Terça, 12 Março 2019 11:37

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza*
  

Eles vivem ali. No meio das engenharias, das arquiteturas, das informáticas, das matemáticas, das biologias, das letras, das filosofias. Bem no meio acadêmico, no campus universitário. Alguém lhes traz comida, água, carinho e até veterinário. Ali eles comem, cagam, mijam, se reproduzem, crescem e morrem. Ali eles miam e desafiam.

Ninguém sabe ao certo quantos são. Mas são muitos. Talvez centenas.  Minha primeira impressão sobre a presença dos felinos no campus foi a de que, famosos pelo mito de sua frieza, estavam num lugar que lhes parecia familiar. A universidade, como todos sabem, é um lugar frio. Um lugar essencialmente preocupado com resultados, com números, com títulos, com desempenho, com sucesso. Um lugar em que as relações humanas, os sentimentos, as dores, as fraquezas, os dissabores, não tem lá muita importância, posto que não podem ser medidos com números. E, assim sendo, parece um habitat natural pros felinos.

Mas comecei a perceber uma importância vital dos bichanos, pra universidade, no dia em que presenciei uma sesta. Foi assim. Um estudante estava sentado no chão, sozinho - há muita gente sozinha no campus universitário - em uma das galerias, descansando do almoço e aguardando as aulas da tarde.  No meio de suas pernas, tinha um gato, esparramado no chão, dormindo e tendo a barriga alisada pelo estudante.  Isso mesmo, um cafuné enquanto chega a hora da aula.

Pode parecer pouco, ou bobagem, mas não é. Um gesto de afeto, uma carícia, um dengo, como esse da sesta, é, muitas das vezes, crucial para um estudante ou  para um professor, solto num lugar frio como é a universidade. Nunca é muito lembrar que estudantes e professores universitários andam adoecendo e até se matando. Tem doença mental em crescimento na academia, tem suicídio como nunca, tem competição que não acaba mais, como consequência de uma vida avaliada pelo currículo e pelo rigor das datas e prazos massacrantes.

Os gatos, na universidade, são, portanto,  uma experiência inumérica, uma experiência fora do valor. São apenas afetos. Não entram no lattes. Não entram nos planejamentos. Não entram nos relatórios. Não entram nas progressões. Não entram nos projetos. Os gatos são refúgio num mundo mediado pela necessidade de parecer mais.

Há casos em que os gatos são as únicas companhias que muitos ali tem. Há alunos que, diariamente, vem e voltam da universidade sem ter com quem dizer uma palavra – são os sem espaço, os que ficam pra trás, que se perdem no curso, que se perdem dos colegas, que não se reconhecem na universidade -.  E é ali, nos corredores, sentindo a textura da barriga de uma felino, que relaxam um pouco da dureza de saber que não vão dar certo na academia.

Há muitos casos pitorescos espalhados universidades afora.  Tem, por exemplo, o caso de Jeferson, que  é um gato que atende pelo nome. Se você o chamar, ele vai e não quer nem saber quem você é.  Jeferson já está velhinho, muito gordo, anda com dificuldade e parece muito mais interessado em atenção do que qualquer outra coisa. Jeferson parece desmontar o mito da frieza dos gatos.

E há casos em que o afeto é tanto que transcende a relação gente x gato. Foi o que ocorreu em consequência da morte de um gato, universitário, muito conhecido e querido no campus e que morreu de velho. Os amigos mais próximos, em sinal de dor e carinho, resolveram lhe sepultar com cerimônia. Trouxeram-lhe velas, fizeram oração, choraram.

Mas os gatos, apesar de tudo, tem muitos, mas muitos adversários no campus. Há quem os encare como um problema de saúde pública. De vez em quando alguém os denuncia às autoridades universitárias e até, noturnamente, intenta contra a vida deles, pondo veneno em suas comidas. E eles morrem aos montes.

Mas nascem.

E assim que nascem, ainda cambaleantes, saem miando, desafiando e entrando nos lugares mais improváveis: nas salas de aulas, nas salas dos professores, nas cantinas, nos laboratórios, nos centros acadêmicos, a mostrar que, como diz a canção, “nós, gatos, já nascemos pobres, porém, já nascemos livres. Senhor, senhora ou senhorio, Felino, não reconhecerás.”

 
*Aldi Nestor de Souza

Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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