diferença entre EAD e a oferta remota, via Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), de conteúdos planejados para os cursos presenciais, concluímos que por não ter a mesma estrutura, fluxos e suportes que sustentam a EAD, a flexibilização mostra-se muito débil, com desigualdades no acesso ao ensino que poderá se tornar também desigualdade na qualidade da formação.
 
Não fica claro se os conteúdos ofertados remotamente serão reofertados presencialmente. Assim, surge a pergunta: quem começar tais disciplinas, mas desistir ou quem nem tiver a possibilidade de escolha, poderá cursá-las presencialmente no retorno das atividades nos campi? Ao que se lê nas respostas dadas pela gestão da UFMT é que não, eles apenas poderão acessar o conteúdo que ficará armazenado no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Veja que além de não garantir o acesso simultâneo de todos os estudantes a esse conteúdo mediado pelas TIC, criando uma sensação de “deixado para trás”, mesmo que não tenha sido essa a intenção dos que seguiram adiante, não há garantia de que eles tenham a mesma qualidade da formação, caso tenham que acessar ao histórico do AVA. Sem falar que a qualidade está em questão até para quem tem acesso à internet e a computadores, dado os problemas de oscilação de sinal, a tensão psicológica do momento da pandemia e do isolamento social, entraves causados com a mudança da rotina e estrutura dos lares.
 
Há referências a pesquisas de que 92% dos estudantes da UFMT afirmaram ter acesso à internet. Porém, essa informação não nos serve por vários motivos: 1) E o acesso a computadores? Muitos acessam a internet exclusivamente pelos celulares, com pacote de dados limitados e isso não era problema quando tinham a internet dos laboratórios de informática da UFMT; 2) muitos não têm condições de trabalho e estudo em seus lares, por diversos motivos; 3) a pesquisa traz informação de período anterior à grave crise que vivemos, em que muitas famílias perderam renda e podem não mais conseguir pagar a internet. Além disso, pesquisas publicadas recentemente na imprensa indicam que 1/3 dos brasileiros (70 milhões) têm acesso precário à internet ou nenhum acesso; entre as famílias de baixa renda (classes D e E), 85% somente acessam a internet pelo celular com pacotes de dados limitados.
 
Chama a atenção a rapidez com que se tentou aprovar essa proposta no Conselho Universitário de Ensino, Pesquisa e Extensão, em curto prazo para discussão e elaboração de alternativas; essa ferramenta de gestão do tempo deliberativo costuma ter efeitos antidemocráticos: aceitar o que se tem porque não dá tempo fazer diferente.
 
Tal debate traz à tona a profunda desigualdade social imposta pela sociabilidade capitalista e impõe à universidade pública, que pelas cotas se vê inclusiva, um dilema que já existia antes, mas que agora mostra suas vísceras: sob ataque das políticas de austeridade desde 2012, quando começamos a sofrer cortes e contingenciamentos orçamentários, até onde vai nosso compromisso com a inclusão e permanência dos estudantes oriundos de famílias com baixa renda?
 
Há os que parecem propor que o enfrentamento e solução da desigualdade social não cabem à universidade, mas sim ao Estado. Nas entrelinhas, parece haver a proposição: “não podemos fazer nada, sigamos o calendário acadêmico de forma remota e o Estado que se vire para dar o acesso a quem fica para trás. Quem não teve acesso às aulas on line, que busque estudar com conteúdo gravado quando puder acessá-los”. Esse é um grande dilema ético que atravessa a universidade pública e gratuita e põe à prova os discursos de inclusão.
 
Penso que temos debatido tal dilema de forma limitada, como se estivéssemos em um beco sem saída e isso ocorre porque não temos encarado sua determinação fundamental: a desigualdade do acesso às TIC e a um ambiente adequado de trabalho e estudo são apenas a ponta do iceberg; são expressão da questão social imposta pela sociabilidade capitalista, que deve ser modificada radicalmente. É certo que isso não se resolve pelo Estado nem pela ciência burguesa: é tarefa da classe trabalhadora organizada em sua luta anticapitalista, antirracista e contra o patriarcado. Por outro lado, mesmo sendo um campo de disputa de projetos de sociedade, dentro das contradições da “democracia” burguesa, a universidade pública brasileira, patrimônio de seu povo, deve estar a serviço da sociedade no enfrentamento à pandemia que nos assola, além de ser um estratégico agente do Estado (sim, a UFMT é parte do Estado!) para elaboração de políticas públicas de enfrentamento às desigualdades sociais, por mais limitadas que sejam.
 
Assim, em nome do compromisso ético de formação de qualidade para todos os segmentos da sociedade brasileira, sobretudo das famílias de baixa renda, deverá ser rejeitada qualquer proposta de continuidade do calendário acadêmico que não leve em conta a igualdade de condições de acesso e de padrões de qualidade. Tal posição jamais representou cruzar os braços e esperar a pandemia passar, ao contrário: é preciso intensificar as ações que se voltem para produção de conhecimento, tecnologias e serviços que auxiliem a sociedade brasileira a vencer a tragédia da Covid-19 e seus impactos socioeconômicos, psicológicos e culturais. É nessa direção que deveremos pensar nossos esforços para atualização (e não flexibilização) do tripé ensino-pesquisa-extensão.


