Terça, 18 Dezembro 2018 14:27

DIZER “NÃO” AO RETROCESSO E TAMBÉM DIZER “SIM” À MANUTENÇÃO DO FERIADO DE CONSCIÊNCIA NEGRA - Bruno Pinheiro Rodrigues

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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Artigo enviado pelo Prof. Bruno Pinheiro Rodrigues* 

 

Duas das principais condições para que um regime democrático possa existir são a liberdade de opinião e o respeito à pluralidade política. A democracia moderna é inconcebível sem essas e vice-versa. Uma famosa frase atribuída ao filósofo iluminista Voltaire sintetiza esse pensamento: “Não concordo com uma palavra que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-la”. 

Em que pese a importância dessas considerações iniciais para própria possibilidade da existência em sociedade, é preciso confessar que ultimamente tem sido penosa a tarefa de presenciar o show de horrores nas casas representativas do poder público. Quando as manchetes jornalísticas não anunciam parlamentares descobertos em esquemas de lavagem de dinheiro, desvios, nepotismos ou patrimonialismos, nos informam ideias e fatos, no mínimo, espantosos. 

A bola da vez no Mato Grosso é o projeto de lei 310/2018, protocolado em nome das “lideranças partidárias”, mas segundo a imprensa local, capitaneado pelo deputado estadual Dilmar Dal Bosco. A proposta pretende modificar a lei estadual 7.819/2002, que institui o 20 de novembro como feriado estadual. De acordo com o projeto, “(...) o feriado influência na rotina econômica das cidades afetando diversos setores com o fechamento dos comércios e de prestadores de serviços, causando prejuízos econômicos e impedindo a comercialização dos produtos e a realização do serviço nos feriados”. 

Primeiro, causa perplexidade a ausência de dados para fundamentar a iniciativa. Acredite, o projeto é apresentado essencialmente com este argumento, desacompanhado de estudos econômicos, análises comparativas com outros feriados etc. Um projeto de lei fundamentado no famoso “achismo”. 

Segundo, o calendário anual é repleto de feriados, a maior parte vinculado a eventos do segmento religioso católico. Se realmente o 20 de novembro prejudicasse a economia local, “impedindo a comercialização de produtos e realização de serviços”, por que os outros feriados não comportariam os mesmos efeitos? A preferência de um em detrimento dos outros, provoca a sensação de que esse grupo de parlamentares, no frigir dos ovos, discorda das razões que levam dezenas de municípios e alguns Estados a declararem feriado – nesse caso, seria muito mais digno e honroso se tivessem assumido essa posição. 

Em terceiro lugar, não é preciso ser especialista em economia para entender que se uma parte do comércio fecha, a outra se beneficia com a circulação e consumo; se o fluxo do varejo diminui, na outra ponta aumenta o movimento vinculado ao circuito do turismo, que abarca agências turísticas, empresas aéreas e rodoviárias, restaurantes etc. Em 2017, segundo levantamentos da Fundação Getúlio Vargas e Ministério do Turismo, somente os chamados “feriados prolongados” foram responsáveis pela injeção na economia nacional de 21 bilhões. 

Para além de todas essas questões expostas, é preocupante o nível de desconhecimento histórico e insensibilidade. Uma data como o 20 de novembro possui uma larga trajetória até obter a condição de feriado. Escolhida nacionalmente para relembrar a data da morte de Zumbi dos Palmares, é igualmente o momento onde diversas organizações da sociedade civil, universidades, escolas refletem a memória e atual condição do povo afrodescendente no país. 

A escravidão negra no Brasil atravessou quase 4 séculos. Nos campos ou cidades, homens e mulheres de origem afrodescendente sentiram o peso e a crueldade por terem sido tomados ou nascidos em um sistema socioeconômico que os concebiam como “objeto”, desprovido de humanidade.  Embora seja difícil afirmar com exatidão, iniciativas como a do Slave Voyages – projeto multinacional que conta com pesquisadores de todos os continentes -, estimam que para as Américas foram levados 12 milhões de africanos. Desse valor total, ao menos metade foi introduzida no território luso-brasileiro.



Legenda: “Castigo de escravo”, por Jean-Baptiste Debret

Mato Grosso, como não poderia deixar de ser, também é um estado profundamente marcado por toda essa história.  Desde as primeiras expedições ao oeste brasileiro constam registros da presença negra. A população afrodescendente trazida a essa região não somente foi distribuída nos mais diferentes setores da economia colonial – mineração, agricultura, serviços domésticos e até militares -, mas legou fortes contribuições à identidade mato-grossense, fartamente visível em festas populares, nomes de escolas, praças ou parques. As grandiosas festividades de São Benedito (Cuiabá-MT), a Congada de Vila Bela de Santíssima Trindade e o Parque Mãe Bonifácia, atestam esse passado e presente.


Legenda: Lavagem das escadarias da Igreja de São Benedito, Cuiabá-MT (2017)
 

Não restam dúvidas que essa proposta de alteração do 20 de novembro ignora toda essa história e, especialmente, deixa clara a posição do Estado brasileiro para com a população afrodescendente do país, que é a da negligência. Por que esse grupo de parlamentares, no lugar de propor o retrocesso, não apresenta um projeto de lei para o combate do racismo crescente no Estado? De acordo com a Secretaria Estadual de Segurança Pública, somente nos primeiros 4 meses do ano de 2018, 35 casos de racismo foram denunciados à polícia em municípios do Estado. Por que não apresentam alguma proposta para o combate ao desemprego que ainda atinge em cheio a população afro-brasileira? Segundo dados divulgados pelo IBGE em 2017, dos 13 milhões de desempregados, 8,3 milhões eram pretos ou pardos; em Mato Grosso, mais de 55% dos 160 mil desempregados são autodeclarados pretos ou pardos. Essa mesma pesquisa, realizada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) e divulgada pelo IBGE – aponta outro dado preocupante: entre pretos ou pardos empregados, apenas 67% ganha o mesmo salário que um branco, exercendo as mesmas atribuições. 

Das duas, uma:  ou esse grupo de parlamentares não está devidamente informado sobre todos os aspectos que envolvem o 20 de novembro, ou decididamente resolveu se valer do velho cinismo do Estado brasileiro para com as condições singulares que se encontram a população afrodescendente no país, historicamente explorada, esquecida e desprezada. É preciso mudar essa realidade urgentemente e valorizar cada passo que reconhece esse esforço. A manutenção do status de feriado à Consciência Negra é um deles. Precisamos valorizá-lo e avançar rumo a um país mais humano e justo. 

 

*Bruno Pinheiro Rodrigues é doutor em História, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso e autor do livro “Paixão da Alma: o suicídio de cativos em Cuiabá (1854-1888)”.

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