 
* Docente do Departamento de Psicologia, diretor da Associação dos Docentes (Adufmat-Ssind) e doutorando em Saúde Coletiva na UFMT – Campus Cuiabá.
 

Sexta, 24 Abril 2020 18:34

 

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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Prof. Maelison Silva Neves[2]

 

A pandemia da COVID-19 tem provocado inúmeros desafios à humanidade, assolada com o risco de perda de milhões de pessoas por uma doença que levou ao colapso os sistemas de saúde do mundo por onde passou. Ninguém estava nem está preparado, mas estamos lutando o quanto podemos para preservar o maior número de vidas e a Universidade tem mostrado toda sua imensurável importância e valor nessa batalha, em todas as frentes, com todas as suas especialidades. Aliás, tem ficado claro que não podemos prescindir de nenhuma ciência, seja pura ou aplicada: exatas, biológicas, humanas, sociais, artes e filosofia têm contribuído, cada uma a seu modo, para o esforço conjunto em defesa da vida.

Nesse contexto, surge também o debate da educação, seus meios, fins e sentidos. Se nenhum de nós estava preparado para lidar com a pandemia e suas consequências, nos perguntamos o que devemos fazer para nos preparar, considerando que seus efeitos ainda não são conhecidos por completo e não sabemos até quando iremos conviver com essa ameaça. Essa é uma tarefa da Educação que inclui a Universidade, mas a transcende (envolve desde a aprender a não tocar o rosto com as mãos sujas, lavando-as adequadamente com água e sabão, a aprender a encarar as transformações complexas do cotidiano da vida, ressignificar nossas relações sociais, visto que mesmo que queiramos elas não serão as mesmas). Essa transcendência e as incertezas da Covid-19 necessitam integrar nossos debates sobre o calendário acadêmico, seu adiamento e o momento e forma de sua retomada.

Recentemente, tal debate tem girado em torno de ofertar disciplinas por meio da Educação a Distância (EAD). Ele é legítimo e na UFMT temos o privilégio de ter desenvolvido expertise por meio de profissionais dedicados a estudar a temática com seriedade no Núcleo de Educação Aberta e a Distância (NEAD) – além de outras experiências formativas na UFMT-, apresentando as potencialidades da EAD para mediação do processo educativo e temos a excelente equipe da Secretaria de Tecnologia Educacional. A partir do meu contato com as produções dessas profissionais, tenho aprendido que não se pode fazer um debate maniqueísta e dicotômico: “EAD sim!” ou “EAD jamais!”. Há críticas às formas estandardizadas que não levam em consideração as especificidades do processo ensino-aprendizagem nem que sua base são as relações humanas. Assim, o uso de tecnologias não pode prescindir desse elemento fundamental para a garantia do processo pedagógico e por isso a EAD não pode ser um produto feito em série, uma educação em linha de montagem, ou pior, um subterfúgio, um improviso. Assim como a arte, a educação, em todas as suas formas, tem sua auricidade[3]: uma relação humana atravessada por inúmeros afetos com uma finalidade formativa ampla.

Além da importante contribuição do NEAD-UFMT, há outros grupos de pesquisa no Brasil que também se dedicam a essa temática, de modo que temos muito acúmulo, a ponto de termos ofertado cursos de graduação a “distância” via Universidade Aberta do Brasil (UAB), desde 2006[4]. Em outra frente, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) tem se debruçado sobre o debate, com participação de sindicalistas com larga experiência na Educação[5], incluindo na EAD, tendo inclusive aprovado uma seção sindical específica de Docentes tutores, contratados pela Fundação Cecierj / Consórcio Cederj[6]. Como se vê, as reflexões sobre as potencialidades, limites e contradições do Ensino a Distância tem sido feito tanto no âmbito da Educação e sua interface com as tecnologias quanto nas implicações para as condições de trabalho dos profissionais e seguem em curso.

Assim, não é sobre a EAD em si que me manifesto nesse artigo de opinião, não pretendo inserir-me no debate referido no parágrafo anterior. Antes, discuto a pertinência do retorno das aulas mediante essa modalidade como ferramenta de mediação do processo educacional em tempos de isolamento social motivado por uma pandemia de um vírus mortal, que tem dizimado milhares de pessoas no Brasil e no mundo e cujo fim ainda é incerto. Isso aterroriza todos nós, com impactos sociais amplos ainda impossíveis de medir. Nesse cenário, é compreensível o recurso psicológico de busca de retomada da normalidade: A negação (ou a busca romântica por um cotidiano perdido) é uma estratégia de fuga/esquiva que utilizamos diante de situações estressoras (como o luto) cuja eficiência é limitada, com consequências nem sempre ponderadas e às vezes mais impactantes que o enfrentamento do estressor. Nesse caso, o estressor do qual se quer fugir parece ser a morte do cotidiano ao qual estávamos acostumados antes de sermos tomados pelo redemoinho da Covid-19. Nesse redemoinho, ficamos tontos, nos afastamos do ponto de referência (calendário acadêmico em sentido amplo) e a ele tentamos voltar, na esperança de que ainda esteja onde deixamos. Mas está?

Assim, defendo que a retomada do calendário acadêmico mediado pela EAD enquanto durar as orientações de isolamento social não é uma boa alternativa – e isso nada tem a ver com juízo de valor da EAD em si- e apresento dois argumentos principais:

1)    Desigualdades das condições de trabalho e estudo: Por um lado, não sabemos as reais condições de todos nossos estudantes em termos de acesso às condições necessárias para o processo ensino-aprendizagem mediado pelas TIC (tecnologias da informação e comunicação). Não sabemos se todos tem computadores em suas casas (muitos estão longe de casa e usam o computador dos laboratórios da universidade); não sabemos se todos tem acesso à internet em velocidade suficiente para assistir às lives, os vídeos e baixar os materiais disponibilizados; não sabemos se há uma ambiente propício a estudar: mesa, cadeira, silêncio, ou se o estudante divide o espaço com outras pessoas com quem vive. Por outro lado, não conhecemos se todos nossos colegas tem condições de trabalhar a partir de casa. Pode-se dizer que com nosso salário e a biblioteca pessoal de casa temos a infraestrutura necessária para preparar aulas e mediá-las via ambiente virtual de aprendizagem. Porém, ignoramos os pais e mães de crianças pequenas, dos colegas que necessitam passar mais tempo com familiares idosos ou que necessitam administrar o cuidado com os que estão em outros lugares. Os tempos são outros, a relação com o lar, com a biblioteca pessoal são outros, com o computador também.

2)   Limites humanos e psicológicos: há um motivo para a suspensão das aulas presenciais e citá-lo pode ser desnecessário, mas quero sublinhar que isso significa que um dos nosso estudantes pode estar com Covid-19; pode ser que um familiar seu esteja com sintomas, esteja hospitalizado, ou mesmo na UTI; pode ser que um vizinho seu ou pessoa conhecida esteja; pode ser que nossos estudantes estejam bastante preocupados com sua contaminação ou das pessoas que ama. E nós professores? Podemos estar na mesma situação: como humanos temos o direito de sermos afetados, de nos entristecer e perder o rumo quando somos obrigados a ficar trancados em casa por causa de uma pandemia mortal. Pode ser que a última coisa com que nossos estudantes queiram se preocupar (e com razão!) seja com a prova daquela matéria difícil, com o risco de reprovação porque não está conseguindo render o suficiente. Nós professores precisamos refletir também em nossas limitações psicológicas de preparar as aulas com a qualidade e riqueza que isso exige, enquanto estamos preocupados com nossa segurança e das pessoas que amamos (e também das que não conhecemos, por nossa conexão com o gênero humano, ao ver todos os dias as estatísticas crescentes de mortes). Baseado em sua experiência pessoal, alguém pode objetar que estou sendo dramático, mas pare e pense: você pode assegurar que todos estão reagindo do mesmo modo que você? Você pode assegurar que essa seja a melhor forma de reagir diante do que está acontecendo e ainda nos aguarda?

O que é ensinar?

O processo de ensino-aprendizagem, matéria prima e finalidade do trabalho docente nos contextos formais (escola, universidade) é fundamentalmente uma relação humana: seja ela presencial ou mediada por instrumentos tecnológicos. Nesse caso, necessita do engajamento de quem ensina e de quem aprende (pode-se até admitir que esses papéis são intercambiados entre docente e discente). Esse engajamento envolve a utilização dos recursos físicos, fisiológicos, cognitivos, emocionais. Tais recursos são reconfigurados à medida que a experiência educativa se desenrola (o professor pode ficar rouco por falar bastante diante de uma turma barulhenta; o sinal da internet pode cair; a preocupação com perda do próprio emprego ou de quem o sustenta pode interferir na concentração diante das videoaulas), exigindo ações de renormatividade (uma adaptação ativa) do professor e dos estudantes para garantir que se atinja os objetivos, recuperando os sentidos dessa experiência.

A pergunta é: quais as possibilidades de engajamento em aulas, mesmo que mediadas por TIC, diante do embate cotidiano com o isolamento social? Pode-se argumentar que o retorno das aulas seja até favorecedor da saúde mental de docentes e estudantes, ao produzir uma distração ou preenchimento do vazio da quarentena. Mas, e se isso agravar o sofrimento? O próprio uso das aulas como forma de preenchimento do vazio da quarentena é um deslocamento perigoso da finalidade do processo educativo. Notem que nem toquei ainda nos desvios perigosos que isso possa representar como forma de substituição de contratação de mais professores e construção de espaços físicos.

Minha defesa não significa que a universidade paralise. Ela não está paralisada e é uma instituição fundamental para a sociedade brasileira. Nesses tempos extraordinários, defendo um funcionamento de nossas atividades de pesquisa e extensão, respeitando as condições e limitações de professores, pesquisadores e técnicos, com foco no direcionamento ao enfrentamento da pandemia. Não significa uma mudança dos projetos de pesquisa/extensão em curso, mas uma pausa no que não disser respeito ao essencial suporte à sociedade brasileira para enfrentamento da pandemia. E, acima de tudo, o respeito àqueles que, pelos argumentos expostos acima, não puderem se engajar nessa força tarefa, mas que já dá uma grande contribuição em preservar sua vida e a dos seus.

Por fim, é preciso refletir eticamente se a decisão de dar aulas em meio ao isolamento social, baseando-se na AVAliação[7] de que temos condições técnicas e psicológicas para fazê-lo pode ser tomada em igualdade de condições por todos docentes e estudantes. Mais do que nunca, é o momento de pensarmos coletivamente, é momento de solidariedade. A pandemia expôs as entranhas da brutal desigualdade de condições de vida da população mundial, mais especificamente da brasileira. Qual lição mais importante a universidade dará a seus professores e estudantes em relação aos rumos de nossas vidas e sociedade diante dessa pandemia? Acrescentaremos mais um capítulo a essa tragédia?

 



[1] Esse texto é um posicionamento pessoal, aberto ao necessário debate junto à comunidade universitária.

[2] Docente do departamento de Psicologia e doutorando em Saúde Coletiva na UFMT – Campus Cuiabá.

[3] Parafraseando Benjamin em “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”, publicada em Benjamin, W. Magia e técnica, arte e política. 3ª edição. São Paulo – SP: Brasiliense, 1987.

[4] A UFMT, via NEAD, o faz desde a década de 90.

[5] Verificar em https://bit.ly/2Xxfb9i

[6] Verificar em https://bit.ly/2K20UJJ

[7] Desculpe, não resisti ao trocadilho.

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Quarta, 15 Abril 2020 12:51

 

Entre os tantos desafios que a pandemia do novo coronavírus impõe, cuidar da saúde mental e emocional pode ser um dos mais delicados. Isso porque esse é um processo que depende de uma série de ferramentas, conhecimento e flexibilidade que nem todas as pessoas dispõem. 

É importante, inicialmente, reconhecer que estamos vivendo algo absolutamente novo na história da humanidade. A observação é do professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Maelison Silva Neves. 

O docente, que é pesquisador do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador do Instituto de Saúde Coletiva e doutorando em saúde coletiva pelo mesmo Instituto, ressalta que o ineditismo não está na pandemia em si, mas no contexto sócio-histórico em que ocorre.

No caso do Brasil, a situação ainda é agravada pelo comportamento negacionista do presidente da República, pelo estado avançado de desmonte do SUS e dos demais serviços públicos, pelo alto índice de desemprego e total desproteção dos trabalhadores assalariados.

“O clima geral é de confusão e incerteza, além de pavor para quem sabe aonde estamos indo”, afirma Neves. Para ele, “quem não estiver se sentindo ansioso, preocupado, com medo, está num estado psicológico que requer cuidado”. 

O docente pontua que respostas emocionais são esperadas, dada à gravidade do momento, somente sendo preocupantes se envolverem uma interrupção da capacidade do sujeito de acionar mecanismos individuais e coletivos para avaliação realista dos problemas e seu enfrentamento visando à proteção individual e coletiva. 

“Em poucas palavras, é normal sentir medo, tristeza, ansiedade e até olharmos para o futuro com ares de incerteza, mas esses afetos deverão servir para nos instrumentalizar no acionamento dos recursos que temos na busca da solução”, complementa.

Por outro lado, acrescenta Maelison, podem surgir quadros de adoecimento psicológico ou agravamento dos pré-existentes.  O docente cita dois exemplos. O primeiro é a ansiedade, que geralmente surge diante de respostas do organismo às situações de ameaça, sendo acompanhadas de aceleração dos batimentos cardíacos, suor nas mãos, sensação de dor ou aperto no peito e sensação de falta de ar episódica, respiração curta e pesada, entre outros sintomas. 

“Vale destacar a probabilidade de uma pessoa confundir a sensação de falta de ar e respiração pesada com sintomas da Covid-19, e isso é bastante complexo. Por isso, a primeira atitude deve ser buscar orientação médica, jamais se autodiagnosticar, para que o profissional de saúde faça uma avaliação adequada”, ressalta.

Outra é a depressão. Uma exposição crônica a estressores, mesmo que causem pouco incômodo, o impedimento do contato social e trocas afetivas com pessoas que gostamos, a exposição às situações incontroláveis, sem que possamos acionar mecanismos de controle parcial ou atenuantes do desconforto, acompanhados da incerteza, pessimismo em relação ao futuro, alimentados pelo bombardeio de informações negativas e preocupantes, podem nos levar a um estado de desamparo e rebaixamento de humor característico da depressão. 

“Reitero que tais estados psicológicos são determinados socialmente, apesar de sua expressão nos indivíduos levar muitos a pensar que seja uma problemática individual e subjetiva. O caso da Covid-19 mostra essas conexões de eventos macro e microssociais produtores de adoecimento psicológico de forma mais dramática, mas seguem a legalidade da determinação social do sofrimento e adoecimento psicológico na sociabilidade capitalista. Assim, repito, a calma e despreocupação puras não são esperados para esses tempos”, afirma.

Como atividades terapêuticas, Maelison sugere o resgate de coisas que, eventualmente, deixamos de lado por conta da luta árdua pela sobrevivência no piloto-automático, como ler poesia, literatura, escrever verso e/ou prosa, desenhar, pintar, assistir filmes com a família, ou mesmo tirar uma cesta após o almoço, entre outros. 

“Sei que a situação não é de normalidade e é difícil concentrar-se na satisfação com essas tarefas diante da inquietude. Porém, é fundamental que você se permita pequenas alegrias, pequenos gozos, conectar-se com coisas que, para você, são prazerosas. Mesmo com a justificada angústia, temos o direito de sentir alguma alegria. Nossa luta é para que isso seja regra, não exceção e seja conscientizado e acessível a toda a humanidade: por uma vida que esteja em função de sua potencialidade e não da acumulação capitalista. Temos o direito à distração, e é isso que nos ajudará nos momentos em que precisaremos estar atentos e fortes”, reforça.

Saúde mental da categoria docente
No caso específico das e dos docentes, Neves ressalta que há tensões particulares. A pressão para retorno das aulas via EAD, sem levar em conta o debate sobre os limites e possibilidades dessa modalidade, desrespeitando os próprios profissionais que nela atuam pode provocar angústias, assim como a incerteza quanto ao futuro na carreira.

Por diversas vezes, tanto representantes do Executivo Federal quanto do Legislativo mencionaram a intenção de cortes salariais dos servidores públicos. Além disso, há o debate contraditório de valorização e “demonização” das categorias que atuam nos serviços públicos, tidos ora como salvadores ora como “parasitas”.

“Tais contradições, além de nos jogarem na incerteza em relação ao futuro, levando muitos inclusive a repensarem seus sonhos de carreira, atingem, em cheio, um aspecto caro à saúde mental de qualquer trabalhador: o reconhecimento”, aponta.

O docente alerta que essas situações podem levar à frustração e perda de prazer em atividades que antes eram realizadoras, e também empurrar muitos a uma busca desenfreada pelo produtivismo.

“Falando em produtivismo, esse momento de isolamento social pode ser uma ocasião de reflexão sobre o significado e o sentido de nossas atividades. Além das determinações sociais que impõem o produtivismo, temos um processo psicossocial que pode ser agravante: a luta desesperada para manter a rotina, via teletrabalho, em busca de uma normalidade que não mais existe - e que nem é desejável, se paramos para pensar. É enganoso achar que, pelo fato de estarmos em casa, teremos mais tempo e poderemos ser mais produtivos, escrever mais artigos e nos dedicar totalmente à pesquisa, à produção científica e até mesmo dar aulas em ambientes virtuais”, alerta.

O professor da UFMT destaca que, de modo geral, é possível que a manutenção de atividades docentes em casa - sejam orientação, leitura, preparação de aulas, escrita acadêmica, planejamento de pesquisa, entre outras -, possam ser até mesmo um elemento protetor da saúde mental, dada a necessidade de manter uma rotina mínima para orientar o cotidiano.

Todavia, ressalta que essas mesmas atividades podem ser prejudiciais à saúde mental se feitas com intuito de produzir uma normalidade não mais existente, um mecanismo de negação da grave situação em que vivemos. Para Maelison, não se pode ignorar o próprio estado psicológico, muito menos as condições das pessoas de quem se pedirá cooperação via online, sejam orientandos ou colegas de trabalho.

“Pode ser que, depois de uma reflexão, se avalie que há condições de trabalhar em casa, dando orientações e aulas online. Porém, essas atividades não são solitárias e exigem, mais do que nunca, o respeito às condições materiais e psicológicas dos estudantes, pesquisadores e colegas de se engajarem conjuntamente. A pressão por produtividade acadêmica perde o sentido quando a própria Capes suspendeu seus prazos por 60 dias. Isso deve nos levar a refletir sobre o ritmo de vida, de trabalho e a necessidade de equilíbrio entre o tempo dedicado a si, à família, aos amigos e ao trabalho, sobretudo porque o contexto da pandemia exigirá mais atenção às relações afetivas e ao cuidado de si, demandando repensar o trabalho nos limites em que ele possa ser favorável à realização pessoal nossa e de nossos companheiros - o trabalho acadêmico é essencialmente relacional e coletivo, mesmo na solidão da escrita”, comenta.

O docente lembra ainda que o mesmo se aplica à militância política, e que o cuidado, de si e do outro, não é incompatível com a luta social. Para Neves, são polos dialéticos que formam uma totalidade complexa, que se reestrutura a depender da conjuntura. “Os tempos que vivemos são de exceção, exigem coragem, engajamento, entrega, cuidado, compaixão, conexão com valores de solidariedade de classe que dependem também do autocuidado, pois se adoecermos faremos falta às companheiras e aos companheiros”, conclui.

 

Fonte: ANDES-SN

Terça, 19 Junho 2018 09:52

 

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Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para

(O tempo não para, Cazuza)

Maelison Silva Neves - Departamento de Psicologia/UFMT Cuiabá

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          Nos últimos dias, iniciou-se um produtivo debate em torno da questão do empreendedorismo no âmbito da UFMT. Acerca desse tema, já havia me posicionado no espaço aberto, conforme esse link. Lendo os comentários de facebook, falas e alguns textos que se posicionaram a favor do empreendedorismo, chamou atenção um núcleo argumentativo que caracterizava os críticos dessa perspectiva como retrógrados, como se fossem filiados a um pensamento já ultrapassado, referindo-se ao marxismo. Acerca da alegação de obsolescência do marxismo nos debates sobre temas sociais e políticos relevantes é que me posiciono nesse texto.

          Parece existir alguns pressupostos sobre história e ciência por trás de tal alegação. Do ponto de vista histórico, esse argumento concebe a história de forma linear e progressista: amanhã será melhor que hoje tal qual hoje é melhor que ontem. Tal concepção parece inspirar-se na evolução da tecnologia[i]: se olharmos os progressos da técnica, temos sempre esperança de que ela melhore, pois ao compararmos o aparato tecnológico que temos hoje (smart fone, por exemplo), constatamos que são bem mais desenvolvidos que as versões anteriores. Aplicando tal raciocínio à história da ciência, o senso comum tende a reconhecer as teorias científicas contemporâneas como sempre mais avançadas que as do passado, como se a história humana (incluindo a da ciência) fosse uma espiral de progresso contínuo.

          Em vez disso, parece ser mais rico para o pensamento científico sobre os fenômenos humanos e sociais adotar “uma interpretação dialética e não evolucionista da história, levando em conta ao mesmo tempo os progressos e as regressões” (LOWY, 2002, p.205).

          Ao aplicar a argumentação de história linear ao pensamento Marxista, a crítica do senso comum tende a refutá-lo alegando simplesmente que se trata de um pensador do século XIX. Como, obviamente, estamos no século XXI, ele nada mais teria a nos dizer, pois que o que foi dito depois dele, contrapondo-o, é a última novidade da verdade sobre nosso tempo. Quando me refiro ao senso comum, quero dizer que tal argumento não tem embasamento científico nem filosófico seja do ponto de vista do conceito de História, da História da Ciência, seja do ponto de vista das Ciências Sociais.

          Duas considerações são importantes para se desfazer a incoerência de tal alegação: Muitos autores do século XIX continuam sendo muito influentes no pensamento contemporâneo, principalmente porque os fenômenos descritos por eles continuam presentes e relevantes em pleno século XXI. Seria absurdo negar explicações sobre fenômenos biológicos baseadas na evolução porque Darwin a formulou no século XIX, posto que os princípios gerais dessa teoria continuam fundamentando as ciências naturais. Do mesmo modo, considerando que o Capital foi o grande objeto de crítica e reflexão teórica de Marx e que ainda vivemos sob o modo de produção capitalista (apesar de suas reconfigurações), ainda é possível analisar e criticar a dinâmica desse modo de produção a partir do pensamento marxista.

          Outra consideração a ser feita é que a propriedade privada, um conceito-valor caro para os críticos de Marx e defensores do Capital, tem origem bastante remota e suas fundamentações mais brilhantes são de filósofos políticos liberais do século XVIII e XIX. Além disso, nenhum pensador liberal contemporâneo, se for honesto, ousará ignorar o legado de Adam Smith. Entre ele e Marx há profundas diferenças, mas ambos refletiram sobre os mesmos processos sociais, colocando-se em posições filosóficas, epistemológicas e valorativas opostas. Ambos continuam importantes, quando se analisa os fundamentos das disputas de rumo da sociedade sob o prisma econômico, social e ético.

          Do ponto de vista da História e Filosofia da ciência, torna-se nonsense aplicar ao pensamento marxista a ideia de obsolescência: não houve uma revolução paradigmática nas ciências sociais e não sei se seria possível aplicar as teses de Kuhn ao conhecimento direcionado para a ciência dos processos humanos/sociais. Em vez de pensar esse campo de pensamento na perspectiva Kuhniana (fase pré-paradigmática→ ciência normal → crise → revolução →nova ciência normal, e assim sucessivamente), parece ser mais plausível pensar na perspectiva de um campo pluriparadigmático, no qual a diversidade teórica e interpretativa dos fenômenos sociais, que por sua vez implica em diferentes tecnologias, não se descola das pressuposições de sujeito, sociedade e valores.

          Desse modo, baseando-se na sociologia da ciência de Bourdieu, pode-se considerar que a dinâmica da produção científica, longe de uma progressão em espiral de contínuo aperfeiçoamento, constitui-se em um campo de lutas:

Dizer que o campo é um lugar de lutas não é simplesmente romper com a imagem irenista da "comunidade científica" tal como a hagiografia científica a descreve − e, muitas vezes, depois dela, a própria sociologia da ciência. Não é simplesmente romper com a ideia de uma espécie de "reino dos fins" que não conheceria senão as leis da concorrência pura e perfeita das ideias, infalivelmente recortada pela força intrínseca da ideia verdadeira. É também recordar que o próprio funcionamento do campo científico produz e supõe uma forma específica de interesse (as práticas científicas não aparecendo como "desinteressadas" senão quando referidas a interesses diferentes, produzidos e exigidos por outros campos) (BOURDIEU, 1983, p.123).

          As ideias acima precisariam ser melhor desenvolvidas para evitar imprecisões e por entrarem em debates acalorados no âmbito da História e Filosofia da Ciência, mas o que pretendo argumentar centralmente é: o pensamento de Marx continua vivo e atual. Obviamente ele não é unanimidade na sociedade nem na universidade (diferente do que pensa o senso comum das redes sociais), mas nada nesse mundo é unânime e isso não invalida o potencial analítico e crítico do pensamento marxista. Desse modo, as respostas nos debates sobre os rumos da sociedade de quem pensa diferente de Marx precisam ser dadas com o mesmo rigor teórico-metodológico desse autor, atendendo às exigências para um debate acadêmico enriquecedor para a universidade e para a sociedade.

 

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org.). 1983. Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 39. p. 122-15

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1997.

LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin . Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 45, p. 199-206 , aug. 2002. ISSN 1806-9592. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9877>. Acesso em: 17 june 2018. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142002000200013.

MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial. Zahar: Rio de Janeiro, 1973.

Žižek, Slavoj. A atualidade de Marx. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/05/04/zizek-a-atualidade-de-marx/ . Publicado em 04/05/2018. Acessado em 17/06/2018.

 

 



[i] A ideia de uma evolução linear e progressista da tecnologia pode ser objeto de crítica, não sendo essa perspectiva defendida nesse texto, mas não será possível detalhar aqui por fugir do foco. Autores como Walter Benjamin, Herbert Marcuse e Martin Heidegger se dedicaram a refletir sobre o tema.

 

Segunda, 05 Março 2018 09:32

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Prof. Me. Maelison Silva Neves

Departamento de Psicologia – UFMT/Cuiabá

Doutorando em Saúde Coletiva – ISC/UFMT

 

No contexto da crise de financiamento estatal das universidades públicas brasileiras, começamos a nos deparar com inúmeras propostas de solução, supostamente inovadoras, para sobrevivência dessas instituições. Sob o disfarce da novidade, o que temos é a velha disputa de projetos de sociedade da qual a Universidade não se exime, sendo até elemento estratégico. Nesse embate, há décadas o ANDES-SN e a ADUFMAT tem lutado por um o projeto de universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, inclusive com apresentação de uma proposta para a universidade brasileira que pode ser consultada clicando aqui.

Dentre as soluções inovadoras apresentadas em nosso cenário mato-grossense, chama atenção a ênfase dada ao empreendedorismo: tem sido objeto de eventos, seminários e cursos de capacitação para professores, com intuito de disseminar esse tema no currículo dos cursos oferecidos pela UFMT. Apesar de não ter sido assumido explicitamente pela reitoria, entendo que esse fomento para inserção do empreendedorismo no currículo e como ação de formação continuada de professores (denominada de capacitação) é uma das saídas escolhidas para dar resposta para a crise de financiamento.

Ações como essas são estratégicas para instalar uma cultura organizacional que propicie um “clima empreendedor” favorável às relações da universidade com o mercado, com parcerias no campo da pesquisa, da extensão e formação de profissionais, atrelando-os às necessidades do mercado. Todos sabemos que “quem paga a banda, escolhe a música”, ou seja, se a universidade for bancada por investimento privado, deverá seguir os interesses dos financiadores.

Aliás, há quem defenda exatamente isso, entendendo que seja essa a nossa missão na prestação de serviços à sociefade, como se as necessidades da sociedade brasileira fossem identificadas com as do mercado. Nada mais equivocado que isso!

O congelamento dos gastos públicos foi uma imposição do governo para “acalmar” o mercado, sendo um dos principais responsáveis pelo estrangulamento das políticas de educação, seguro social, assistência social e saúde. As reformas da previdência e trabalhista são demandas do mercado e estão em dissonância com as necessidades da população brasileira, sobretudo aqueles a quem são impostas condições indignas de vida. Assim, esse discurso de universidade pública como parceira do mercado é muito perigoso, pois ela deve servir ao povo brasileiro, cujas necessidades muitas vezes são antagônicas às de geração de lucro empresarial, sobretudo no que diz respeito aos bancos, latifundiários e multinacionais, os mimados investidores, cujos nervos tem sigo obsessão dos governos lacaios acalmar.

Além disso, o empreendedorismo, nos moldes do mercado, tem sido utilizado como discurso ideológico que disfarça o notável privilégio das grandes corporações no acesso ao crédito, concessão de baixas taxas de juros e perdão de dívidas e multas, enquanto o pequeno empreendedor sofre com maior taxação proporcional de impostos (nosso sistema é regressivo: quem ganha menos paga mais), maior dificuldade de acesso ao crédito ou, ao menos, em condições menos favoráveis que as grandes corporações, além de não ter sido beneficiado nas recentes anistias concedidas pelo congresso para o Itaú e agricultores-empresários-corporativos, por exemplo. Vide as diferenças de crédito para latifundiários, Eike Batista e agricultores familiares.

Partindo do princípio de defesa de uma sociabilidade igualitária, nota-se que o empreendedorismo (nos moldes capitalistas) não é a saída para nossos estudantes nem para a universidade. Implantar a lógica do mercado na produção/aplicação do conhecimento (razão implícita desse curso que a universidade nos oferece - qual o custo disso?) não vai resolver a crise estrutural da universidade pública, que tem nos cortes de financiamento público e desresponsabilização do Estado sua expressão mais palpável. O momento requer a ousadia de não se dobrar, não se isolar do povo, não ceder aos ditames neoliberais, mas fortalecer os laços da universidade pública com os movimentos sociais e populares, intensificar a luta por uma sociedade mais justa, igualitária e livre de explorações e opressões.

Terça, 05 Dezembro 2017 18:20

 

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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Dirijo esse texto, prioritariamente, às/aos companheiras/os que compartilham da repulsa e indignação frente aos rumos que nosso país está tomando, com retrocessos gigantescos nos direitos duramente conquistados, e que acreditam na greve geral como resposta necessária da classe trabalhadora para barrar a barbárie neoliberal em curso. Os motivos para a greve geral, concordaremos, são muitos: a destruição dos direitos trabalhistas; o desmonte da previdência; o iminente assalto das universidades públicas pelas corporações empresariais; as tentativas de amordaçar o pensamento crítico na educação; o assassinato de homens e mulheres que lutam pelo direito à terra; a legalização do trabalho escravo; o assassinato de LGBT’s de forma tão naturalizada; o genocídio da juventude negra; a rapinagem de nossas riquezas naturais (terras, água, minérios, flora e fauna) em prol do enriquecimento de multinacionais e de poucas famílias latifundiárias; a entrega do pré-sal com isenção de impostos da ordem de R$ 1 Tri; o perdão das dívidas dos bancos, dos planos de saúde, dos latifundiários, ao mesmo tempo em que empurram os pobres para a miséria com uma política de austeridade seletiva; o desmonte de políticas sociais, da atenção básica à saúde; o fechamento de hospitais; a contaminação do ar, solo, águas e das pessoas por agrotóxicos e outras substâncias nocivas, em prol de um projeto econômico que beneficia uma casta egoísta e privilegiada. Eu ainda poderia narrar vários outros exemplos do que tem nos empurrado para a barbárie e que tem nos assolado, tirado o sono e provocado postagens indignadas no Facebook, Instagram ou conversas de corredor, entre uma aula e outra, reunião de pesquisa ou outro compromisso cotidiano.

Do que falei acima, não é nenhuma novidade para quem compartilha do projeto emancipatório de sociedade. Porém, escrevo para suscitar um debate: o que estamos fazendo? Indignados estamos, mas a quem estamos direcionando nossa indignação? Diante da traição das centrais sindicais, inclusive daquela que reivindica ser a maior representante da classe trabalhadora brasileira, ao cancelarem a greve geral do dia 5/12/2017 (hoje), o que fizemos? Desde quando demos a essa casta burocrata o direito de decidir os rumos de nossa luta? Cabe a meia dúzia de dirigentes de centrais pautar o dia da nossa indignação? É importante frisar que os ANDES-SN e a CSP Conlutas foram vozes quase solitárias no chamado para a greve geral de hoje e a ADUFMAT tem promovido debates e atividades de resistência em todos os campi.

Por outro lado, mesmo diante do quadro gravíssimo que vivemos, a sensação cotidiana de que nada está acontecendo traz à tona a pergunta: estamos mesmo indignados? O que estamos esperando para agir?

Está na hora das “outras formas de luta” entrarem em ação. Está na hora de sermos criativos e tomarmos as ruas e o cotidiano da universidade na disputa do projeto de sociedade que defendemos. E está na hora de construir uma greve geral, maior que a de 28 de abril.

O outro lado, que defende o projeto neoliberal, está agindo: estão fazendo seminários de empreendedorismo e tentando implementá-lo em todas as disciplinas do currículo de nossos cursos; estão propondo reforma da previdência com idade mínima para 72 anos (e reconhecendo que isso implicará em perda de bem estar – confira em: goo.gl/8fNrgm); estão em conluio com o banco mundial propondo cobrança de mensalidade para a universidade pública (justamente no momento que ela começa a receber a população menos favorecida em nosso sistema social injusto); estão comprando votos de deputados e senadores para medidas que fortalecem sua lucratividade; estão falando todo dia nos jornais e propagandas que os culpados da crise do Estado Brasileiro é nossa, funcionários públicos; estão invadindo nossas salas de aula, nossos eventos acadêmicos, processando professores que ousam ler/estudar K. Marx.

Enfim, os que advogam o projeto neoliberal, cegos por suas promessas ou ávidos pelo lucro e indiferentes à carnificina, estão organizados e agindo. E nós, os que defendemos outro projeto, quando vamos ocupar as ruas em quantidade expressiva? Quando vamos lotar as assembleias dos sindicatos e dos movimentos sociais? Quando vamos organizar a resistência e a ação política?

Uma greve geral não se faz sozinha, nem barraremos a barbárie instalada e em curso com nossa indignação individual.

Prof. Maelison Silva Neves

Docente do departamento de Psicologia da UFMT/Cuiabá

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